Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os ovos da serpente https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/19/os-ovos-da-serpente/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/19/os-ovos-da-serpente/#respond Thu, 19 Aug 2021 17:42:21 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/08/sandoval-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1841 A condescendência com o arbítrio policial ameaça a todos. Diante da polícia que mata, vida, liberdade, civilidade, instituições e a democracia estão sob risco, real e imediato

Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto*

Este mês faz 10 anos do brutal assassinato da juíza Patrícia Lourival Acioli. Covardemente emboscada quando chegava a sua casa, foi morta com 21 tiros disparados por milicianos julgados por ela. O crime chocou o Brasil. O presidente do Supremo Tribunal Federal à época, Cezar Peluso, descreveu o ato como “um ataque ao governo brasileiro e à democracia”. Todos os 11 policiais militares julgados foram condenados, inclusive o coronel comandante do 7º BPM, da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

Patrícia Acioli se tornou inimiga da quadrilha que assolava o município de São Gonçalo, o segundo mais populoso do Rio de Janeiro, e selou sua morte ao decretar as prisões de policiais do 7º BPM, envolvidos em autos de resistência forjados. Crimes de execução até então dissimulados por dados oficiais da criminalidade.

A letalidade policial, em regra, é notada nos autos de resistência, porém, a participação expressiva dos policiais em execuções extrajudiciais, estando oculta, é desconsiderada. De modo ímpar, o assassinato de Acioli explicita a forte ligação entre as mortes decorrentes de intervenção policial e os homicídios, as duas maiores causas de mortes violentas intencionais no Brasil.

Estudos sugerem que as motivações pessoais do policial para a prática da ação letal abusiva estão organizadas em três categorias. São elas: (1) ação letal fundada no ressentimento e no desejo de vingança do assassínio do irmão de farda; (2) ação letal calculada para obtenção de vantagem econômica, na morte como negócio; (3) ação letal performática para exibição do atributo social “valentia” na busca de reconhecimento social.

Indiferente a motivação, a conduta letal tem efeitos indeléveis sobre o indivíduo que a pratica. O abismo da violência extremada que amedronta alguns policiais, excita outros mais aventureiros a se lançarem de encontro ao incerto sob a sensação de sobrenatural coragem, animada por forte emoção e descargas hormonais. Mais fundo o precipício, maior a emoção. Há, porém, casos em que o mergulho alucinado no abismo do necropoder leva à depressão e a impulsos suicidas, transformando os algozes em vítimas da própria violência.

Em geral, os policiais mal sabem que o preço da violência é alto. Não lhes é mostrado que, ao afundarem em enfermidades psíquicas e físicas, arrastam consigo suas relações familiares e amizades antigas. Muito se perde. Em casos mais drásticos, perde-se tudo.

As histórias de vida de policiais matadores, comumente, expõem indivíduos que acreditam (ou acreditaram) na eterna luta do bem contra o mal. Policiais que se mostraram dispostos a arriscar suas vidas em defesa de valores considerados nobres nas suas organizações e por boa parte da sociedade.

Entretanto, sabe-se que a linha que separa os dois lados dessa oposição maniqueísta é muito tênue. Quanto mais o indivíduo se proclama do bem, mais próximo está da maldade. Em outras palavras, quanto mais o policial se considera defensor da virtude, maior sua vaidade e, possivelmente, maior a prática de improbidades para alimentá-la.

Os traços de narcisismo exacerbado e de outros aspectos da personalidade humana registrados nas histórias de vida de policiais matadores permitem que se cogite sobre o que os psicólogos chamam na literatura clínica de “dark triad”. Por sua vez, o olhar sociológico sobre os elementos do subjetivismo contemporâneo observados esclarece que há nos aspectos verificados uma lógica de defesa narcísica, de autopreservação e de sobrevivência psíquica, que está radicada não meramente nas condições objetivas da “guerra das ruas” (representação social comum do contexto criminal urbano enfrentado por policiais), mas na experiência subjetiva de vazio, isolamento e medo que a condição policial lhes impõe.

O irrefutável é que há nas fileiras das organizações policiais indivíduos com inclinação homicida, tidos como “valentes”, que se engajam vigorosamente na luta do bem contra o mal e que encontram na parcela da população amedrontada pela criminalidade urbana o apoio e a condescendência que necessitam, para sepultar de vez o dilema moral de ter que seguir a lei perante um sistema de administração da justiça criminal que “solta os bandidos que a polícia prende”. De justiceiros a milicianos, é um pulo.

Conquanto o freio moral de certos policiais justiceiros faz com que não se encaixem na racionalidade econômica mortífera da milícia, fundada no desejo de rápido enriquecimento pessoal, de igual modo, a união do útil ao agradável entusiasma outros tantos com pendor sicário e, ao que parece, a socialização na milícia e nos grupos de extermínio faz com que os papéis sociais de policial e de criminoso se misturem, gemando o policial-bandido ou o bandido-policial, conforme a porção que prevalece em cada indivíduo.

Uma charge da grande cartunista Laerte, carregada de ironia, bem retrata em arte a realidade crua da violência policial e nos ajuda a enxergar a rede de microdespotismos que assinalam as interações cotidianas, entre a polícia e a população civil.

Os quadrinhos apresentam o ataque do obediente cão bravo, lançado contra oponentes políticos, enquanto seus algozes se divertem satisfeitos. O animal continua sua sanha dilacerando desafetos, mas também outros insignificantes. Tudo bem. E segue colérico, atacando, até que preocupa. É então chamado de volta. Mas ao tornar, seus donos constatam que a fera se transmutou na fúria. Conhece agora o seu amedrontador poder destrutivo. Bestial, deleitou-se com o gosto do sangue. Ameaçadoramente, não mais obedecerá.

Assim como a ferocidade do cão bravo, a letalidade policial encontra sustentação na moralidade condescendente com a violência, na ideologia que brada “bandido bom é bandido morto!” e “policial que não mata não é policial!”. Não será possível ao conivente lavar as mãos. De igual maneira aos quadrinhos, ninguém estará seguro, seja ele policial ou cidadão de bem.

O cometimento da ação letal abusiva atenta contra o policial militar que veste sua farda e sai para trabalhar imbuído de melhor servir à sociedade, sem recorrer ao uso da força letal de modo desnecessário e injustificado. Esse policial íntegro e comprometido com seu semelhante, mas nem por isso menos exposto aos riscos e percalços inerentes ao exercício da atividade, é diferenciado do indivíduo sicário e pernicioso que deprecia a instituição e não merece ser confundido e tratado como venal.

A tolerância social à violência policial abusiva alimenta monstros. Engorda justiceiros, grupos de extermínio e milícias; essas últimas, as milícias, infiltram-se no Estado com a audácia e a capacidade real de corromper e peitar a organização policial e os poderes constituídos, coisa que os demais grupos criminosos não o fazem com tamanha facilidade.

Que o martírio de Patrícia Acioli seja lembrado e nos sirva de permanente alerta, de que as condescendências com o arbítrio policial são como ovos da serpente que nos ameaçam a todos. Diante da polícia que mata, vida, liberdade, civilidade, instituições e a própria democracia estão sob risco, real e imediato.

 

*Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto é coronel da reserva (PMPA) e doutor em Sociologia (UnB).

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Na edição desta semana, leia também “Forças Armadas, entre democracia e Bolsonaro” e “270 homens e um segredo: o sigilo imposto sobre a operação do caso Lázaro“.

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As festas clandestinas são problemas políticos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/as-festas-clandestinas-sao-problemas-politicos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/as-festas-clandestinas-sao-problemas-politicos/#respond Thu, 08 Apr 2021 21:41:27 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1717 “Dificuldades para cumprir medidas de isolamento social evidenciam os problemas de exercício da autoridade no Brasil, uma vez que decretos estaduais têm sua eficácia confrontada.”

Alan Fernandes*

Polícia fecha festa clandestina em São Paulo durante a pandemia de Covid-19 (CJPRESS/FOLHAPRESS)

A crise mundial causada pela Covid-19 tem impactos inegáveis pelas mais de 300 mil mortes ocorridas somente no Brasil. Não fossem suficientemente desafiadoras as questões médicas envolvidas, as exigências para seu enfrentamento tocam em um ponto central da democracia: a liberdade. Isso porque a restrição de circulação e reunião das pessoas é reconhecida como uma medida relevantíssima para evitar a propagação do vírus.

As dificuldades para dar cumprimento às medidas de isolamento social evidenciam os problemas de exercício da autoridade no Brasil. A autoridade se assenta em regras politicamente legitimadas, escritas em documentos legais, definições essas escassas no que se refere à manutenção de uma ordem social, que, no limite, performam as medidas restritivas contra a pandemia.

Essas questões passaram interditadas nas discussões no país, que não estabelece consensos que possam definir os limites entre autoridade e autoritarismo. Assim, tanto os decretos estaduais, que impõem regras para a circulação e reunião de pessoas, têm sua eficácia constantemente confrontada, o que requer o acionamento do Poder Judiciário, como os instrumentos colocados à disposição dos órgãos encarregados da vigilância mostram-se ineficientes.

As festas clandestinas têm ocupado o noticiário nos últimos dias. Nelas se vê as pessoas se encontrarem em bares, boates, cassinos (?!) e festas a céu aberto, contrariando as normativas legais de proibição da realização desses eventos, pois tais eventos impulsionam a transmissão comunitária do vírus causador da doença. Para dar conta das decisões de enfrentamento à pandemia, o estado tem empenhado seus órgãos dotados de poder fiscalizatório para que evitar que tais reuniões ocorram ou que sejam encerradas.

Em São Paulo, no campo da polícia ostensiva, a Polícia Militar vem atuando em três frentes. Na “Operação Toque de Restrição”, são utilizados os equipamentos de alto-falante instalados nas viaturas para buscar convencer a população a retornar a suas casas no período compreendido entre as oito horas da noite e cinco horas da manhã.

Além disso, em conjunto com outros órgãos, atua no fechamento de estabelecimentos que promovem tais encontros, a cujos responsáveis são impostas multas de acordo com o Código Sanitário de São Paulo, além de medidas criminais relativas aos crimes de desobediência (artigo 330 do Código Penal) e de infração a determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa (artigo 268 do Código Penal).

Aliado a isso, a “Operação Paz e Proteção” busca intervir em reuniões em espaços públicos, mediante critérios que atendam uma conjugação dos riscos envolvidos aos frequentadores e os ativos operacionais disponíveis para o atendimento da ocorrência. Aqui, a estratégia adotada é a ocupação do espaço mediante a obtenção de informações prévias da realização do evento, de forma a evitar que se realize.

Muitas reuniões sociais, que ora constituem problema de saúde pública, tornam-se, para o cotidiano de inúmeras pessoas, um problema cujo enfrentamento é dificultado, porque os órgãos policiais dispõem de mecanismos legais incompletos, o que dá conta de como a questão do que ora denomina-se “festas clandestinas” é um problema já existente em nossa sociedade.

No atual momento, o amparo legal e a concertação de esforços proporcionado pelas regras legais de enfrentamento à pandemia têm trazido algum avanço na governança sobre essa questão, mas que tende a esvair-se tão logo a crise sanitária diminua. Isso em razão da incapacidade normativa do Brasil em estabelecer regras claras, gerais e politicamente legitimadas no que se refere à gestão da ordem pública. Uma das evidências mais assombrosas é o crescente número de mortes em razão do descumprimento do isolamento social, mas, também, a incapacidade de que as medidas adotadas sejam amplamente cumpridas.

A despeito da sempre presente limitação de recursos para um atendimento mais amplo das medidas, levanta-se a questão da própria capacidade institucional de o estado exercer autoridade. A questão da regulação de festas, em espaços públicos ou não, apenas foi evidenciada com a pandemia.

Tomando por base uma determinada região da cidade de São Paulo, as ocorrências cadastradas como “perturbação do sossego público” são a terceira maior em número de chamadas de emergência no ano de 2020. Para o enfrentamento a essa questão, a maior amplitude de medidas sancionatórias, trazida pelo decreto estadual ligado à pandemia, com a imposição de multas pela Vigilância Sanitária, permitiu que a regulação dessa questão fosse mais eficaz que em relação às medidas penais vigentes até então, ainda que se mostrem insuficientes.

A título de exemplo de outras medidas adotadas contra a disseminação do vírus, países como o Chile e a Itália adotaram a expedição de autorização de circulação, com a imposição de multas e prisões. Tais medidas são sequer contempladas no portfólio de ações disponíveis aos tomadores de decisão. Medidas mais severas como essas não encontrariam ambiente político para suas discussões em razão da interdição que temas como esse ocorrem no Brasil.

Se, no transcurso de nossas vidas, os limites entre as liberdades individuais e a coletividade eram mediadas pela informalidade da atuação policial, sem maiores repercussões, agora, as questões de regulação da vida social fazem emergir tais problemas, pois, afinal, os fatos da vida social que acontecem nas franjas da sociedade impactam a todos, indistintamente.

Assim, que a dimensão dessa crise deixe como lição a necessidade inaugurar um debate que construa regras sobre o a gestão da vida social, sem a qual, nem se consegue se promover razoáveis níveis de harmonia social, nem se coíbem os excessos do nível de rua, de forma que, pela sua ausência ou pela sua potência, troquemos autoridade por autoritarismo.

*Alan Fernandes é Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo, doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Na edição desta semana, leia também “Vacinação dos profissionais de segurança pública: mais vacina, menos politização” e “Caso Henry Borel remete a um roteiro guardado em algum lugar do passado”.

 

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As polícias brasileiras e o bolsonarismo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/11/as-policias-brasileiras-e-o-bolsonarismo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/11/as-policias-brasileiras-e-o-bolsonarismo/#respond Thu, 11 Mar 2021 20:25:43 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/bolsonarismo_policias-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1692 Mesmo que não sejam adeptos de Bolsonaro, bandeiras do bolsonarismo, como o punitivismo penal, rondam a cultura policial, independentemente de posturas da categoria

Alexandre Rocha*

O discurso policialesco ganhou status de política nacional com Bolsonaro na Presidência da República. Bolsonaro tem buscado se colocar no posto de comandante das polícias e, sempre que possível, pretende passar a ideia de que está junto com elas no front da batalha contra a criminalidade. Inclusive, ele se diz ombreado com os policiais, sendo o porta-voz e o defensor de medidas que miram o reconhecimento das incompreendidas polícias. Afinal, seria Bolsonaro o messias das polícias?

Bolsonaro tem gracejado com o meio policial. É comum vê-lo participar de cerimônias de formatura de novos agentes. Numa dessas formaturas, de policiais rodoviários federais, em novembro de 2020, na cidade de Florianópolis, Bolsonaro falou: “Nós precisamos de vocês. Não estou aqui por missão, mas por gratidão à instituição (…). Sirvam o país. Sirvam o povo”. Já em outro evento, de policiais militares, em dezembro de 2020, no Rio de Janeiro, ele disse: “O trabalho de vocês é um dos mais sublimes do Brasil”. Ainda, noutra cerimônia, agora de policiais federais, também em dezembro de 2020, na capital do país, ele ouviu do discurso dos formandos: “Presidente Jair Messias Bolsonaro, nosso agradecimento especial por convocar todos os excedentes (…) O senhor foi um instrumento de Deus nas nossas vidas”.

Além dessas ações simbólicas, destacam-se as medidas políticas direcionadas exclusivamente ao público policial. Nesse sentido, na reforma da Previdência, ele defendeu critérios mais brandos de aposentadoria para os policiais, sobretudo para os policiais militares. Também tem prometido a ampliação do excludente de licitude a fim de que os agentes não respondam por violações no exercício da função. Ademais, tem incitado a aprovação de projetos sobre leis orgânicas das polícias civis e militares fundamentado no controverso discurso de autonomia das polícias frente à política dos governos estaduais.

Por tais fatores, discute-se se Bolsonaro possui influência nas polícias e confiança de seus integrantes. Nessa linha, uma pesquisa do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) observou que, pelo menos 41% dos policiais militares no quadro de praças manifestam alinhamento com os ideais de Bolsonaro. Essa pesquisa aponta que o apoio ao presidente não é uniforme, pois oscila, a depender da corporação e dos cargos policiais. Assim, o bolsonarismo estaria mais presente nas policiais militares do que nas polícias civis e federal. De todo modo, em média, 38% dos policiais militares, 12% dos policiais federais e 8% dos policiais civis interagiriam em ambientes virtuais bolsonaristas, inclusive com apoio a pautas extremistas.

Nesse sentido, questiona-se: Bolsonaro teria cooptado as polícias? Entre afagos e benefícios, ele teria conquistado o público policial, que depositaria nele plena confiança? Não se pode afirmar taxativamente que há domínio do mandatário sobre o coletivo policial; porém a supracitada pesquisa evidencia que há relativa interação de policiais em ambientes bolsonaristas. A despeito disso, vale destacar: certas bandeiras do bolsonarismo são defendidas por segmentos policiais, mesmo que não sejam adeptos de Bolsonaro. Por exemplo, o punitivismo penal, apreciado pelo ex-capitão, ronda a cultura policial, independentemente de posturas partidárias da categoria.

Bolsonaro não cooptou as polícias. Na verdade, alguns ideais do espectro do bolsonarismo já estavam imanentes nessas corporações. Ideais autoritários, discriminatórios, machistas e moralistas ecoam contraditoriamente no imaginário e na prática policial. Como alude o antropólogo Luiz Eduardo Soares, no recente livro “Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil”, o tempo da segurança pública, muitas vezes, parece estar no tempo da ditadura. Isso porque, apesar dos avanços democráticos do país, e também da modernização operacional das polícias, a disposição do sistema policial – especialmente em termos de estruturas, legislações, regulamentos e valores – ainda decorre da ditadura militar.

Como se observa, o modelo policial brasileiro praticamente não foi alterado pela transição democrática e com a Constituição de 1988. Com efeito, polícias e gerações de policiais recrutados, formados e atuantes, em plena democracia, ainda acenam para o autoritarismo como forma eficaz de segurança. Ou seja, além da parcela de policiais ideologicamente alinhada com Bolsonaro, há outra parte mais significativa, posto que decorre do exibicionismo do bolsonarismo, que cultiva valores pouco democráticos e progressistas sobre a segurança pública.

É fato: o tema reforma das instituições policiais brasileiras, a partir da lógica democrática, foi e é negligenciado por diversos governos, lideranças policiais e segmentos da sociedade, inclusive pelos considerados progressistas. Com efeito, o campo da polícia é orientado majoritariamente por visões de populismo punitivo, ao estilo da bancada da bala, e ações corporativistas de setores policiais. Desse modo, propostas visando transformar a arquitetura do sistema como, por exemplo, desmilitarização, policiamento democrático, modernização das estruturas e dos cargos nas instituições, dificilmente encontram espaço na agenda política; ainda mais agora, em tempos de Bolsonaro.

O presidente não criou um arranjo policial obtuso no Brasil, ele simplesmente o herdou. Com efeito, embora ele não exerça liderança inconteste no círculo policial, suas mensagens agressivas e erráticas encontram terreno fértil em parte considerável das polícias, especialmente as militares. Bolsonaro não é um messias das polícias, mas tem despertado nelas certo ufanismo pelas velhas estruturas e culturas, algo que estava meio recolhido. Isso demonstra que, lamentavelmente, os caminhos trilhados pelas polícias brasileiras, mesmo com a estrada da democracia já pavimentada, ainda flertam com desvios autoritários, como o bolsonarismo.

 

*Doutor em Ciências Sociais (UnB), policial civil no Distrito Federal (PCDF). Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

 

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Na edição desta semana, leia também “Epidemia na pandemia: companheiros respondem por 58% dos feminicídios” e “Morte no zoológico humano”.

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Em 10 anos, ‘aposentadoria’ de militares cresce em 41,7% https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/10/11/em-10-anos-aposentadoria-de-militares-cresce-em-417/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/10/11/em-10-anos-aposentadoria-de-militares-cresce-em-417/#respond Sun, 11 Oct 2020 13:12:07 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/diferente-do-projeto-para-civis-proposta-de-aposentadoria-para-militares-mantem-beneficios-de-integralidade-e-paridade-1571652594587_v2_900x506-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1539 O Brasil contava, em 2018, com mais de 4,3 milhões de militares “aposentados”. E, ao mesmo tempo, pagava mensalmente, em média, R$ 6.528,46 para o seus policiais militares da ativa; R$ 11.472,93 para os policiais civis e federais; e, por fim, R$ 7.630,50 para os bombeiros militares.

***

Ao se analisar os grandes números do Imposto de Renda Pessoa Física, disponibilizados pela Receita Federal, referentes aos anos-calendários de 2009 e de 2018, constata-se que o Brasil tinha, em 2018, 4.312.755 militares reformados, na reserva e/ou familiares pensionistas que pagaram imposto de renda (militares das FFAA, das Polícias e Bombeiros Militares estaduais). Esse é um número 41,7% superior ao observado em 2009, quando existiam 3.044.019 militares inativos, sem contar os com moléstias graves – que igualmente cresceram 38,1% no mesmo período e atingiram 387.850 pessoas.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública está conduzindo um estudo especial sobre o impacto da questão previdenciária das polícias e deve divulga-lo nos próximos meses. Mas, antes, os grandes números do IPRF permitem algumas estimativas preliminares. Em primeiro lugar, se separarmos os rendimentos das polícias civis, militares e bombeiros militares, iremos observar que, em 2018, os policiais militares que recolheram imposto de renda tiveram um rendimento médio mensal, incluindo o 13º salário, de R$ 6.528,46.

Já os policiais civis, cujo efetivo total é menor e incluí os delegados estaduais e federais, carreiras mais bem remuneradas, o rendimento médio mensal sobe para R$ 11.472,93. E, por fim, os bombeiros militares tiveram um rendimento médio mensal de R$ 7.630,50.

Como comparação, na média, cada integrante do Ministério Público teve uma remuneração mensal de R$ 34.749,90, com 13º salário. Esse valor é maior do que a média dos juízes, que receberam, segundo a Receita Federal R$ 33.550,01 como remuneração mensal em 2018, sem contar indenizações e rendimentos isentos.

Importante frisar que esses valores são médias e não consideram as disparidades internas de cada polícia, com policiais da base muitas vezes recebendo bem menos que os policiais do teto da categoria.  E isso é ainda mais emblemático pois pouco sabemos sobre a estrutura de financiamento das polícias brasileiras e não há dados sistematizados e/ou organizados que permitam análises mais detidas e precisas. E, na falta de tais informações, ganha quem grita primeiro e convence.

Em 2018, os policiais e bombeiros militares brasileiros pagaram 7,7% dos seus rendimentos, em média, a título de previdência social e/ou sistema de proteção social. Foram quase R$ 5 bilhões arrecadados dos policiais para custear suas aposentadorias. Como não temos dados desagregados por carreira e faixa salarial, que são definidores das novas alíquotas a serem aplicadas sobre os rendimentos dos policiais, podemos apenas estimar alguns impacto da reforma da previdência do ano passado.

Por essa simulação, na alíquota intermediária de incidência, a expectativa é gerar uma receita adicional de ao menos R$ 1,24 bilhão com as novas alíquotas. Assim, deve ocorrer um aumento de arrecadação da ordem de 24,9%, custeado pela retenção maior nos contracheques dos policiais. De R$ 4,97 bilhões  arrecadados a título de previdência em 2018, o valor deve passar para R$ 6,22 bilhões, em 2020, isso em uma média simples entre as diferentes carreiras.

Agora, se estes valores serão suficientes para equacionar o dilema previdenciário existente, ainda é cedo para afirmar apenas com os dados da Receita Federal. É preciso cruzar novas fontes de dados e aprofundar algumas informações. Todavia, este rápido panorama serve para jogar luz a números impressionantes e que precisam fazer parte do debate sobre os rumos e sentidos das políticas de segurança pública no Brasil. Mas, logo de cara, é possível chamar atenção para os dados sobre a quantidade de militares na reserva, que são fortes e exigem uma reflexão sobre a estrutura de carreiras e do tempo de serviço das Forças Armadas e Polícias Militares do país.

Outro dado que chama bastante a atenção é aquele que foca na proporção de membros dos Ministérios Públicos em relação ao número de policiais. Para cada um dos 14.365 promotores e procuradores dos Ministérios Públicos há, na média nacional, 41,3 policiais. Se considerarmos apenas os números das polícias civis e federal, responsáveis pela atividade de polícia judiciária, havia 9,1 policiais para cada promotor/procurador de justiça no Brasil em 2018. Já a proporção de juízes neste mesmo ano é levemente maior, de um juiz para cada 24,5 policiais.

Trata-se de um funil importante para compreendermos o fluxo do sistema de justiça criminal brasileiro e sobre os papéis e funções que cada uma destas instituições deve desempenhar para melhorar a eficiência da Justiça brasileira. Vale lembrar que tal número gera impactos diretos na capacidade de processar crimes e evitar impunidade.

 

Versão reduzida do artigo publicado originalmente no Boletim Fonte Segura 58, do FBSP,

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Louisville e a fábula da democracia racial na segurança pública no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/24/louisville-e-a-fabula-da-democracia-racial-na-seguranca-publica-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/24/louisville-e-a-fabula-da-democracia-racial-na-seguranca-publica-no-brasil/#respond Thu, 24 Sep 2020 22:13:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/15913941535edabf6990fbe_1591394153_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1521 Mortes invisíveis, que não geram comoção, sendo dignas de luto apenas para suas famílias e seus entes queridos

Por Dennis Pacheco*

Protestos antirracistas tomaram as ruas de Louisville, Estados Unidos, com gritos de “No justice, no peace” (sem justiça, sem paz) em reação à decisão judicial de não dar prosseguimento à acusação dos policiais que mataram Breonna Taylor. A jovem enfermeira foi morta com 6 tiros dentro do próprio apartamento.

As manifestações seguem a trilha de inúmeras outras em oposição à violência das polícias norte-americanas e seu padrão de seletividade racial, em que 1.140 pessoas foram mortas em intervenções policiais em 2018, fato que as aproxima bastante do contexto brasileiro, onde a letalidade policial é ainda maior, com 6.220 vítimas no mesmo ano.

Dados do programa de abordagem a suspeitos do Departamento de Polícia de Nova Iorque (Stop, Question and Frisk), e da Police Contact Survey indicam que homens jovens, latinos e negros tendem a ser mais parados pelas polícias do que os brancos. O quadro se agrava na medida que se conclui que, conforme aumenta o grau de força utilizado pelas polícias, maior a presença de negros nas estatísticas.

Seguindo a mesma tendência, negros somos 56% da população brasileira, mas 75% dos mortos em intervenções policiais. Desproporção que invalida o argumento vazio de que somos mais mortos por sermos maioria, revelando a intensidade da seletividade na atividade policial.

Embora os modelos de arquitetura organizacional das Polícias dos dois países sejam muito diferentes, os alvos de suas ações são os mesmos: jovens negros e pobres, estigmatizados como criminosos e cujas mortes não configuram homicídio em termos jurídicos. Mortes invisíveis, que não geram comoção, sendo dignas de luto apenas para suas famílias e seus entes queridos. Não é à toa que o lema do movimento que centraliza as manifestações antirracistas nos EUA seja Vidas Negras Importam (Black Lives Matter).

Parte do que faz com que vidas negras não importem é o fato de, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil permaneça o desafio de responsabilizar policiais pelo crime de homicídio. Lá, mesmo casos que ganham notoriedade, acumulam provas e pressão pública em favor da condenação de policiais que fizeram uso excessivo da força, como no caso que levou à morte de George Floyd, asfixiado por um policial que ajoelhou em seu pescoço, raramente resultam em punição por homicídio. A exemplo disso, o único dos três policiais envolvidos na morte de Breonna Taylor que foi acusado, corre o risco de ser condenado não por tê-la assassinado, mas por ter colocado os vizinhos em risco ao atirar a esmo.

No Brasil, o excludente de ilicitude deveria ser usado somente para casos cuja investigação não concluiu o emprego de uso excessivo e ilegítimo da força e que concluíram pela legitimidade da ação policial. O que acontece, no entanto, é que a palavra dos policiais envolvidos é a única variável ouvida, seja na lavratura do boletim de ocorrência, seja no inquérito policial, seja na decisão do Ministério Público e do Judiciário. A narrativa da “fundada suspeita” como motivadora da abordagem desproporcional de negros, e da resistência à ação policial como motivadora do uso da força letal, também majoritariamente contra negros, não encontra contrapartidas na maior parte das vezes.

A ausência de controle da atividade policial evidencia que vidas negras também não importam por aqui. Se importassem, suas mortes seriam dignas de luto coletivo, de investigação, de punição do uso excessivo da força. Mortes decorrentes de intervenções policiais seriam esclarecidas de fato mediante investigações, e parte delas seria declarada homicídio, gerando denúncia por parte do Ministério Público e chegando até o tribunal do júri. Para se ter uma ideia da magnitude do problema, pesquisa da ouvidoria das polícias de São Paulo concluiu que 74% das mortes causadas pelas forças policiais do Estado possuíam indícios de uso excessivo da força.

Afirmar que vidas negras importam significa reconhecer o problema da vulnerabilidade racial à violência, diagnosticá-lo, conhecer seu endereço, saber quais batalhões e policiais possuem maior letalidade, quais bairros e segmentos populacionais estão mais vulneráveis, e agir com inteligência ao invés do achismo que rege a segurança pública há anos. É preciso retirar o cabresto da fábula da democracia racial na gestão da segurança pública no Brasil e encarar a realidade do racismo. Nossas vidas negras importam.

*Cientista em humanidades pela UFABC e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Brasil, uma nação de mortos-vivos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/brasil-uma-nacao-de-mortos-vivos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/23/brasil-uma-nacao-de-mortos-vivos/#respond Sun, 23 Aug 2020 14:32:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/A-noite-dos-mortos-vivos-320x213.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1507 Vinicius Torres Freire na Folha, hoje (23), foi perfeito em sua coluna sobre o momento em que o Brasil vive e sobre a capacidade do presidente Jair Bolsonaro em se revigorar no caos criado a partir de sua eleição. Freire afirma que diante de todas as adversidades, o presidente tem conseguido vitórias e se fortalecido. E, ao final, ele diz que, o mais provável para o país, é que “o Brasil voltará a sua rotina de violência aberrante, com uma causa mortis a mais, apenas. A indiferença ao morticínio é uma vitória da mentalidade bolsonariana”.

Peço licença a Vinicius Torres Freire para aproveitar suas figuras de linguagem, pois, a meu ver, o seu argumento é irretocável, exceto por um certo otimismo em achar que o país “voltará” à sua rotina de violência e indiferença. Pelos dados disponíveis, o Brasil nunca abandonou tal rotina e, o que ocorre agora, é que o bolsonarismo foi promovido à condição de políticas de governo. Mas a mentalidade ‘bolsonariana’ esteve e está presente entre nós faz décadas. A mão do “morto-vivo que rebrota da terra na madrugada do cemitério nevoento” está na verdade viva e se faz de morta para puxar o gatilho que continua a vitimar milhares de vítimas de homicídios e para apunhalar a democracia e a cidadania.

E isso fica ainda mais evidente quando constatamos que, mesmo em uma pandemia, os homicídios cresceram cerca de 6% no primeiro semestre de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. E, talvez o mais significativo, é que já são nove meses de crescimento ininterrupto dos homicídios, segundo dados do Monitor da Violência recentemente divulgados. Os homicídios cresceram em 17 estados do país, incluindo São Paulo, que vinha de 20 anos de reduções sucessivas dos homicídios. Houve, em São Paulo, um aumento de 4,7% no mesmo período.

E isso sem contar as Mortes Decorrentes de Intervenção Policial, que, somente no estado, cresceram mais de 20% no primeiro semestre deste ano. A mesma coisa se repete com a violência contra a mulher, que segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aumentou durante a Pandemia, mas já vinha de um longo ciclo de crescimento anual. Aliás, o FBSP alerta, faz 14 anos, para a falência do modelo de organização da segurança pública brasileira, e nos próximos dias deverá lançar a edição 2020 do Atlas da Violência, uma parceria com o IPEA, com dados que, mais uma vez, explicitará as recorrentes indiferença política e a naturalização da violência contra negros, mulheres, jovens, população LGBTQI+.

Indiferença que naturaliza, por sinal, o fato de 54% dos registros de estupros no Brasil serem de casos com vítimas com até 13 anos de idade. Crianças sem infância e reféns de uma cultura do estupro são criminalizadas por defensores dos bons costumes e da moral conservadora quando buscam seus direitos, como a menina que foi autorizada a fazer um aborto legal no Espírito Santo, sem que, no entanto, lembremos que a violência está presente no nosso cotidiano como uma das nossas marcas históricas mais perversas.

Violência que aceita a brutalidade policial nas periferias, em geral contra pardos e pretos, quase todos pobres, como na sequência de casos envolvendo a Polícia Militar de São Paulo, que a massificação das câmeras de celulares permitiu que chegasse ao conhecimento da opinião pública mas que não é novidade nenhuma nas “quebradas” paulistanas, nas favelas cariocas e/ou nas várias denominações dos bairros pobres das cidades brasileiras. Violência tão naturalizada que nos faz indiferentes ao fato dos jovens negros terem 2,5 vezes mais chances de serem assassinados e, em uma expressão carioca, ao fim e ao cabo, terem como horizonte de vida a convivência cotidiana com o temor de serem presos ou mortos em operações policiais (operações que, por sinal, colocam os próprios policiais em risco e cujos comandantes, quando questionadas, se eximem de responsabilidade e deixam o policial da ponta com o ônus exclusivo de justificar a sua conduta individual).

Violência que dizima indígenas em nome do combate ao tráfico de drogas ou que é perpetrada na defesa de um modelo de agronegócio predador, que desconsidera inclusive os avanços tecnológicos que um segmento mais moderno e consciente desenvolveu para o uso social, econômica e ambientalmente responsável de terras; incentiva a desregulação e desmonta a já precária capacidade fiscalização ambiental das instituições públicas. O caráter estratégico da Amazônia vira sinônimo de paranoia e não de planejamento responsável e análise geopolítica e ambiental de riscos efetiva, sem cabrestos ideológicos.

Violência que produz situações bizarras como mais de 30 anos de domínio cruel de territórios com milhões de brasileiros e brasileiras por facções de base prisional ou de milícias e, ao mesmo tempo, petições do Governo do Rio de Janeiro e do Ministério da Justiça e Segurança Pública contra a proibição de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia que se utilizam de argumentos que beiram o surrealismo, na medida em que são tão exatos para dimensionar ameaças que justificariam tais operações como vagos para explicar as razões pelas quais outros padrões de policiamento, menos violentos e baseados na inteligência, não são adotados.

Inteligência que, nos escaninhos do poder, deu guarida à produção do dossiê contra ex-secretários e policiais antifascistas pela SEOPI (Secretaria de Operações Integradas) e que foi considerada irregular pelo STF, enquanto não há conhecimento acumulado para se compreender as causas dos homicídios e que faz com que, eternamente, fiquemos em uma disputa narrativa entre aqueles que acreditam no peso do crime organizado e os que defendem que as tendências criminais são resultado ou de políticas públicas ou de macrocausas econômicas e demográficas.

Indiferença que torna a violência cotidiana e já visível para milhões de brasileiros em algo intangível e invisível às instituições, que se preocupam mais com seus interesses corporativistas do que com a mudança do cenário de crime e violência – isso para não dizer no liberou geral das armas de fogo em curso no país. Indiferença que se fortalece nas tentações autoritárias de uma sociedade acostumada com a ideia de inimigos internos e cujas preferências antidemocráticas estavam dadas muito antes do Governo Bolsonaro.

O bolsonarismo do presente não é algo exclusivo à figura de Jair Bolsonaro. É, infelizmente, um modo de ser e de pensar que tem a adesão de milhões de pessoas e que nos faz refletir sobre quanto anos serão necessários, na melhor das hipóteses, para que a cidadania e a vida sejam valores que refundariam uma nação tão perversamente dócil com a violência e o caos. Os mortos-vivos seríamos nós e não a mão descrita de Vinicius Torres Freire.

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Por que o Brasil caiu 3 posições no Índice Global de Paz? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/05/por-que-o-brasil-caiu-3-posicoes-no-indice-global-de-paz/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/05/por-que-o-brasil-caiu-3-posicoes-no-indice-global-de-paz/#respond Wed, 05 Aug 2020 14:31:38 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Armas1-320x213.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1499 Dos 163 países ranqueados, o Brasil está na posição 126, tendo caído três posições em relação ao ano anterior.

Por Carolina Ricardo*

Na semana passada foi lançado no Brasil o Global Peace Index (Índice Global de Paz – IGP) de 2020, que compara 163 países em relação a nível de paz encontrado em cada um deles, elaborado pelo Institute of Economics and Peace (Instituto de Economia e Paz), com sede em Sidney, na Austrália. O IGP é uma medida interessante, sendo um indicador complexo que articula três dimensões: 1) Conflitos internos e internacionais em curso no país; 2) Segurança social e pública; e 3) Militarização. Seu objetivo é promover um entendimento mais compreensivo do nível de paz encontrado nos países, sendo um esforço para categorizar a paz para além da presença ou ausência de guerras nos países.

A primeira dimensão inclui indicadores como quantidade e duração de conflitos internos, número de pessoas mortas em conflitos externos e participação do país nesses mesmos conflitos internacionais. Já a segunda, mais ampla e mais complexa, envolve indicadores tais como números de refugiados, escala de terror político (práticas autoritárias), nível dos crimes violentos, taxa de homicídios por 100 mil habitantes, probabilidade de manifestações públicas violentas, população prisional por 100 mil habitantes e policiais por 100 mil habitantes, acesso individual a armas de fogo. E, por fim, a terceira dimensão envolve indicadores como percentual dos gastos militares em relação ao PIB, total de militares por 100 mil habitantes, volumes de armas exportadas e importadas por 100 mil habitantes. É uma metodologia complexa e que se encontra muito bem detalhada no relatório  , assim como a descrição das fontes para cada indicador que compõe o índice. De toda forma, é uma forma ousada e inovadora de avaliar a paz.

O balanço geral do IGP 2020 é de que o nível de paz global sofreu uma deterioração em relação ao ano anterior, de 0,34%. Sendo a nona queda dos últimos 12 anos. Os aspectos que contribuíram para essa deterioração em nível global foram o aumento do terror político, aumento de refugiados e da intensidade de conflito internos. Dos 163 países ranqueados, o Brasil está na posição 126, tendo caído três posições em relação ao ano anterior. Na dimensão conflitos em curso, a posição do Brasil é a mais positiva entre as três, ocupando a 88ª posição. Já na dimensão segurança, o Brasil apresenta o pior resultado, estando em 145º e na dimensão militarização, em 120º.

O que explica a queda brusca na dimensão segurança, é a piora no indicador de crimes violentos, homicídios, terrorismo político (práticas autoritárias) e acesso às armas individuais. Ainda que os homicídios tenham caído entre 2018 e 2019, nossos números absolutos desse crime ainda são inaceitáveis. Segundo o relatório sobre homicídios do UNODC publicado em 2019, o Brasil tem a segunda maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes da América do Sul, só perdendo para a Venezuela.

Em relação ao indicador acesso às armas individuais, o IGP cria um ranking que categoriza os níveis de acesso às armas de fogo. Dadas às medidas de flexibilização do acesso às armas implementadas desde janeiro de 2019 , com cerca de 10 decretos e um sem número de portarias editadas nesse sentido, que já possibilitaram a entrada de cerca de 140 mil novas armas de fogo em circulação só no primeiro semestre de 2020 e a venda de 2 mil munições por hora no mês de maio, fica claro porque esse indicador ajudar a jogar o Brasil para baixo no IGP

Para revertemos esse quadro é imperativo fortalecer a política de controle de armas de fogo, priorizar a prevenção e o esclarecimento de homicídios, enfrentar com inteligência e planejamento os outros crimes violentos e, sobretudo, enfrentar o terrorismo político, por meio da defesa incessante das práticas democráticas e de respeito ao rule of law.

*Advogada e socióloga. Diretora Executiva do Instituto Sou da Paz

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Quem controla os subterrâneos da área de inteligência no país? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/25/quem-controla-os-subterraneos-da-area-de-inteligencia-no-pais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/25/quem-controla-os-subterraneos-da-area-de-inteligencia-no-pais/#respond Sat, 25 Jul 2020 15:09:48 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/07/André-Mendoça-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1479 Ministros André Mendonça e Augusto Heleno precisam explicar operação contra policiais antifascistas e ex-secretários.

 

Nesta sexta (24), o repórter Rubens Valente, do UOL, revelou ação sigilosa de inteligência, conduzida pela Seopi (Secretaria de Operações Integradas), uma das cinco secretarias subordinadas ao ministro André Mendonça e que foi criada como um desmembramento da SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública). Nesta ação, o Governo Bolsonaro monitorou 579 policiais e outros servidores da segurança pública ligados ao movimento antifascista e 2 ex titulares da SENASP e um ex-Secretário Nacional de Direitos Humanos.

Se alguma suspeita de irregularidade ou ilegalidade houvesse sobre as gestões dos ex-secretários, não caberia à SEOPI investigar, mas sim à Polícia Federal, à CGU, ao TCU e ao Ministério Público. Mas, para além disso, em sua resposta, o MJSP cita um Decreto de 200o para se defender e justificar a ação da SEOPI. Não sou da área jurídica, mas vejo algumas sombras e ruídos reveladores das mentalidades que regem a área no país.

No Decreto, ao contrário do que alega o Ministério, o órgão central do subsistema de segurança pública é a SENASP e não a SEOPI.  E a SENASP é confirmada neste papel em novo Decreto, o de número 9.491/2018, que reorganiza o SISBIN (Sistema Brasileiro de Inteligência), ao qual o subsistema citado pelo MJSP é vinculado e que envolve principalmente as forças policiais estaduais.

A reestruturação feita em outubro de 2019 pelo Governo Bolsonaro, que transferiu a área de inteligência da SENASP para a SEOPI, não altera o Decreto do SISBIN e, portanto, é possível se questionar se a operação estaria coberta pelas competências legais de inteligência da SEOPI*. Ademais, se a operação foi de segurança pública e persecução penal, competência concorrente da SEOPI e de outros órgãos do MJSP, não há sigilo na investigação exceto se decretado pelo Poder Judiciário.

Se a operação é de inteligência de Estado, justificada nas competências atribuídas pelo SISBIN (cuja função não é ser polícia política de governos), há, no mínimo, licença hermenêutica por parte do Governo para não coordenar suas ações e decisões sobre competências legais de cada órgão (hoje são 42 órgãos federais que participam do SISBIN, sendo 7 vinculados ao MJSP).

Nas sombras, sem controle, muitos fazem o que acharem que precisa ser feito na ideia de que não precisam prestar contas. E isso justifica, pelas suspeitas levantadas, que órgãos de Controle e do Sistema de Justiça, bem como a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional, se debrucem sobre a legalidade e o alcance da ação.

Essa confusão, como explicou Marco Cepik, em artigo aqui no blog, “decorre justamente da precária regulamentação das operações de inteligência no Brasil, algo particularmente grave na área de segurança pública. Em 2016, foi divulgada uma Política Nacional de Inteligência (PNI) por meio do Decreto 8.793. No ano seguinte, um Decreto sem número de 15 de dezembro de 2017 oficializou uma Estratégia Nacional de Inteligência (ENINT). Embora a criminalidade organizada, a corrupção e as ações contrárias ao Estado Democrático de Direito tenham sido incluídas no rol de ameaças com potencial para colocar em perigo a integridade da sociedade e a segurança nacional, nenhum dos dois documentos avança na especificação de missões prioritárias ou próprias de cada órgão do SISBIN“.

Não é um mero detalhe burocrático e/ou um ato individual do gestor ou de um diretor da SEOPI. A denúncia feita por Rubens Valente é gravíssima, pois diz respeito a uma ação de Governo, que atinge servidores públicos com fé pública e que gozam, como qualquer cidadão, de liberdade de expressão e que, em seus posicionamentos oficiais, criticam o governo mas defendem a democracia e a liberdade. E uma ação que ocorre no limbo de regulamentação da área de inteligência. Não há ameaças ou crime nos manifestos dos Policiais Antifascistas – podemos até discordar dos termos e das ênfases, mas jamais achar que eles não têm o direito de se manifestar.

Além disso, alcança três personalidades públicas, internacionalmente reconhecidas pela defesa da democracia, e que não cometeram nenhum crime ao defender reformas da segurança pública, promover a defesa de direitos humanos e criticar o atual governo. São 3 ex-secretários que, graças às suas atuações profissionais e suas capacidades intelectuais, tornaram-se referência no debate sobre um novo modelo de segurança pública, que garanta o controle do crime, a redução da violência e a garantia de direitos humanos.

Em suma, não apenas o Ministro André Mendonça precisa ser convocado para prestar esclarecimentos. É preciso saber se o Gabinete de Segurança Institucional – GSI, chefiado pelo General Augusto Heleno, como órgão central e coordenador do SISBIN, sabia e/ou autorizou a operação. Qual a cadeia de comando da operação e qual o seu alcance são perguntas que precisam ser respondidas com urgência. O presidente Bolsonaro foi informado da ação?

Em democracias, o sigilo é algo possível, desde que suas razões e implicações sejam algo que possa ser feito publicamente, com transparência e fiscalizado. Do contrário, autonomias ganham força e colocam em risco a institucionalidade do Estado de Direito. Uma operação como a revelada por Rubens Valente mostra que não é exagero retórico temer pelas liberdades individuais hoje no Brasil.

 

*Após a publicação deste texto, fui lembrado que o Decreto 9.661/2019 delegou à SEOPI, em seus artigos 29, III; e 31 IV, o papel de órgão central do subsistema de inteligência em segurança pública e que, por ser posterior ao de 2000 e ao de 2018 e serem atos normativos com mesmo peso, ele é o que vale. Do ponto de vista do direito administrativo, ok, essa é uma informação importante e por isso faço esta nota. Todavia, o argumento do artigo continua válido, ou seja, não há preocupação em dar transparência aos atos que regulam a atividade de inteligência (nem para dizer que certas informações serão sigilosas). E, mais, por ser a SEOPI uma unidade vinculada ao MJSP e não deter a prerrogativa legal de determinar o que as Unidades da Federação devem e podem fazer, a única regulamentação seria o SUSP, que o próprio MJSP informa que não está sendo plenamente implementado por não dispor de um sistema de governança adequado, conforme parecer da CGU.

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Os rumos da segurança pública na era Bolsonaro https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/08/os-rumos-da-seguranca-publica-na-era-bolsonaro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/08/os-rumos-da-seguranca-publica-na-era-bolsonaro/#respond Wed, 08 Jul 2020 18:16:59 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/manifestações.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1458 Ao longo dos últimos meses o tema segurança teve, como era esperado, forte destaque no debate público. Porém, mesmo em evidência, a área ganhou esse destaque mais pelas questões político-institucionais a elas associadas do que em função de uma discussão sobre redução da violência, do medo e do crime. Para entender as razões dessa dissonância, este texto aproveita reflexão feita para o Boletim Fonte Segura, mantido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para fazer um retrato panorâmico de alguns dos principais temas da agenda da área.

E o resultado é bastante preocupante e fonte de inquietudes, na medida em que percebemos que evidências foram mobilizadas e vários alertas foram emitidos mas poucas mudanças efetivas ocorreram. A começar pelo fato de o país não conseguir superar um cenário que tem se repetido nos últimos 30 anos, ou seja, um cenário que faz com que as políticas de segurança pública sejam formuladas e implementadas como que inseridas em um eterno pêndulo entre aqueles que acreditam segurança é efeito de macrocausas sociais e econômicas e os que preferem reduzir todos os problemas da área à eficácia do direito penal e do processual penal. Não construímos uma ética pública capaz de interditar a violência e guiar o país em direção a um modelo mais eficiente de controle do crime e garantia de cidadania.

Só mais recentemente começamos a falar de governança da segurança; de mudanças de gestão e de regras do jogo que pudessem criar condições para um ambiente de prevenção da violência, redução do medo e repressão qualificada do crime. Afinal, o Brasil possui um modelo de organização da segurança pública que gera, como tenho chamado atenção em outros artigos, diversos ruídos federativos e republicanos. Temos quase 1400 organizações públicas cujas atividades impactam diretamente na qualidade da segurança pública e não temos mecanismos robustos de coordenação de esforços entre órgãos de Estado, Poderes e esferas de governo. Ao contrário do SUS, na Saúde, a União não tem atribuição legal para coordenar o sistema de segurança como um todo.

Isso faz com que as Polícias Militares, por exemplo, atendam cerca de 150 milhões de ocorrências todos os anos no país e, em um looping sem fim, tenham que encaminhar para as Polícias Civis, Ministério Público e Poder Judiciário algo como 10 milhões desses atendimentos a cada ano. Temos números gigantescos e quase nenhuma articulação sobre como lidar com tal magnitude de casos, sendo quase tudo tratado da mesma forma – de um furto de um shampoo ao roubo de um carro forte, passando pela detenção de pessoas com pequenas quantidades de drogas. É quase impossível não saturar o sistema de justiça criminal, ainda mais quando cada instituição ou Poder define qual suas metas e planos de ação.

E, mesmo quando metas e planos existem, eles ficam dependentes de prioridades e lideranças políticas e/ou são fruto de articulação de organismos internacionais como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), que buscam influenciar o rumo e o sentido de políticas públicas como contrapartida à liberação de operações de empréstimos e assistência técnica oferecida por eles. Documento  obtido pela CNN Brasil, da Secretaria de Assuntos Econômicos Internacionais – SAIN, do Ministério da Economia, revela, por exemplo, negociação com a União em torno de 180 milhões de dólares para o financiamento de “Programa Federativo para Segurança Pública Inteligente”, com USD 45 mi desse valor destinado à “qualificação da gestão e da governança da segurança pública”; outros USD 45 mi para “implementação de programas de prevenção social e situacional da violência”; USD 72 milhões para a “modernização das organizações policiais”; e, por fim, USD 18 milhões para a “qualificação do sistema prisional e dos programas de ressocialização”.

O problema é que, em geral, tais projetos não mudam culturas organizacionais gestadas antes da Constituição de 1988, não obstante eles seguirem recomendações e boas práticas internacionais, conforme indica estudo elaborado pelo FBSP a pedido do Governo do Ceará quando da construção do Programa Ceará Pacífico (ver aqui), em 2018. Em não poucos casos, diante da possibilidade de novos recursos oferecida pelos Organismos Internacionais, gestores estaduais e federais agregam projetos de seus interesses já em curso à proposta conceitual formulada pelos bancos, sem necessariamente os componentes de cada projeto guardarem relação entre si e a unidade contratante ter mandato para implementar todas as atividades previstas. Essa é a forma burocrática que as Unidades da Federação, que com exceção de São Paulo, dependem de recursos federais de transferências voluntárias para fazerem investimentos em equipamentos e processos na segurança, aceitam interferências externas sem, contudo, mudar suas práticas. Ao fim e ao cabo, as operações de crédito internacional repetem as tentativas dos diversos planos nacionais de segurança pública durante os Governos Collor, FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro de vincular a liberação de recursos condicionando-os à aceitação de ações e programas específicos, mas possuem baixa capacidade de incidência e mudança.

Não há garantia de que os programas propostos terão a mesma eficácia e efetividade daqueles que os inspiraram no mundo mas, em contexto de restrição orçamentária, os recursos dos organismos internacionais mitigam a crise fiscal e a não observância, por parte do Governo Federal, das novas regras do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), que torna obrigatório o repasse de recursos das loterias para as Unidades da Federação. Importante destacar que o Governo Bolsonaro está tentando, na prática, bloquear o repasse de recursos de novas fontes de receita oriundas das loterias para oferecer às Unidades da Federação o aval à contratação de empréstimos internacionais, o que chama ainda mais atenção pela narrativa “antiglobalista” que o atual governo assume para si. Esse é um movimento temerário para as finanças públicas estaduais, pois troca recursos financeiros livres de encargos estimados, quando da promulgação do SUSP, em R$ 800 milhões em 2018; R$ 1,7 bilhão em 2019; e R$ 4,3 bilhões em 2022 por empréstimos que precisarão ser pagos. A contratação de operações de empréstimos internacionais seria um fator de maior transparência, qualidade do gasto e governança se viesse acompanhada pela execução dos recursos já disponíveis e mais baratos.

O mesmo governo que negocia, por intermédio do Ministério da Economia, a contratação de empréstimos internacionais para a segurança pública nos estados e DF é o Governo que, no Ministério da Justiça e Segurança Pública, deixa de executar a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social prevista no SUSP, em especial, como já analisado na edição 41 do Fonte Segura, a estruturação dos programas de Valorização Profissional dos Policiais e do SINAPED, sistema de avaliação e monitoramento que tem como função padronizar métricas e indicadores comuns a todos os integrantes do Sistema Único de Segurança Pública. O fato é que, apesar das reformas recentes com a criação do Sistema Único de Segurança Pública (2018) e a alteração da lei do Fundo Nacional de Segurança Pública com previsão dos recursos das loterias, gastos e ações no setor por parte do governo federal continuam inexpressivas (ver balanço da atuação de Sergio Moro à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública aqui).

Como pano de fundo, há dissonância entre a legislação infraconstitucional e os comandos da Carta Magna, sendo que praticamente toda a legislação que ainda hoje regula a segurança é anterior à Constituição de 1988 e os legisladores não regulamentaram o significado prático do ser e fazer polícia no contexto democrático; no contexto da ordem social inaugurada em 1988. As Polícias Judiciárias (Civil, Federal, Militar para crimes militares) se baseiam no instituto de inquérito policial, criado em 1871, e nos Códigos Penal e Processual Penal (Civil e Militar), da primeira metade do Século XX. As prisões são geridas com base em legislação de 1994 e as Polícias Militares ainda funcionam de acordo com os pressupostos do decreto Lei 317, de 13 de março de 1967, mantidos quase que intactos pelo R200 (Decreto  88.777, de 1983), que ainda está em vigor e que fala de “segurança interna” e não de “segurança pública”– legislação que, a priori, vai contra a Constituição na medida em que o seu Artigo 144  diz que as PM são gerenciadas pelos Governadores, enquanto o Artigo 3º. Do Decreto 88.777/83 diz que elas são “coordenadas” pelo Exército.

O resultado prático desta situação é que, ao ter dois chefes, as polícias militares foram se tornando excessivamente autônomas e hoje decidem quase sem questionamentos quem obedecer e quais seus padrões operacionais e o escopo de suas ações. E, considerando que o padrão de policiamento valorizado social e politicamente, independentemente de a polícia ser Civil ou Militar, é aquele que aceita a ideia de inimigo interno e que “bandido bom é bandido morto”, não é de se surpreender que tenhamos tantas mortes decorrentes de intervenção policiais. A investigação e o trabalho de inteligência cedem espaço para o enfrentamento bélico na percepção de como o controle do crime deve ser feito no Brasil, estimulando que as PM, que são as fiadoras da ordem pública, adotem padrões de uso da força que seriam inaceitáveis em democracias consolidadas no mundo.

A questão não é apenas a do abuso individual do policial mas de valorização do combate ao inimigo, mesmo que outros padrões de policiamento pudessem gerar melhores resultados na redução da violência e controle do crime. Esse fato justifica que tenhamos cerca de 6 mil mortes decorrentes de intervenção policial por ano no Brasil, número que, em termos comparativos, é 6 (seis) vezes superior ao dos Estados Unidos. Além disso, o clima de enfrentamento constante e as péssimas condições de trabalho dos policiais brasileiros estão entre os fatores que fizeram com que o número de policiais que cometeram suicídio no Brasil em 2018 (104 casos) fosse maior do que a quantidade que morreu em decorrência de confronto em serviço nas ruas (87).

Mas a responsabilidade não é exclusiva das Polícias Militares. Quando vemos os discursos políticos, por exemplo, de Jair Bolsonaro, Wilson Witzel e Joao Doria, quando de suas eleições, percebemos o estímulo à estratégia “mirar na cabecinha” e de ampliação de unidades especiais de polícia (que a mídia trata incorretamente como “tropas de elite”, o que faz com que os policiais que não fazem parte desta unidade pensem que elas são a referência do ser policial e adotem os mesmos padrões e subculturas) que funcionem no padrão “Rota” e que tirou policiais da Força Tática e do Patrulhamento Territorial por imposição do governador.  Não surpreende o crescimento dos casos de violência policial quando os governantes, por razões eleitorais, defendem polícias mais duras contra o crime.

O Ministério Público, por sua vez, que tem a prerrogativa constitucional do controle externo da atividades policial, tem enorme dificuldade em fiscalizar as Polícias para além do controle concentrado de cada inquérito policial instaurado e, em geral, foca na legalidade da ação individual de cada policial. Não há controle em matéria de tutela coletiva de padrões e procedimentos institucionais das polícias, mesmo após a Resolução CNMP nº 201/2019, que alterou as Resoluções nº 129/2015 e nº 181/2017, ambas do CNMP, com o objetivo de adequá-las às disposições do Direito Internacional dos Direitos Humanos, especialmente à decisão do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Enquanto isso, as Polícias Civis, acabam dependentes do volume de casos de flagrantes enviado pelas Polícias Militares e têm dificuldades para investigar e esclarecer a autoria de crimes, com especial ênfase a de homicídios de autoria desconhecida que demandam a observância de práticas comuns às polícias (isolamento do local do crime, colheita de evidências, custódia de provas técnicas, entre outros). Sem parâmetros comuns ou controle de tutela coletiva por parte do MP, tais crimes têm suas investigações afetadas pela baixa articulação interinstitucional na ponta da linha e pela falta de um projeto institucional para as polícias civis, que como consequência vão sendo sucateadas e relegadas pelos governantes. E o mais grave, o movimento da criminalidade fica, em muitos estados, mais suscetível à cena do crime organizado do que às políticas públicas de segurança. Governos costumam reivindicar méritos pela redução de tais crimes (quem não se lembra dos diversos tuítes de Sergio Moro vangloriando-se da queda dos crimes em 2019 sem, no entanto, apontar o que foi feito e/ou o seu silêncio após a retomada do crescimento dos índices), mas, quando eles sobem, como nos últimos 6 meses (Gráfico 1), as polícias são cobradas sem, no entanto, avançarmos na mitigação dos dilemas de governança impostos pelo pacto federativo e republicano vigente no país.

 

Elaboração do autor

Ao mesmo tempo, diante das pressões e das fragilidades institucionais, uma das expressões mais cruéis e invisibilizadas do racismo brasileiro se manifesta nos números da violência: 75% das vítimas da violenta letal no Brasil são negras. Jovens negros morrem mais do que jovens brancos; policiais negros, embora constituam 37% do efetivo das polícias são 51,7% dos policiais assassinados; mulheres negras morrem mais assassinadas e sofrem mais assédio do que as brancas. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Da mesma forma, faz 3 anos que estamos observando o crescimento dos crimes sexuais, agressões e feminicídios. E, com a Pandemia de Covid-19, há um agravamento da violência doméstica e crescimento ainda maior dos feminicídios. E esse crescimento não se reflete nos registros de ocorrências nas delegacias de Polícia, já que o isolamento social dificulta o deslocamento das vítimas, e coloca a necessidade de criação de novos canais de denúncia e acolhimento para mulheres em situação de violência.

E, para tornar o quadro ainda mais complexo, não há um índice nacional de esclarecimentos de homicídios que balize o planejamento integrado de ações. Levantamento realizado em 2018 pelo Monitor da Violência, parceria entre o Portal G1 com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência indicou que apenas 24,7% dos homicídios, em média, são esclarecidos e encaminhados para o Ministério Público no país, com Unidades da Federação apresentando percentuais ainda mais baixos e indicativos da completa falência da ideia de responsabilização de autores de crimes e violências, conforme gráfico 1. As instituições de segurança pública ficam pressionadas pelo congestionamento de casos na etapa inicial do trabalho policial, quase sempre fruto dos flagrantes em torno de crimes relacionados às drogas, uma vez que a legislação sobre o assunto (lei 11.343/2006), acabou por agravar o quadro de inequidades e falta de métricas que governa a segurança brasileira.

Elaboração do autor

E por falar em lei de drogas, um dos seus mais visíveis efeitos é a explosão da população prisional do país, que em 2019, segundo do DEPEN/MJSP, contava com cerca de 760 mil presos (em mais uma evidência da baixa coordenação e governança da área aqui também não há consenso entre os Poderes Executivo e Judiciário e o Ministério Público, com cada um apresentando um número diferente de presos). Cerca de 1/3 desses presos encontram-se em situação provisória, que é quando ainda não foram julgados ou quando aguardam a decisão sobre eventuais recursos interpostos.  Na impossibilidade de garantir condições mínimas de subsistência aos presos, o Estado, como um efeito colateral perverso da política criminal e penitenciária, acabou por fortalecer as mais de 70 facções de base prisional existentes no país, sendo as mais conhecidas o PCC e o Comando Vermelho, que entraram em guerra em 2016 e fizeram disparar as taxas de mortes violentas em vários estados. Este conflito assume contornos diferentes em cada UF, a depender das parcerias com facções locais, mas provoca um quadro de insegurança e incerteza muito grande.

Mais recentemente, as transferências de lideranças paulistas do PCC realizadas em 2019 e prisão de Fuminho, um dos maiores atacadistas de drogas da América do Sul, em 2020, pela Polícia Federal, parecem indicar uma mudança geracional dentro do PCC e que pode alterar a equação de forças entre as facções de base prisional. Facções estas que tiveram seus negócios afetados pela pandemia e precisaram encontrar novas fontes de financiamento e “capital de giro” para manterem seus pontos de venda de drogas (o tráfico internacional, em um exemplo, foi afetado pela diminuição de voos e pela redução da chegada e saída de mercadorias nos principais portos do país, chegando a faltar maconha para atender algumas grandes cidades como São Paulo).

No plano conjuntural, o sistema prisional brasileiro também tem sido pressionado pela pandemia de Covid-19. Dados do Prision Insider e do Global Prison Trends 2020 revelam que o Brasil encarcera cerca de 7% dos presos do mundo, enquanto registra aproximadamente 5% dos casos de Covid-19 e 4,2% das mortes de presos do planeta. Estes números fazem com que o país tenha o segundo sistema prisional mais afetado pela Covid-19 entre todos os países analisados. O Brasil só perde para os EUA, que respondem por 20,9% da população prisional mundial porém registram 74,4% dos casos de Covid-19 entre presos e 44,3% das mortes de presos do mundo.

Mas o que em tese seria uma notícia positiva pelo fato do país ter, proporcionalmente, taxas de contágio e mortalidade por Covid-19 dentro das prisões inferiores em relação à sua proporção de presos do mundo, tem-se perdido energias de prevenção e controle no debate político, aumentando riscos de rebeliões e reforçando o diagnóstico da baixa integração e articulação entre os diferentes atores e instituições cujas ações impactam diretamente a segurança pública. Ao longo da pandemia, o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN tentou implantar um modelo que, no começo da década de 2000, no Espírito Santo, ficou conhecido como “prisões de lata” e cujos efeitos deletérios são muito maiores do que os benefícios anunciados de separação e isolamento de presos. Da mesma forma, a sensação que o Judiciário estava abrindo as celas das prisões e libertando criminosos perigosos com a aprovação da Recomendação nº 62/2020, do CNJ. Porém, dados compilados pelo próprio CNJ indicaram que a taxa média nacional estimada de pessoas que voltaram a ser presas após deixarem os presídios em razão da pandemia do novo coronavírus e cometerem novos delitos foi inferior a 2,5%.

Em paralelo, o crescimento do poder das Milícias, sobretudo no Rio de Janeiro e no Pará, preocupa pelo fato de elas sinalizarem para a ideia de controle político dos territórios e das populações que neles residem ao mesmo tempo de serem compostas por muitos integrantes e ex-integrantes de forças policiais. Sem controle, as milícias representam um novo e perigoso patamar de violência política e que pouco tem merecido a atenção de autoridades do Poder Executivo e das Polícias. O temor é que, com o noticiário político expondo as ligações dos ex-policiais Fabricio Queiroz e Adriano da Nóbrega, morto pela Polícia da Bahia em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas para a população e acusado de ser o líder de uma das principais milícias do Rio de Janeiro, o “Escritório do Crime”, com a família do presidente Jair Bolsonaro, novas denúncias possam desestabilizar o cenário político-institucional do país.

E por falar em política, outro fator que pressiona os números da segurança pública é a excessiva politização das forças policiais do país. Ao contrário dos integrantes do Ministério Público ou do Poder Judiciário que, caso queiram se candidatar, precisam abrir mão de suas carreiras nestas instituições, a legislação brasileira tem brechas que fizeram com que, entre 2010 e 2018, 7.168 PM disputassem eleições em todo o Brasil sem a necessidade de saírem de suas carreiras – um em cada 58 policiais nas ruas tem ambições políticas —levando em conta que, ao final de 2018, as PMs tinham um efetivo de 417.451 homens e mulheres na ativa). Só se eleitos é que eles precisam se afastar. Do contrário, voltam para as corporações. O problema é que uma vez na política, dificilmente uma pessoa volta disposta a acatar ordens sem maiores questionamentos. Polícia e Política são duas esferas fundamentais da vida pública de uma nação democrática, mas elas não podem ser confundidas ou uma se apropriar da outra para a consecução de seus objetivos.

Um exemplo que demonstra o grau de politização das polícias e os riscos postos por ele é o motim da Polícia Militar do Ceará, em fevereiro, quando em meio a uma negociação salarial, uma entidade liderada por um apoiador do governo Bolsonaro colocou-se contra o acordo acertado entre as demais associações e o governo estadual, do PT, e fez com que, naquele período, cenas de terror e violência tomassem conta daquele estado. E, naquele mês, o Ceará registrou o recorde de 456 homicídios, que ajudou a reverter a tendência de queda nos índices deste crime que estavam sendo observadas entre 2018 e 2019. O levante só terminou após o envio, relutante, de tropas federais pelo Governo Federal e a aprovação, pela Assembleia Legislativa do Ceará, de projeto de lei do governador que proíbe anistias a policiais amotinados.

Demandas legítimas por melhores condições de vida, trabalho e salário dos policiais foram sendo apropriadas por projetos políticos partidários. Porém, em uma evidência de que tais processos sociais não são unidirecionais ou absolutos, o Governo Bolsonaro, que conta com a adesão de parcelas significativas de integrantes das polícias, tem avançado muito pouco na implementação de medidas concretas que favoreçam o todo das corporações policiais e tem preferido evitar concorrências internas ao bolsonarismo, como no caso do desconvite ao Coronel PM Araújo Gomes, que presidia o Conselho Nacional de Comandantes Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, para assumir a SENASP. A Secretaria Nacional de Segurança Pública foi dividida e o Cel Araújo Gomes foi preterido em favor de um outro oficial PM mais ligado ao núcleo de confiança do presidente e com muito menos exposição e ascendência juntos às Polícias Militares estaduais. Isso permite ao Governo manter o controle da narrativa de apoio aos policiais e foi, na minha avaliação, uma forma de evitar o fortalecimento de lideranças que não do presidente, como os ex-ministros Sergio Mouro e Luiz Henrique Mandetta.

 

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Após a morte de George Floyd, movimento “Defund the Police” quer o fim das polícias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/06/10/apos-a-morte-de-george-floyd-movimento-defund-the-police-quer-o-fim-das-policias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/06/10/apos-a-morte-de-george-floyd-movimento-defund-the-police-quer-o-fim-das-policias/#respond Wed, 10 Jun 2020 13:44:03 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/manifestações.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1445 Diante das acusações de racismo e violência, cresce nos EUA o movimento de cortar os orçamentos das polícias e transferir os recursos economizados para outras políticas sociais. Para entendê-l0, o Faces da Violência republica artigo de Jacqueline Sinhoretto, da UFSCar, originalmente elaborado para o boletim de análise Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Não só o edifício da unidade policial responsável pela morte de George Floyd foi destruído pelo fogo. O equivalente à câmara municipal de Minneapolis, nos EUA, acaba de aprovar o desmantelamento da polícia. A organização policial dessa cidade acabou.

O orçamento destinado à polícia será, em parte, aplicado no suporte social à comunidade negra para minimizar os efeitos da Covid19, em termos sanitários e econômicos. Outra parte será empregado na reconstrução da polícia em bases comunitárias.

É um novo capítulo da história americana em que os termos dismantle e defund entraram no vocabulário das relações entre polícia e sociedade. Jornais com o New York Times e The Guardian destacam a questão, informam que Los Angeles reduziu o financiamento da polícia e outras cidades estudam fazê-lo[1].

Desde 1980 os investimentos em corpos policiais e tecnologias de policiamento multiplicou-se. As reformas do período visavam a redução de crimes violentos nas cidades americanas. Várias vertentes de reformas concorreram no campo policial, de um lado a tecnificação, com uso de de análise de dados, planificação, sistemas de gestão, fluxos de tomada de decisão, criação de protocolos e reformas na educação policial. De outro, modelos comunitários de policiamento, participação social, transparência, foco nos diferentes públicos e integração com as políticas de assistência social e prevenção. Uma terceira vertente apoiou-se em políticas de tolerância zero, encarceramento massivo, “guerra às drogas”. A militarização das polícias se tornou também crescente, com o uso mais frequente de armamento pesado. Os políticos de direita supervalorizaram a terceira vertente, e a importaram para a América Latina como modelo de polícia que funciona.

Estudiosos da criminologia demonstraram que o declínio das políticas sociais coincidiu com o crescimento das políticas de controle do crime. Menos bem-estar, mais prisão e polícia. O enxugamento do Estado só teve uma exceção. Se a polícia produz mais medo do que segurança, se ela mata, se ela discrimina, se as prisões não ressocializam e não cumprem os direitos civis, isso não se reverteu em questionamento dos métodos, dos objetivos e dos recursos destinados à prisão e à polícia.

Investimentos milionários continuaram a ser revertidos, enquanto o encarceramento em massa passou a ser analisado como um complexo industrial da punição: sua função de lucro e geração de empregos era mais importante do que sua capacidade de reintegrar socialmente os egressos.

Os dados do encarceramento, amplamente analisados, demonstraram seu caráter discriminatório e seletivo. As prisões americanas segregam negros e latinos, sendo a “guerra às drogas” o grande motor do controle social racista. Enquanto isso, a polícia afirmava a efetividade da filtragem racial para o controle do crime: ao mapear as áreas problemáticas, são as comunidades negras as que têm mais problemas, portanto é lá que o policiamento deve se concentrar e o número de abordagens de pessoas negras deve crescer.

Pouco a pouco o policiamento comunitário foi esquecido como base da reforma. Cada vez mais a tecnificação do trabalho policial e a tolerância zero levaram a concentrar a repressão nos bairros negros.

No século 21, a violência declinou nas cidades norte-americanas. Mas a estrutura de repressão baseada na ‘discriminação estatística’ das comunidades negras e latinas não parou de produzir mortes. Entre os países ricos, os EUA têm de longe o maior número de pessoas mortas pela polícia. Os casos se sucedem produzindo resistência. Em Nova Iorque a justiça chegou a proibir a abordagem policial por causa da filtragem racial e dos efeitos da discriminação para as pessoas negras. O movimento #BlackLivesMatter se fortalece ao lutar contra as mortes dos cidadãos negros pela polícia.

O protesto por justiça para Floyd já dura duas semanas. Ganhou apoio para desmantelar e reduzir o financiamento da polícia porque é grande o descontentamento com os resultados do alto investimento. A polícia cresceu demais, os modelos de policiamento que predominaram no campo policial produzem desigualdade racial e brutalidade policial. Hoje a violência da polícia preocupa mais do que a violência do crime.

Vários estados regularizaram o uso e a comercialização da maconha, tornando obsoleto o caro e brutal aparato de “guerra às drogas”. A sociedade evoluiu no tema e as polícias perderam espaço. São crescentes os apelos para a desmilitarização das polícias e aumento de transparência e controle dos abusos.

O punitivismo, acoplado à injustiça racial, chegou ao limite durante a crise da Covid19, expondo os vínculos políticos do aparato tecnológico do policiamento, supostamente neutro, com a opressão racista. Em Minneapolis, a decisão foi dissolver a organização policial dado o seu alto grau de comprometimento profissional e organizacional com o modelo que produz brutalidade policial e desigualdade racial. Uma nota de 20 dólares preocupa a polícia mais do que a proteção da vida quando essa anima um corpo negro. Os protocolos de operação induzem ao uso desproporcional da força, a educação policial e as técnicas de imobilização permitem que a voz que diz não conseguir respirar seja ignorada até seu completo silenciamento.

Pede-se agora menos polícia, mais bem-estar. Pede-se o recuo do protagonismo absoluto da polícia na produção da segurança pública e o repensar profundo das bases que orientam o policiamento. Os sistemas integrados de proteção social são o horizonte da sociedade civil que protesta, exigindo da polícia que consuma menos dinheiro e que repense sua razão de ser. Os recursos devem ser destinados às políticas de suporte social das comunidades negras, políticas redistributivas, na construção da reconciliação e da democracia americana em direção a uma sociedade menos violenta. São os novos ventos do norte a insuflar uma ruptura nas concepções e nos saberes sobre “justiça” e “vida segura”.

[1] Para conhecer mais: https://www.nytimes.com/2020/06/05/us/defund-police-floyd-protests.html, https://www.theguardian.com/us-news/2020/jun/04/defund-the-police-us-george-floyd-budgets, https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/06/07/policia-de-minneapolis-sera-desmantelada-e-reconstruida-camara-municipal.htm

 

Jacqueline Sinhoretto, socióloga, professora da Universidade Federal de São Carlos, coordenadora do GEVAC UFSCar.

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