Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 As polícias não podem decidir sobre quando e como devem respeitar decisões judiciais e as leis https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/as-policias-nao-podem-decidir-sobre-quando-e-como-devem-respeitar-decisoes-judiciais-e-as-leis/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/as-policias-nao-podem-decidir-sobre-quando-e-como-devem-respeitar-decisoes-judiciais-e-as-leis/#respond Tue, 23 Nov 2021 18:47:50 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/favela-RJ-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1850 O STF tem a oportunidade de, na ADPF 635, atualizar a jurisprudência que disciplina a segurança pública brasileira e baliza doutrinas de atuação policial. As polícias não podem decidir sobre quando e como devem respeitar decisões judiciais e as leis

 

Esta semana o STF retoma o julgamento da ADPF 635/2020, que vetou operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, exceto em casos emergenciais e condicionados à prévia notificação ao Ministério Público. São vários os aspectos a serem considerados e discutidos, ainda mais diante de operações como a no Jacarezinho, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em maio deste ano, e agora a no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, pela PMERJ.

Nessas horas, o debate parece ideológico e revela embates de diferentes valores e moralidades. Todavia, precisamos pensar alguns aspectos jurídico constitucionais prévios, na ideia de sugerir ao pleno do STF uma reflexão mais ampla sobre o direito à segurança. Em minhas aulas na FGV, desde 2014, tenho insistido no fato de segurança ser um direito fundamental e, portanto, que  justiça social só se faz garantindo-o em sua plenitude. Vivemos em um Estado de Direito e, nele, instituições públicas são sujeitas a freios e contrapesos, não há poder absoluto.

Há muitas confusões conceituais no cotidiano da segurança pública brasileira, até por ela ser mais um campo organizacional e não um conceito fechado, delimitado. Porém, vale reler o que diz nossa CF:

Segundo o Caput do Artigo 144 da CF, que regula como ela será assegurada para a população, “segurança pública, dever do Estado, DIREITO e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Esse é o artigo mais comumente lembrado quando falamos do tema, mas quase sempre para dizer qual corporação/instituição pode ou não atuar no campo.

Porém, neste mesmo caput, o Artigo 144 faz relação a um fato central, ou seja, explicita que segurança é um direito e, enquanto tal, está inscrito no preâmbulo da Constituição Federal e nos Artigos 5o e 6o, que tratam dos direitos fundamentais. Diz o Preâmbulo:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”

Já o artigo 5º, por sua, vez, diz, em seu caput, que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. Termos esses que se traduzem em 78 itens ou premissas fundamentais que precisam ser observadas na organização do Estado e na sua forma de agir.

Entre eles, vários associados à ação em comunidades, como o III, que diz que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;  o XLIX, que assegura aos presos o respeito à integridade física e moral; ou o XLVII, que reforça que não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada.

Na Constituição e/ou na legislação infraconstitucional, contudo, não há uma definição clara sobre o que significa “ordem pública”, deixando para as polícias a interpretação operacional do que significa mantê-la. Isso aumenta a discricionariedade e reduz controles. Aqui uma evidência da importância do julgamento da ADPF 635, pois ela pode ter um impacto prático muito maior do que o inicialmente previsto. Ela pode dar balizas para a modernização jurisprudencial da legislação, ainda sustentada por normas anteriores a 1988.

Por exemplo, o “poder de polícia” é regulado apenas no Código Tributário Nacional, de 1966, em seu artigo 78, onde está definido que:

“Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com OBSERVÂNCIA DO PROCESSO LEGAL e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem ABUSO OU DESVIO DE PODER”

A ADPF é importante, ainda, pois a própria Constituição, em seu Artigo 144, parágrafo 7º, prevê que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a EFICIÊNCIA de suas atividades“. Oras, não preciso ser jurista para interpretar que “EFICIÊNCIA”, aqui, é garantir o que está previsto no preâmbulo e no capítulo dos direitos fundamentais e que, portanto, as polícias não podem tudo, até porque não faltam leis que disciplinam a ação do Estado, a exemplo do Código de Processo Penal, a Lei que cria o Sistema Único de Segurança, a  Improbidade Administrativa, entre outras.

O STF tem a oportunidade de, na ADPF 635, atualizar a jurisprudência de modo a disciplinar tais tópicos e modernizar doutrinas de atuação policial frente ao que a CF prevê. O CNMP, por sua vez, dado que o Ministério Público detém a prerrogativa de controle externo da atividade policial não precisaria aguardar o STF e poderia, ele próprio, ampliar a ação dos Ministérios Públicos para além do controle de cada caso; do controle de eventuais desvios individuais de conduta. É preciso tratar segurança como um direito coletivo e difuso e cobrar os responsáveis por sua garantia para que ele seja implementado de acordo com a premissa de ser um direito fundamental inalienável e condição para o exercício da cidadania.

O Brasil precisa atualizar sua legislação e cobrar os órgãos para se ajustarem ao ordenamento constitucional. Isso significa repensar leis gerais ou orgânicas, normas operacionais e mecanismos de governança e controle. As polícias não podem ter liberdade para decidirem sobre quando vão respeitar decisões da Justiça. Uma segurança pública de fato eficiente pressupõe respeito incondicional às regras do jogo e, no Estado de Direito, quem dá a última palavra é o Judiciário. Não podemos aceitar nada além disso.

 

 

Para saber mais:

Segurança Pública no Brasil: história de uma construção inacabada. Marco Aurélio Ruediger e Renato Sérgio de Lima (orgs). Editora da FGV.

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Despolitizando as polícias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/despolitizando-as-policias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/despolitizando-as-policias/#respond Mon, 02 Aug 2021 18:09:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/17407680_PAZ-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1832 PEC 21/021 propõe restrições para militares da ativa das Forças Armadas ocuparem cargos civis. Iniciativa é boa, mas deveria ser estendida também a todos aos policiais brasileiros.

Arthur Trindade Maranhão Costa*

 

Tramita na Câmara dos Deputados uma proposta de emenda constitucional que visa impedir que militares da ativa ocupem cargos civis. A PEC 21, apresentada pela deputada Perpétua de Almeida (PCdoB – AC), foi motivada para impedir situações como a do general Pazuello, que ocupou o cargo de ministro da Saúde sendo militar da ativa. Embora proponha restrições apenas para militares da ativa das Forças Armadas, a PEC deveria ser estendida para todos os policiais brasileiros.

Pazuello não é o único caso. No atual governo federal, vários integrantes das Forças Armadas, Polícias Militares, Polícias Civis e Polícia Federal ocupam cargos civis. Mesmo estando na ativa, estes profissionais respondem por secretarias e departamentos nos diversos órgãos da administração federal como o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Ministério da Ciência e Tecnologia e IBAMA.

A situação não é nova e tampouco se restringe à administração federal. Nos governos estaduais é comum que policiais da ativa ocupem cargos civis de natureza política. Também é frequente a presença de policiais da ativa trabalhando em gabinetes de parlamentares. Até no judiciário podemos encontrar policiais da ativa servindo como assessores de desembargadores.

A prática é ruim por dois motivos. Primeiro, porque desvia policiais das atividades fim. Em alguns estados o número de policiais cedidos – esse é o termo técnico – ultrapassa a casa dos milhares. A falta de efetivos não tem servido de justificativa para diminuir as cessões. As resistências são grandes, começando obviamente pelos policiais cedidos. Parlamentares e magistrados pressionam os governadores para manter policiais como assessores. Os próprios secretários de governo também demandam pela permanência desses policiais em cargos civis.

O segundo motivo é a indesejada politização dessas instituições. Os policiais e militares que ocupam cargos civis não emprestam apenas seus conhecimentos técnicos. Eles constroem também laços de lealdade política que se estendem por vários anos. Ao ocupar cargos civis, esses profissionais ingressam em grupos políticos seletos. Mesmo que retornem para suas instituições de origem, esses laços de lealdade política permanecem e são utilizados em dois sentidos. Eles permitem que as lideranças políticas estendam sua influência para dentro das instituições policiais. Além disso, a lealdade política é utilizada por alguns policiais para obter privilégios nas promoções e nomeações.

Há policiais que passaram a maior parte das suas carreiras em cargos civis de natureza política. É o caso atual ministro da Justiça Anderson Torres. Apesar de ser delegado federal da ativa, Torres passou a maior parte dos seus 18 anos de carreira cedido a outros órgãos. Ele foi assessor no gabinete do deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR) por oito anos e permaneceu mais dois anos como secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Não há dúvida que Anderson construiu uma carreira muito mais política do que policial.

Por esses motivos, a PEC 21/2021 é oportuna e deveria alcançar também os policiais. Seria um passo importante para despolitizar as polícias.

*Arthur Trindade M. Costa é professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Na edição desta semana, leia também “Proteção à narrativa policial distorce julgamentos na Justiça Militar” e “Violência armada atravessa a rua e entra em casa durante a pandemia“.

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A face não regulada do mercado da segurança privada https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/a-face-nao-regulada-do-mercado-da-seguranca-privada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/30/a-face-nao-regulada-do-mercado-da-seguranca-privada/#respond Fri, 30 Jul 2021 14:24:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/605464-high-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1834  

Cleber Lopes*

A 15° edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública trouxe novamente um retrato importante do setor de segurança privada regulado pela Polícia Federal. Os dados dão conta da existência de 2.235 empresas especializadas na prestação de serviços de vigilância patrimonial intramuros, transporte de valores, escolta armada e segurança pessoal privada; 236 cursos de formação de vigilantes; e 1.154 empresas que organizam seus próprios serviços de vigilância ou transporte de valores. Essas organizações empregam cerca de 526 mil vigilantes, número superior à soma dos efetivos das polícias militares e civis (500 mil policiais).

Embora o setor regular de segurança privada seja amplo, ele é apenas a face mais formal e visível do mercado de proteção existente na sociedade brasileira. A maior parte desse mercado é formado por um universo desprovido de regulação estatal. Esse universo é composto por (a) organizações formais que prestam serviços regulados pela Polícia Federal, mas sem autorização; (b) organizações formais que atuam em áreas não reguladas, como segurança eletrônica, serviços de investigação particular, vigilância em vias públicas e outras; (c) organizações informais que vendem serviços de segurança à revelia da lei ou sem qualquer controle estatal; e (d) “seguranças autônomos” que prestam serviços como freelancer para pessoas ou organizações.

É difícil saber com precisão o tamanho desse universo não regulado. A natureza informal ou irregular de muitas atividades dificulta a mensuração.  Estudo realizado em 2019 com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) sugere que o número de pessoas ocupadas em atividades de segurança privada no Brasil é 2,3 vezes maior do que o número de vigilantes que atuam no setor regulado pela Polícia Federal. Esses números certamente estão subestimados, já que a PNAD tem dificuldades para captar ocupações irregulares como a de agentes de segurança pública que prestam serviços de segurança privada em seus horários de folga.

Existe uma ampla zona de intersecção entre os setores de segurança pública e segurança privada no Brasil. A participação de agentes públicos na gestão ou na operação de empresas de segurança é proibida pelas organizações de segurança. Entretanto, essa proibição não tem impedido que membros dessas organizações comandem empresas ou façam bicos como seguranças. Sujeitos a escalas de trabalho longas (12 ou 24 horas, por exemplo) seguidas de períodos de descanso igualmente longos (48 ou 72 horas, por exemplo), muitos agentes de segurança pública buscam um segundo emprego nos momentos reservados ao descanso. A prática é tolerada nas organizações de segurança pública como uma política informal de compensação aos baixos salários pagos pelo Estado. Quando a oportunidade é boa, é o trabalho no setor público que passa a ser o segundo emprego que complementa a renda dos agentes e fornece os recursos valorizados pelos contratantes – a arma de fogo, o treinamento, os contatos privilegiados com as polícias e a autorização para usar recursos coercitivos em nome do Estado.

A existência desse mercado de proteção não regulado pelo Estado tem inúmeras consequências. Uma delas recai sobre o setor regular de segurança privada, que enfrenta a concorrência predatória de provedores de segurança clandestinos cujas práticas frequentemente prejudicam o processo de profissionalização do setor. Outra recai sobre a área de segurança pública, cuja qualidade dos serviços é prejudicada pelo descanso indevido dos profissionais que fazem bico e pela sua maior exposição à violência letal. Como o Anuário Brasileiro de Segurança Pública vem mostrando, em torno de 2/3 dos policiais militares e civis brasileiros são mortos fora de serviço, em muitos casos em um segundo emprego como segurança. Por fim, a ausência de controle sobre provedores de segurança representa uma ameaça à liberdade e à vida das pessoas, como casos de abusos recentes indicam. Em situações extremas, essa ausência de controle pode resultar na constituição de organizações especializadas em matar e oferecer proteção a atores criminais, como é o caso do “Escritório do Crime” no Rio de Janeiro, organização informal ligada ao assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.

No momento em que o mercado de segurança privada se torna objeto de preocupações públicas, impulsionadas pelo assassinato de João Alberto Silveira Freitas por seguranças de uma loja do Carrefour de Porto Alegre, é importante olhar para a face não regulada do mercado de proteção brasileiro e discutir como controlá-la. É onde os olhos menos enxergam que estão os maiores perigos.

 

* Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina e coordenador do LEGS – Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança.

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Efeito Contágio: o papel da mídia na repetição de assassinatos em massa https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/14/efeito-contagio-o-papel-da-midia-na-repeticao-de-assassinatos-em-massa/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/14/efeito-contagio-o-papel-da-midia-na-repeticao-de-assassinatos-em-massa/#respond Fri, 14 May 2021 22:04:40 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Back-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1772 Ampla divulgação de massacres pode contribuir para a ocorrência de casos semelhantes. Jornalistas devem evitar citar o nome dos perpetradores e não publicar suas fotos

 

Caroline Back*

Mais um caso de assassinato em massa chocou o país no dia 04/05: um rapaz de 18 anos invadiu uma creche no interior de Santa Catarina e matou a golpes de facão três crianças e duas professoras, tentando em seguida cometer suicídio. A ocorrência de mais essa tragédia evidencia uma preocupação: há algo que se possa fazer para tentar evitar casos como esses?

Nesse sentido, este artigo busca trazer reflexões acerca da cobertura midiática dessas ocorrências e a possível influência em novos casos, o chamado “efeito contágio”. Além disso, oferece orientações para direcionar a cobertura de tais eventos de forma a minimizar esse efeito.

Cobertura midiática e o efeito contágio

Há muito tempo, teóricos da psicologia e sociologia sabem que comportamentos tendem a ser imitados com base nas suas consequências e esse efeito pode ser particularmente devastador no caso de comportamentos violentos.

Exemplo disso é o chamado “efeito Werther”, termo proposto pelo sociólogo David Phillips, em 1974, para descrever a influência da divulgação de atos suicidas na ocorrência de outros casos. O fenômeno foi observado na Alemanha, no final do século XVIII, após uma onda de suicídios ter sido relacionada ao trágico desfecho do personagem Werther – da célebre obra de Johann Von Goethe, publicada em 1774.

Acredita-se que o mesmo fenômeno esteja relacionado aos casos de assassinatos em massa, o chamado “efeito contágio”, indicando que a ampla divulgação dos massacres possui o efeito de gerar outros casos semelhantes, de indivíduos que buscam imitar os ataques e receber a mesma atenção.

Esse fenômeno pode ser explicado, em parte, pela ampla publicidade que se dá a tais eventos. Por exemplo, um levantamento mostrou que os autores de sete assassinatos em massa entre 2013 e 2017 receberam aproximadamente US$ 75 milhões em menções de mídia gratuitas. Esse tipo de publicidade gratuita pode ter o mesmo efeito de publicidades pagas, aumentando o número de interessados no assunto e inspirando a prática de novos casos.

Além disso, já foi demonstrada correlação positiva entre o número de vítimas e a publicidade obtida pelo agressor. Um estudo que analisou assassinos em massa entre os anos de 1976 e 1999 descobriu que aqueles que mataram e feriram mais vítimas tinham uma probabilidade significativamente maior de aparecer no jornal The New York Times em comparação aos casos em que houve menos derramamento de sangue. Ou seja, a maior atenção recebida pode ser um incentivo a mais para o criminoso matar o maior número de vítimas possível.

Tal fato tem uma explicação psicológica: acredita-se que uma das características frequentes em assassinos em massa é a presença de um traço narcísico, que os leva a querer chamar a atenção da sociedade para seus atos “grandiosos” e até mesmo uma espécie de “competição” com outros ofensores para fazerem o maior número de vítimas.

Nesse sentido, Lankford documentou 24 exemplos de perpetradores que admitiram abertamente buscar fama e citou casos adicionais em que há fortes evidências comportamentais que indicam essa intenção. Alguns desses indivíduos estavam inclusive competindo com outros para se tornar o assassino em massa mais famoso da história.

Cobertura midiática e a influência em novos casos: dados assustadores

Para compreender melhor esse fenômeno, estudos buscaram identificar a influência da divulgação midiática na ocorrência de novos ataques. A maior parte deles foi feita com base em tiroteios em massa, que é reconhecidamente a forma mais comum desses ataques. Os dados são assustadores: um estudo realizado em 2015 estimou que cada evento possa incitar pelo menos 0,30 novos casos.

Outro propôs uma metodologia para estabelecer uma relação de causa e efeito entre os eventos. Ao analisar casos entre 2013 e 2016, nos EUA, concluiu que nada menos do que 58% de todos os tiroteios em massa podiam ser explicados pela cobertura de notícias. Os estudos ainda apontam um período de quatro dias a duas semanas em que essa influência estaria presente.

Recomendações

Assim, as principais recomendações para a cobertura desses eventos na mídia são simples e práticas, mas podem ser muito efetivas:

1. Não citar o nome do perpetrador nem sua foto;

2. Em vez disso, usar o ano, local do ataque e uma palavra como “perpetrador” ou “suspeito”;

3. Não usar nomes, fotos ou imagens de perpetradores anteriores;

4. Evitar retratar o indivíduo como “competente” no seu intuito homicida;

5. Evitar retratá-lo como “agressivo” ou “perigoso”, pois pode ser uma espécie de recompensa ou atributo a ser imitado;

6. Relatar todo o restante sobre o caso, com a quantidade de detalhes desejada.

Quando o assunto for a cobertura dos assassinatos em massa: “não os nomeie, não os mostre, mas relate todo o resto”.

 

*Psicóloga na Secretaria de Segurança Pública (GMSJP – PR); Especialização em Segurança Pública; Cursando Pós-Graduação em Neurociência Criminal e Comunicação não-verbal; Graduação em Psicologia (PUCPR); Cursando Graduação em Direito (FESPPR); Membro do Conselho Comunitário de Execuções Penais de São José dos Pinhais (CCEP-SJP).

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Na edição desta semana, leia também “Rio de Janeiro e o desgoverno da segurança” e “Ministério Público e o controle da atividade policial“.

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Os fuzis na favela https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/25/os-fuzis-na-favela/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/25/os-fuzis-na-favela/#respond Thu, 25 Feb 2021 17:49:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/fuzis-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1684 O porte disfarçado, antes limitado ao atirador esportivo, foi estendido a caçadores e colecionadores e compromete as possibilidades de rastreamento de armas

Bruno Langeani*

Na noite em que o Brasil atingiu 1.204 mortes pela Covid-19, o presidente editou quatro decretos de flexibilização de armas, publicados pouco antes de embarcar para descansar em Santa Catarina. De lá, ao ser questionado sobre como as medidas impactavam o rastreamento de munição, tergiversou: “Fala pros ‘especialistas’ rastrearem os fuzis que estão na favela”.

Bolsonaro não gosta muito de prestar contas. É frequente também que transfira responsabilidades que são suas. Sua resposta pode funcionar no Twitter, mas não resiste a um sopro.

A estrutura para rastrear fuzis que estão “na favela” é de competência federal, assim como a de investigar o tráfico internacional de armas. E, nesta área, o Brasil também vai mal, como mostra uma matemática simples.

Em dois anos, o país só conseguiu dar detalhes da apreensão de 7 mil armas, segundo relatório sobre o tema lançado em 2020 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Nos mesmos dois anos, o número de apreensões reais supera 240 mil; 233 mil armas ficaram de fora.

A ironia triste é que este dado só está disponível porque os “especialistas” da sociedade civil conseguem reunir mais informações do que o governo. Se nosso país mal consegue contar as apreensões e não sabe quais os tipos e calibres de armas apreendidas, como poderá rastreá-las?

É importante destacar que o problema não está na Polícia Federal, que tem um dos melhores expertises nesta atividade, de onde se originou a suspensão temporária de importação de armas pelo Paraguai, após provarem, com rastreamento, o tráfico para o Brasil. Sem que os estados compartilhem com a União dados das suas apreensões de maior volume e sem aumento de estrutura para o Centro de Rastreamento da PF, seguiremos mal.

Se de fato estivessem preocupados com os “fuzis na favela”, Bolsonaro e o ministro da Justiça já teriam atacado estas falhas. Ao invés disso, escolhem desmontar as possibilidades de controle. Com o pacote do carnaval, ultrapassamos 30 dispositivos sobre armas publicados nesta gestão.

É no conjunto da obra que o perigo se revela. Antes de 2019, os cidadãos tinham autorização de compra para até duas armas, apresentando justificativas em cada compra. Bolsonaro aumentou para quatro armas e agora seis.

A compra de munição por arma para civis era de 50, passou para 200. E estaria agora em 600 por ano, caso a Justiça não tivesse suspendido a medida, em um dos poucos freios até agora. No momento, há dois decretos vigentes que tratam da arma do civil, um que inclui apresentação de justificativa para compra de arma e outro que a omite, ainda que a lei assim exija. A opção fica por conta do freguês.

Para entender este emaranhado, classificado pelo Ministério Público Federal como “caos normativo”, é possível enquadrar as mudanças em três eixos. O primeiro é o de facilitação de acesso à compra de armas e ao porte. Em segundo, um aumento substancial nas armas e munições que podem ser compradas por cada categoria, aliado à ampliação em quatro vezes da potência de armas permitidas, possibilitando que civis tenham armas iguais ou mais potentes que as da própria polícia, como .40 e .45. Por último, estas medidas foram acompanhadas da perda de capacidade de fiscalização, já que foram revogadas portarias de aperfeiçoamento da marcação e rastreabilidade de armas e munições.

Dentre os pontos mais graves, o porte disfarçado, criado contra a lei em 2017 e limitado a atirador esportivo, foi estendido a caçadores e colecionadores. Este porte, que já era bastante problemático, agora não está limitado a horário, nem trajeto.

Se um atirador disser que está levando seus fuzis e outras armas de seu acervo do Paraná para o Rio de Janeiro, ainda que as circunstâncias sejam suspeitas, nada poderá ser feito pela polícia, que não tem acesso aos sistemas nem para verificar se o documento é verdadeiro, nem se as armas têm registro.

O governo abriu mão de controlar carregadores de munições e miras laser ou telescópicas. Máquinas de recarga de munição e projéteis até o calibre .50 não demandam mais registro no Exército, nem do fabricante, nem do comerciante, nem do consumidor. Se antes alguns armeiros do tráfico buscavam o CR no Exército para acessar insumos de recarga e turbinar suas atividades ilegais, agora não têm mais que se preocupar. Nas palavras do presidente, “desburocratizou”.

Mesmo contra a lei, o porte passou a se desvincular da arma e ter abrangência nacional. Antes a PF modulava a limitação territorial de acordo com a circunstância. Com isso, autoriza agora a pessoa a carregar consigo até duas armas do seu acervo simultaneamente.

No campo dos policiais, o limite de seis aumentou para oito armas, abrindo um precedente para o uso de armas pessoais em serviço. Isso dificulta ainda mais o controle do uso da força letal.

A liberação do uso de munições apreendidas não só colocará em risco os policiais, que contarão com munição de procedência duvidosa, como dificultará o esclarecimento de mortes por intervenção. Com doações, a marcação de lote exigida pelo Estatuto do Desarmamento é perdida. Com todas estas alterações, a aprovação da excludente de ilicitude passa a ser cada vez menos necessária.

Voltando aos fuzis, o mesmo relatório da UNODC destacava de forma positiva o fato de que, no Brasil, o fuzil no crime tem um valor considerado alto em comparação com outros mercados ilegais. Isso acontecia pois eram restritos a poucas unidades de forças de segurança, havendo assim, menos oportunidades de desvio no mercado doméstico.

Com a liberação para compra de até 30 unidades por atirador e fim do monopólio nacional, fuzis de várias marcas estão sendo recebidos em casa por civis. Neste novo Brasil, organizações criminosas não precisarão mais recorrer ao tráfico internacional, basta arrumar um laranja.

Com isso, o fenômeno da locação de fuzis, derivado da baixa disponibilidade, não será mais necessário. Como diz o release do governo, “desburocratizou”.

 

*Gerente do Instituto Sou da Paz, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e mestrando do Programa de Políticas Públicas da Universidade de York.

 

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Na edição desta semana, leia também “Prisão do deputado Daniel Silveira é controversa” e “O que justifica o aumento das mortes violentas sem causa definida?”.

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A saúde mental dos profissionais de segurança pública não faz quarentena https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/18/a-saude-mental-dos-profissionais-de-seguranca-publica-nao-faz-quarentena/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/18/a-saude-mental-dos-profissionais-de-seguranca-publica-nao-faz-quarentena/#respond Thu, 18 Feb 2021 21:45:25 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/policias-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1672 Desde o início da pandemia, profissionais da segurança pública continuam nas ruas trabalhando e sendo expostos ao vírus. Pensar em estratégias e políticas de saúde mental é essencial para esses agentes. 

Dayse Miranda*

Fernanda Cruz**

Desde março de 2020, temos assistido a uma série de descontinuidades nos serviços em detrimento de restrições sanitárias. Praticar o isolamento e o distanciamento social são as principais medidas preventivas para o COVID-19. No entanto, sob essa justificativa, alguns serviços fundamentais de assistência à saúde mental dos profissionais de segurança pública estão ameaçados.

Considerados como trabalhadores essenciais desde o início da pandemia, os profissionais de segurança pública permanecem nas ruas, expostos ao vírus e convivendo com o medo de se contaminar e contaminar aos seus familiares. Neste contexto, o suporte emocional se faz essencial para esses agentes. 

Sabemos que o descaso com a saúde mental dos profissionais de segurança pública não teve início com a pandemia. A Saúde Mental é um tema polêmico e pouco compreendido na Segurança Pública no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, o suicídio é um problema de saúde pública. Entretanto, as organizações de segurança pública brasileiras tendem a considerá-lo como um problema de saúde do sujeito em sofrimento psíquico. 

Um reflexo dessa visão é que as instituições não se preparam para lidar com o problema de uma forma coletiva. Os serviços assistenciais- quando existem- enfrentam uma série de desafios, desde a carência de profissionais até a resistências internas para manter seu funcionamento. A lógica dominante ainda é a de que um bom policial não precisa deste tipo de serviço e de que muitos policiais fingem adoecimento para se esquivarem do trabalho policial. 

O estudo que realizamos em 2014 nas 27 unidades federativas nos ensinou que o cuidado com a saúde mental dos agentes de segurança pública não faz parte do planejamento estratégico das polícias militares. A inexistência de vontade política fica evidente quando recapitulamos a agenda das políticas estaduais de segurança pública desde a institucionalização do primeiro Plano Nacional de Segurança Pública no país em 2000. 

É evidente que identificamos avanços nos últimos anos. Muitos deles tratam-se de iniciativas de policiais que passaram a buscar diversas fontes de conhecimento para mudarem a realidade de suas próprias instituições. No Distrito Federal, por exemplo, o Programa de Valorização da Vida foi instituído em 2018, por meio de articulação entre a Capelania e o Centro de Atendimento Psicossocial. O objetivo da iniciativa era fornecer uma perspectiva interdisciplinar comprometida com o cuidado integral e preventivo da saúde.

Apesar dos avanços, identificamos que quando não acontece o comprometimento coletivo dos gestores com a promoção da saúde mental dos agentes, as ações de intervenção e prevenção são rapidamente enfraquecidas ou descontinuadas. No entanto, essa escolha tem gerado uma série de revezes. Em primeiro lugar, para os próprios policiais, que não encontram o amparo necessário em suas instituições.

Em segundo lugar, para as famílias desses agentes, que muitas vezes representam o espaço onde policiais extravasam suas tensões e frustrações. Em terceiro lugar, para a própria instituição policial, que passa a conviver com um ambiente de trabalho marcado por perdas, desde casos de afastamento por saúde mental e até casos de suicídio entre os seus agentes. Por fim, para a sociedade, afinal é ela que demandará os serviços deste policial. 

Existe um longo caminho a ser percorrido para melhorar a atenção a saúde dispensada a esses profissionais. A existência de espaços de escuta e atendimento qualificado sem dúvida é um ponto fundamental. Entretanto, há questões organizacionais que precisam ser revisadas, entre elas estão: longas jornadas de trabalho, condições inadequadas de trabalho, punições arbitrárias, o convívio com humilhações verbais, carência de recursos humanos e materiais, entre outros. 

Quaisquer que sejam as ações de promoção da saúde desses profissionais, é preciso que elas tenham capilaridade e perenidade. Em momentos de crise, o cuidado com a saúde emocional do profissional de segurança pública é fundamental, por isso reforçamos que a saúde mental deve fazer parte da agenda de prioridades das políticas de segurança pública desde país. Do contrário, todos sairão perdendo.

*Socióloga, doutora em Ciência Política pela USP e coordenadora da área de ensino e pesquisa do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES).

**  Pesquisadora de pós-doutorado do NEV/USP e pesquisadora associada do IPPES.

 

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Na edição desta semana, leia também “Bolsonaro arma os amigos” e “Os conselhos tutelares na prevenção à violência contra crianças e adolescentes”.

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Violência e desmatamento caminham juntos na Amazônia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/violencia-e-desmatamento-caminham-juntos-na-amazonia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/violencia-e-desmatamento-caminham-juntos-na-amazonia/#respond Thu, 28 Jan 2021 14:48:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/fotoprincipal-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1643 Territórios desmatados têm maior taxa de assassinatos rurais por 100 mil habitantes. Mais do que nunca, as áreas de segurança pública e meio ambiente precisam se integrar. 

Sofia Reinach*

Isabela Sobral**

A discussão sobre crimes ambientais na Amazônia é urgente e vem se aprofundando nos últimos anos. As evidências apontam que a situação se agrava rapidamente e que a atenção para o assunto deve ser prioridade nacional. Ao mesmo tempo, o país assiste a um cenário alarmante nos índices de violência rural e urbana. As taxas de mortes violentas intencionais, estupros e agressões justificam o medo que a população sente ao sair de casa ou definir seus trajetos cotidianos.

Apesar de ambos os cenários trágicos serem objeto de diferentes esforços e trabalhos analíticos, o olhar para a forma como crimes ambientais e crimes violentos estão relacionados na região amazônica ainda é incipiente no país. O intuito desse texto é, portanto, demonstrar como avançam os crimes violentos nas diferentes regiões amazônicas, considerando o grau de desmatamento das áreas.

Em 2007, Celentano e Veríssimo publicaram o estudo “O Avanço da Fronteira na Amazônia: do Boom ao Colapso”, em que dividem a Amazônia em quatro zonas de cobertura: “não-florestal”, “desmatada”, “sob pressão” e “florestal”. As áreas “não florestais” são regiões cobertas por cerrados e campos, onde as principais atividades são pecuária extensiva e agricultura. As áreas “desmatadas” foram cobertas por florestas, mas já possuem mais de 70% da sua área desflorestada. As regiões “sob pressão” constituem aquelas localizadas nas novas fronteiras de ocupação e, portanto,  com maior risco de desmatamento atualmente. Por fim, as áreas “florestais” compreendem regiões mais conservadas, com apenas 5% de desflorestamento. A publicação mostra que, naquele período, havia uma maior incidência de homicídios e maior taxa de assassinatos rurais por 100 mil habitantes nas zonas “sob pressão”.

Recentemente, em conjunto com pesquisadores do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), em um esforço de contribuir com o trabalho da Revista Piauí num artigo sobre a Amazônia, buscamos atualizar essa informação. Para tanto, foram recalculadas as divisões das zonas de cobertura para cada ano analisado. Além disso, outros dados foram utilizados para a análise. Primeiramente, vale observar como se dá a distribuição de crimes na região da Amazônia Legal no momento mais recente. A tabela abaixo apresenta dados relacionados à violência em 2018, provenientes de diferentes fontes de dados.

Conforme é possível verificar na tabela, as zonas “sob pressão” possuem maiores taxas de violências não letais registradas pelo Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação). Tanto violência sexual, como violência física apresentam maior quantidade de notificações por 100 mil habitantes do que as outras áreas. No entanto, ao tratar de violência letal, é a zona “desmatada” que responde pela maior taxa de homicídios, seguida pela zona “sob pressão”. Considerando a conclusão do estudo de Celentano e Veríssimo (2007), houve uma mudança importante no comportamento dos índices de violência letal na zona “desmatada”. O gráfico abaixo apresenta o comportamento das taxas de homicídio nas diferentes categorias nos dois períodos.

O gráfico traz as médias das taxas de homicídio em dois períodos: 2004 a 2007 e 2015 a 2018. Ou seja, entre um conjunto de barras e o outro existe um intervalo de oito anos. É possível verificar que no primeiro período as taxas de homicídio eram significativamente maiores nas zonas “sob pressão”. No entanto, passados oito anos, a violência subiu nas áreas “não florestal”, “desmatada” e “florestal”, praticamente se igualando à taxa das zonas “sob pressão”. As áreas desmatadas apresentaram até uma média superior à taxa da zona “sob pressão”. Ou seja, é possível verificar que a violência se tornou um fenômeno mais frequente em todas as áreas amazônicas.

Apesar de todas as áreas terem visto um crescimento significativo das taxas de violência, também é digno de nota que as maiores taxas de homicídios estão em áreas que tem algum grau de desmatamento. Ou seja, apesar de essa não ser uma constatação de causalidade, pode-se afirmar que violência e desmatamento são fenômenos que caminham juntos.

O que se debate aqui, portanto, é a urgência de aprofundar os estudos e análises que relacionam crimes violentos e crimes ambientais. Existem fortes indícios de que os fenômenos possuem convergências, como apontam os dados acima. A compreensão de como a área de segurança pública pode se relacionar com a área ambiental e estas, juntas, contribuírem para a compreensão desse contexto é um desafio a ser enfrentado no país.

 

*Mestre em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas – SP. Graduada em Administração Pública na mesma escola. Pesquisadora do Centro de Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas e pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

**Graduada em Ciências Sociais pela USP, mestranda em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “A atuação da PRF nas operações do Ministério da Justiça e Segurança Pública” e “Acidentes aeronáuticos: aspectos periciais

 

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O mito do policial herói e a farsa do reconhecimento profissional https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/o-mito-do-policial-heroi-e-a-farsa-do-reconhecimento-profissional/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/o-mito-do-policial-heroi-e-a-farsa-do-reconhecimento-profissional/#respond Mon, 25 Jan 2021 14:27:06 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Fernando-Frazão-Agência-Brasil-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1635 O policial não precisa morrer no cumprimento do dever; necessita reconhecimento pelo serviço público que executa e não pelo sangue que é derramado em falsas batalhas.

Alexandre Pereira Rocha*

Ganhou grande repercussão o assassinato do policial militar Derinalto Cardoso dos Santos ao tentar impedir um assalto na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, no dia 5 de dezembro de 2020. O caso se espalhou rapidamente pelas redes sociais, especialmente no meio policial. Chamou atenção a frieza de um dos assaltantes, que não titubeou em disparar um tiro à queima-roupa na cabeça do policial. Mais um agente de segurança pública se foi. Restam a dor e a indignação de familiares e amigos. Condolências e salvas de tiros. Nada mais.

O caso ficou registrado em filmagens do estabelecimento comercial. O policial Derinalto se depara com um assalto e não declina de sua missão. Assim, ele adentra bravamente na cena do crime. Pelas imagens, parece que Derinalto identifica um suspeito. Mesmo com o delinquente sob sua mira, ele não dispara imediatamente. Por sua vez, um comparsa se aproveita da situação e surpreende Derinalto com um tiro na cabeça. Pessoas correm em desespero. Os assaltantes fogem. Derinalto fica caído no chão.

Por fatalidade, o policial se tornou a vítima no cumprimento do dever. Por isso, ele ganha o reconhecimento póstumo de herói. Ele também seria visto como herói, só que num estágio mais fantasiado, caso tivesse obstado o assalto com tiroteio e morte dos delinquentes. Nessa hipótese, é bem provável que fosse elogiado pessoalmente pelo atual presidente da República Jair Bolsonaro, condecorado pela polícia militar e aplaudido pelo jornalismo pinga-sangue. Não obstante, a realidade é outra: Derinalto foi morto e a designação de mito heróico não muda isso.

A morte do policial Derinalto não é um mito. Da mesma forma, não são lendas os frequentes embates entre criminosos e policiais pelas periferias do Brasil afora. Do mesmo modo não é mito o fato de policiais terem de colocar suas vidas em risco no enfrentamento a delinquentes fortemente armados. Pelo contrário, tudo isso é uma trágica realidade. Mas o mito está nos discursos de certas autoridades, políticos e setores sensacionalistas da imprensa, que lucram com o mantra da guerra contra o crime. O mito está nas representações sociais que idealizam o martírio como próprio do exercício policial.

O mito do policial herói é parte do imaginário social e revigorado por filmes, histórias e romances ao estilo Tropa de Elite. Isso, em si, não é problema. A questão é quando isso se torna parte intrínseca das políticas de segurança pública no Brasil. Esse mito não encontra lastro na realidade, mas em narrativas criadas e replicadas que mascararam dramas da segurança pública. É fato. O mito do policial herói – que é capaz de se imolar em prol da proteção da sociedade – é conveniente para ocultar as precárias condições de trabalho, baixos salários e desvalorização da maioria dos policiais brasileiros.

Esse mito desvirtua o papel do policial como profissional de segurança pública. Isso porque ele consolida conceitos autoritários, seja, em nível individual, ao estimular a agressividade e a coragem visceral como padrão de ser policial; ou ainda, em nível institucional, ao incentivar prioritariamente estratégias bélicas e violentas como formas eficazes de policiamento.

A verdade é que o mito do policial herói é uma farsa de reconhecimento profissional, o qual desconsidera inúmeras discriminações entre cargos e patentes no âmbito das corporações; além das gritantes distorções entre polícias civis e militares em níveis estadual e nacional. Em suma, disfuncionalidades em termos de remunerações, carreiras, organizações, legislações e condições de trabalho, as quais evidenciam que há várias realidades policiais no Brasil, mas todas equivocadamente interpretadas pelo mito do policial herói.

O policial brasileiro não precisa do distintivo de herói. Afinal, isso não agregou nada ao policial Derinalto, bem como para tantos outros policiais que trabalham em situações adversas e desvalorizados profissionalmente. De fato, o que o policial precisa é ser avaliado como oficial de segurança pública, o que implica reformas nas arcaicas estruturas verticalizadas das polícias. Enfim, o que o policial necessita é de profissionalização, para ser reconhecido integralmente pelo serviço público que executa e não pelo sangue que é derramado em falsas batalhas.

Além disso, o tenente-coronel ainda acrescentou que o PM deve adaptar-se ao meio no qual ele está inserido no momento de sua atuação, de forma que ele não pode ser “grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando”.

A partir da fala do referido oficial, nos parece óbvio que os episódios que envolvem o abuso de autoridade, de poder e o excesso de violência por parte das instituições de segurança pública, em especial das PMs, e que são divulgadas pela mídia constantemente, como ocorreu em dois casos neste mês junho de 2020 em SP, corroboram a lógica ideológica da atuação policial no Brasil, que vê no pobre e negro da periferia o seu inimigo a ser combatido e “domado” e, neste sentido, nada melhor que os exemplos da vida nua e crua para desvelar esta realidade.

Que o diga o caso dos PMs que foram solicitados para atender a uma ocorrência de violência doméstica na casa de um empresário morador de Alphaville, um condomínio de alto padrão na Grande São Paulo, e que foram recebidos por ele aos xingamentos, insultos e todos os tipos de grosserias e destemperos típicos de uma elite raivosa e demagógica que, diga-se de passagem, “defende” os policiais nas redes sociais. Importante frisar que todo o rompante autoritário do dito empresário foi gravado, assim como também foi clara a passividade dos policiais militares para agir diante do explícito desacato cometido por parte do “cidadão de bem”.

Por mais que discursos corporativistas de outros policiais queiram defender os PMs utilizando-se do argumento do controle emocional necessário, dificilmente o medo do empresário por sua condição econômica aparece como o fator determinante para o corpo inerte dos policiais diante de uma imagem que exigia uma ação enérgica para conter um agressor em potencial.

No outro caso, ao contrário, imagens gravadas revelaram em cadeia nacional os espancamentos cometidos por PMs a um jovem em uma periferia da zona norte de São Paulo. Na cena, oito PMs usam da brutalidade para cometer a violência contra um jovem passivo que diz “não ter feito nada” e ainda por cima trata os PMs por “senhor”, afirmando ser “trabalhador”. Em uma patrulha com oito policiais, em que todos estão dispostos a usar da violência contra o jovem pobre, fica difícil pensarmos em uma situação de exceção quanto à forma como as PMs atuam nas periferias.

Recordemos do caso “Rambo”, ocorrido na Favela Naval, em Diadema, em 1997, no qual policiais militares foram filmados por um cinegrafista amador violentando e extorquindo moradores em uma blitz, o que resultou na morte do mecânico Mário José Josino, de 29 anos. O PM conhecido por Rambo atirou nas costas do mecânico, que se encontrava em um carro em movimento. Passados quinze anos, e após cumprir oito anos de prisão, Rambo deu uma entrevista à TV afirmando que agiu “para consertar uma sociedade que não tem jeito de consertar”, de certa forma eximindo-se da culpa e racionalizando sua justificativa como se a morte de um homem pobre e inocente não significasse nada.

De um lado, um jovem na periferia paulista, um Josino, um Amarildo e tantos outros que têm em comum o fato de pertencerem aos estratos sociais menos abastados da sociedade, bem como o fato de receberem do Estado, nestes casos representados por suas PMs, os tiros, porradas e bombas. De outro o empresário e a elite como um todo que, para além de já receberem do Estado as PMs para fazer valer seu status quo, também desrespeitam o profissional e, neste contexto, a não ser que sejamos acéfalos ou que tenhamos interesses, fica difícil não ter uma visão crítica sobre a atuação do Estado através dos aparatos de segurança pública, principalmente de suas policias militares, sobretudo no que diz respeito à violência contra os menos favorecidos.

Portanto, quem precisa de polícia e é parado no Brasil, em grande medida, são os “periferizados”, em grande parte negros, vítimas de um processo histórico de abandono, que têm de suportar a autoridade impositiva de uma polícia que foi criada e se desenvolveu para lidar com os pobres e estigmatizados. Pensando por uma lógica psicanalítica, como os PMs em sua maioria se originam das classes médias e baixas, talvez, inconscientemente, eles ajam para exercer poder contra aqueles que representam a projeção deles mesmos, como uma forma de destruir uma imagem que deixa explícito que eles/elas estão também na base maior e inferior da hierarquia social.

Mas, em conjunto, só podemos reproduzir aquilo que aprendemos a fazer pela formação profissional que passamos, pelo machismo e ideal de masculinidade e virilidade, pela pressão grupal, pelo desejo de potência, pelo sadismo em impingir sofrimento ao outro. Tudo isso só revela o quanto a violência policial demonstra ser um problema distante de resolvermos em nossa cada vez mais frágil democracia.

 

*Alexandre Pereira da Rocha é Doutor em Ciências Sociais (UnB), Policial Civil no Distrito Federal (PCDF) e Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

 

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Na edição desta semana, leia também “Saída temporária na execução penal: o paradoxo” e “A sucessão nos Estados Unidos e o perigo das forças de segurança politizadas”

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Amadores e profissionais no roubo a bancos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/amadores-e-profissionais-no-roubo-a-bancos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/12/11/amadores-e-profissionais-no-roubo-a-bancos/#respond Fri, 11 Dec 2020 22:42:53 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/banco-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1619 Assaltos recentes a bancos revelam a criatividade dos criminosos para levantar grandes quantias de dinheiro. Em ambos os casos, porém, a polícia demonstrou preparo para investigar e enfrentar membros das grandes quadrilhas.

 

Guaracy Mingardi*

 

Os roubos ocorridos semana passada em Criciúma (SC) e Cametá (PA) chamaram a atenção não apenas pela semelhança, mas também pelo curto espaço de tempo entre os dois. São crimes de vulto, com grandes efetivos e armamento pesado. Mas a semelhança fica por aí. Ao que tudo indica, o crime ocorrido na cidade catarinense foi mais profissional que o do Pará. Inclusive por um fato bem instigante. Apesar de aterrorizarem uma cidade, atacar a polícia, provocar uma morte e movimentar o noticiário de todo o país, os ladrões não levaram nada do banco em Cametá. Ou pelo menos foi isso que afirmou o governador do estado. Teriam errado o cofre a ser explodido.

Essa quase simultaneidade de casos mostra como esse crime está se popularizando. Só esse ano ocorreram dois em cidades médias de São Paulo. O tipo criminal, portanto, está se tornando rotina, apesar dos alvos já não serem tão rentáveis como no início. Sucessor direto do crime conhecido como Novo Cangaço, os roubos cinematográficos de transportadoras de valores tiveram início há cerca de cinco anos. Desde os primeiros, já havia um modus operandi estruturado, pronto para ser utilizado nas cidades médias e grandes, em áreas muito urbanizadas, onde as rotas de fuga são complicadas. Santos e Campinas, as duas primeiras cidades onde o novo modelo foi testado, são cidades grandes, parte de manchas urbanas de mais de um milhão de habitantes. O caso mais rumoroso foi em 2017, quando uma quadrilha brasileira subtraiu mais de R$ 11 milhões de uma transportadora de valores no Paraguai.

Nos primeiros casos, as quantias roubadas foram milionárias e pegaram a polícia e as transportadoras de valores de surpresa. Ocorreram num momento de inflexão dos roubos a banco comuns, quando as medidas de segurança teriam diminuído as chances de serem bem-sucedidos. Além das portas giratórias, alarmes e câmeras no interior e fora dos bancos, o grande empecilho eram os cofres com temporizadores, que só permitem a abertura num horário determinado de antemão. Com esse sistema, os ladrões não conseguiam obrigar o gerente a abrir o cofre, portanto tinham acesso somente ao dinheiro dos caixas, o que era um espólio pequeno, tendo em vista o risco do assalto. Ou seja, o benefício do roubo a banco tradicional não compensava o risco da prisão.

O mundo do crime é muito criativo. Com os roubos a banco entrando em desuso e as outras modalidades rendendo pouco, os mais criativos dos antigos ladrões de banco arquitetaram os megarroubos. Na verdade, o início não foi simples, exigiu a conjugação de alguns fatores. Talvez o mais importante foi que em 2006 o Primeiro Comando da Capital (PCC) ganhou o controle dos presídios e das ruas em São Paulo. E a partir daí criou uma estrutura que permitiu imiscuir-se no tráfico e aos poucos controlar boa parte dessa atividade no estado. Ao mesmo tempo a organização expandiu-se no país, arregimentando todo tipo de criminoso, ou seja, não apenas traficantes. A estrutura quase empresarial do PCC sempre visou, além do controle dos presídios, facilitar a vida dos “irmãos”, como como são chamados os membros. Inclusive está escrito em vários de seus estatutos que eles são vítimas da opressão, portanto têm direito de cometer qualquer crime para sobreviver. E nem só de tráfico vive a criminalidade.

Com o crescimento da estrutura, passaram a apoiar vários empreendimentos dos membros, em troca de uma fração do lucro. Por conta dessa atividade terceirizada, e não para proteção das “biqueiras”, compraram armamento pesado, principalmente fuzis e algumas metralhadoras .50, que são armas essenciais para os mega-assaltos. Lembrando que em seu principal mercado, São Paulo, não existe qualquer organização criminosa que possa competir com o Primeiro Comando. Portanto, não é (ou não era) necessário o uso de armamento pesado para proteger os locais de venda de drogas, as “biqueiras”. Outro ativo oferecido pela organização são os especialistas em explosivos, imprescindíveis para abrir caminho ou explodir cofres nos grandes roubos.

A junção desses três fatores – dificuldade nos roubos a banco, ladrões profissionais subutilizados e uma forte organização de apoio – resultou na criação do atual modelo. Em vez de quatro ou cinco homens, número habitual, assaltarem um banco, quarenta pessoas, bem organizadas e armadas, roubam cinquenta, cem vezes mais do que nos roubos comuns. E com dois ou três golpes desses o participante, mesmo de baixo escalão, tem dinheiro para se manter por um ano ou mais. Já os líderes ficam com capital suficiente para uma aposentadoria parcial.

A questão é que o adversário, no caso a polícia, não ficou parado nesse tempo. Se adaptou aos poucos ao novo crime e apreendeu a investigá-lo. Tanto que já começou a prender suspeitos do assalto de Criciúma. O caminho para chegar aos autores foram alguns fragmentos de impressões digitais, achados pela polícia catarinense nos carros usados na fuga. Eles foram encaminhados para São Paulo, onde a Polícia Civil conseguiu identificar alguns dos criminosos. Até agora foram presos suspeitos em ao menos três estados: São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, graças ao esforço conjunto das polícias.

O profissionalismo, portanto, não está apenas de um lado da mesa. Essa mesa, que é triangular, tem profissionais dos três lados. De um, estão os criminosos que praticam esses roubos, e de outro alguns policiais especializados o suficiente para enfrentar as grandes quadrilhas. E, no terceiro, estão os bancos, que aprenderam que não é bom deixar tanto dinheiro em um só lugar. E como são dois contra um, daqui um tempo esse crime, que chama muita atenção, passará a minguar, devido ao desbalanceamento do custo/benefício.

Os grandes ladrões, porém, não ficarão de braços cruzados nem optarão por uma vida honesta, afinal são profissionais do crime. Vão inventar uma nova modalidade que causará manchetes indignadas. E terão sucesso até que o estado, representado pelas polícias, aprenda a investigar o novo crime. E então o ciclo reiniciará.

 

* Guaracy Mingardi é analista criminal e associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

Acompanhe as edições semanais integrais do Fonte Segura, a newsletter com dados e análises sobre segurança pública. Acesse: fontesegura.org.br.
Na edição desta semana, leia também “Criciúma e Cametá: saiba o que mudou nos roubos a bancos nas últimas décadas” e “O policial tem que ter coragem até para não aceitar ordens que violem direitos humanos”, diz Charles Ramsey”.

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A regulação do mercado da maconha no Uruguai https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/12/04/a-regulacao-do-mercado-da-maconha-no-uruguai/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/12/04/a-regulacao-do-mercado-da-maconha-no-uruguai/#respond Fri, 04 Dec 2020 12:58:02 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/12/15987179205f4a7fe03cc7f_1598717920_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1612 Três anos após sua implementação integral, o modelo de regulação uruguaio parece responder às expectativas de funcionamento. Apesar de alguns obstáculos, os usuários têm aderido ao mercado formal proposto pelo governo.

 

Laura Girardi Hypolito*

Em 2013, o Uruguai se tornou o primeiro país a aprovar um modelo de regulação do mercado da maconha em nível nacional com o controle da produção, venda e consumo reservados ao Estado. O projeto de lei surgiu a partir de uma iniciativa do Poder Executivo do país em 2012, durante o mandato do então presidente José Mujica, dentro de um contexto de expansão da agenda de direitos individuais e também de resposta ao aumento dos índices de violência e criminalidade no país.

No contexto de atuação do governo no sentido de enfrentar problemas relacionados à segurança pública, é criada a Estrategia por la Vida y la Convivencia, um pacote de quinze medidas para abordar a questão da segurança no país. Dentre estas estavam propostas como alterações sanitárias vinculadas ao atendimento de usuários de drogas, mudanças associadas aos problemas de corrupção policial e falta de transparência nas atividades da polícia, planos vinculados à diminuição da violência doméstica, propostas de fortalecimento do tecido social e medidas com a finalidade de intervir nas cidades para promover espaços de integração entre diferentes grupos sociais. E, dentre estas quinze medidas, estava a proposta de legalização regulada e controlada da maconha no Uruguai.

Assim, em 2013, a Lei 19.172 é aprovada no Uruguai e o Estado passa a assumir o controle e a regulação das atividades de importação, exportação, plantação, cultivo, colheita, produção, aquisição de qualquer forma, armazenamento, comercialização e distribuição de cannabis e seus derivados, ou cânhamo quando correspondente. Com a finalidade de supervisionar todo o processo, foi criado o Instituto de Regulación y Control del Cannabis (IRCCA).

É importante salientar que a lei de regulação da maconha configura uma exceção dentro da lei geral de drogas vigente no Uruguai. Deste modo, ainda que o país nunca tenha criminalizado o consumo e porte de nenhuma substância considerada ilícita, a nova lei estabelece um regime especificamente para permitir as atividades previstas pelo modelo regulador da cannabis.

A partir da vigência da lei, o consumo da maconha com fins recreativos é assegurado aos usuários do país mediante três modalidades de acesso previstas na lei: o cultivo doméstico, os Clubes de Membresía Cannábicos e a compra em lugares autorizados (farmácias). As autorizações são permitidas às pessoas capazes, maiores de idade, com cidadania uruguaia natural ou legal, ou aos que possuírem comprovação de residência fixa no país. Além do mais, cada consumidor só pode ter acesso legal à droga através de uma das três vias de permissão.

A legislação fixou quantidades específicas para cada um dos três casos. Em relação ao cultivo doméstico para consumo pessoal, a lei estabelece o cultivo de até 6 plantas com efeito psicoativo por residência, sendo permitida uma produção anual de no máximo 480 gramas. Aos cultivadores também é autorizada a posse de materiais que cumpram com a função do cultivo, da colheita e do armazenamento. Os Clubes de Membresía Cannábicos podem ter no mínimo 15 e no máximo 45 sócios e têm permissão para o cultivo de até 99 plantas e uma produção máxima de 480 gramas anuais por membro. Referente ao acesso por meio da compra em farmácias, os usuários podem adquirir 10 gramas semanais, ou até 40 gramas por mês.

O texto legal determina uma série de mecanismos de controle, dentre os quais são apontados como principais: venda proibida para menores de idade, sanções para aqueles que dirigirem sob os efeitos da droga, e também para os que a produzirem sem prévia autorização. Além de diretrizes adotadas para o uso, muito semelhantes com as já aplicadas para o tabaco – a conduta está sujeita às normas de consumo em espaços públicos e a publicidade é vedada.

Após cerca de sete anos desde a aprovação da lei – e três anos desde o início de sua implementação integral – ao que tudo indica o modelo uruguaio de regulação parece estar respondendo às expectativas de funcionamento. Não obstante alguns obstáculos relacionados com a institucionalidade do modelo, como a baixa adesão por parte das farmácias e a resistência anunciada por algumas instituições financeiras, os usuários têm aderido ao mercado formal proposto pelo governo.

De acordo com os dados mais recentes publicados pelo IRCCA, em outubro deste ano 42.614 pessoas já estavam registradas para compra através das farmácias e 9.106 para o cultivo doméstico. Além disso, 156 Clubes de Membresía já estavam devidamente cadastrados, somando um total de 4.939 membros. Estes números, que são muito significativos, demonstram que o modelo de regulação tem recebido aderência por parte dos usuários, de modo que mais de 60% dos consumidores uruguaios já acessam a droga pela via legal.

No campo da segurança pública, cabem algumas considerações. Ainda que existam tentativas em associar o aumento das taxas de homicídio no país no ano de 2018 com a regulação do mercado da maconha, não existem evidências que corroborem essas alegações. Um estudo publicado em dezembro de 2019, promovido pela Junta Nacional de Drogas e pelo Observatório Uruguaio de Drogas, apresentou importantes resultados sobre o impacto da Lei 19.172 e demonstrou que não existem evidências que possam associar a regulação do mercado da maconha como uma causa desse aumento.

Em contraponto, a pesquisa que monitorou a evolução da regulação a partir de seus três objetivos principais – saúde, segurança e repressão – demonstrou que a alteração na atividade policial, que passou a atuar de maneira mais repressiva em relação ao mercado ilegal, bem como o aumento das disputas internas, visto que o mercado formal da cannabis limitou as chances de crescimento do narcotráfico, podem estar relacionadas ao aumento dos indicadores de violência no mercado de drogas informal e, como consequência, nas taxas de homicídio. A pesquisa também demonstra que no período analisado também houve aumento nas taxas de consumo, expansão do mercado informal da cocaína e uma diminuição dos aprisionamentos femininos por tráfico.

Visto que se passaram apenas três anos desde a implementação integral do modelo de regulação da maconha no país, ainda não é possível afirmar resultados estruturais. Como toda política pública, o tempo é peça chave para que avaliações concretas sejam realizadas. No entanto, já é possível afirmar que desde a proposição do projeto de lei de regulação e sua posterior aprovação, os olhos do mundo se voltaram para o Uruguai, que se tornou uma das principais referências no movimento antiproibicionista global.

 

*Laura Girardi Hypolito é advogada, doutoranda em Ciências Criminais na PUCRS e pesquisadora vinculada ao GPESC.

 

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Na edição desta semana, leia também: “Narcotráfico e assassinato de mulheres” e “Morte no Carrefour e a responsabilidade penal de pessoas jurídicas”.

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