Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Nazareth Cerqueira e o desafio da reforma da segurança pública no Brasil – Parte 2 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/16/nazareth-cerqueira-e-o-desafio-da-reforma-da-seguranca-publica-no-brasil-parte-2/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/16/nazareth-cerqueira-e-o-desafio-da-reforma-da-seguranca-publica-no-brasil-parte-2/#respond Mon, 16 Jul 2018 13:26:24 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/policia_comunitaria-150x150.jpg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=131 Trechos da segunda parte do capítulo de Elizabeth Leeds no Livro “Polícia e democracia: 30 anos de estranhamentos e esperanças”, editado pela Alameda Editorial e organizado por mim e por Samira Bueno.

Estratégias e resistência interna

Desde o momento em que Cerqueira assumiu o cargo sua visão revolucionária da reforma policial já estava bem definida. De modo geral, queria transformar o papel da polícia de ferramenta do regime militar, força de repressão a serviço do Estado, para o de prestadora de um serviço à sociedade, um órgão de política pública como todos os outros. Para tanto, era necessário criar um plano diretor de gestão estratégica que criasse um serviço policial de caráter preventivo, em lugar de uma força policial que simplesmente reagisse para reprimir o crime e a violência; estabelecesse novos paradigmas de formação policial por meio de parcerias com a universidade e a sociedade civil; e instituísse um código de conduta que fosse capaz de responsabilizar os policiais por má conduta profissional.

Foi a primeira autoridade policial a introduzir os conceitos de direitos humanos, policiamento comunitário e prevenção da violência doméstica na corporação, bem como o primeiro a proibir o tratamento discriminatório, arbitrário e violento contra os habitantes das favelas, os quais lembram com gratidão o tratamento respeitoso que receberam, em toda a cidade, durante os anos em que Cerqueira foi comandante da PM. Na época, proibiu-se arrombar portas em procedimentos de busca, aproximar helicópteros dos telhados a ponto de destruí-los ou, ainda, prender pessoas sem identificação por “vadiagem”. Nos anos anteriores e posteriores à gestão de Cerqueira, conforme lembra a deputada federal Benedita da Silva, a polícia entrava na sua casa, na comunidade de Chapéu Mangueira, alegando estar procurando cocaína, e derrubavam os potes de açúcar e arroz pelo chão.

No entanto, o trabalho de Cerqueira ocorreu em um momento em que as forças políticas conservadoras do Rio de Janeiro viam em Brizola uma ameaça à ordem pós-militar, recém-estabelecida, devido à sua atuação centralizadora e populista. O respeito aos direitos humanos da população de baixa renda era, na opinião da classe média, sinal de leniência com os criminosos, em uma época em que o cresciam rapidamente os números de crimes relacionados ao tráfico de drogas.

[…] A verdade é que o coronel Cerqueira proibiu a PM de invadir as favelas de forma aleatória e indiscriminada. Sua intenção era que a polícia tivesse um plano estratégico e bem estruturado para combater o crime e a violência que estavam associados à droga. Considerando esse clima político e o as barreiras ideológicas dentro da polícia militar, o próprio Cerqueira admitiu o fracasso do seu projeto, em uma declaração citada com frequência.

É certo que falhamos. Não conseguimos implantar o modelo democrático que defendíamos. Não soubemos prender traficantes nas favelas sem invadir barracos, sem colocar em risco a vida de terceiros; não soubemos fazer a polícia investigar para prender e não matar. Não percebemos que a resistência dos policiais diante das novas propostas democráticas era notadamente ideológica: resistiam porque não aceitavam adotar as novas propostas de trabalho. Não percebemos também que setores importantes da sociedade não queriam a adoção deste novo modelo.

A abertura de canais de comunicação e participação social com o objetivo de incluir segmentos anteriormente excluídos era uma iniciativa coerente com a política brizolista, com a criação do Conselho de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos, que se reunia uma vez por mês com o secretário da Justiça Vivaldo Barbosa. Anteriormente, a população de baixa renda só entrava no quartel para apanhar. A partir de então, no entanto, passou a ter o mesmo acesso que a classe média, com direito a apresentar queixas por meio, por exemplo, dos conselhos de segurança pública da comunidade. Agora um representante dos meninos de rua poderia comunicar-se com o comandante da polícia militar. As associações de moradores da favela passaram a ter o mesmo direito de se reunirem, a exemplo do que ocorria nas associações de classe média, algo inédito e que não foi recebido com o mesmo entusiasmo por todos os setores da sociedade.

Também foi uma época em que segmentos corruptos da polícia, conhecidos como grupos de extermínio, compostos principalmente por membros da PM (embora não exclusivamente), “eliminavam” indivíduos e grupos de forma rotineira, incluindo massacres que ganhariam fama internacional, como o dos meninos em situação de rua em frente à Igreja da Candelária, e a morte de 21 pessoas inocentes na Favela Vigário Geral, ambos no Rio de Janeiro, em 1993.

Aqueles que hoje estão na polícia militar e que concordam com a filosofia do coronel referem-se ao antigo comandante como um divisor de águas na história recente da instituição – uma PM pré e pós-Cerqueira. Relatam também uma cisão constante entre os policiais linhas-duras, os chamados “repressivos”, de um lado, e os “prevencionistas”, de outro, seguidores das ideias do coronel. Nos últimos 30 anos, de forma cíclica, esses dois grupos vêm se revezando no poder.

Nos governos mais progressistas os “prevencionistas” – ou Filhos de Nazareth, nos termos que Jacqueline Muniz costumava usar nos cursos que ministrava para policiais em todo o Brasil – ganham espaço para implementar os programas originalmente idealizados por Cerqueira; nas gestões mais conservadoras, se impõem os “repressivos”. Assim, a política de segurança pública fluminense tem sido marcada pelo oscilar de um pêndulo que passa por políticas ora progressistas, ora repressivas, determinadas pelo governador do momento, bem como pela hierarquia de oficiais que acompanham sua linha política.

Cerqueira encontrou enorme resistência entre seus contemporâneos de mesmo nível hierárquico na polícia militar, os quais se aferravam à ideologia de uma corporação hierarquizada e fechada. Tratava-se de oficiais que haviam ingressado na Academia de Polícia no início dos anos 1960, um pouco antes do golpe de 1964. A formação policial, tanto no nível do oficial quanto no do praça, era totalmente militarizada e atravessada por uma filosofia legalista fortemente arraigada a uma ideologia e cultura que reforçava a hierarquia na tomada de decisões, o respeito à cadeia de comando, e deixava de incentivar a responsabilidade e a inovação nos processos decisórios individuais de cada policial.

Essa divisão ideológica também aparecia claramente na luta pela formação policial, na introdução da noção de polícia como prestadora de um serviço para a sociedade, muito mais do que uma instituição que age de forma reativa, combatendo o crime com uma estratégia militar que busca eliminar o inimigo da ordem interna. O coronel Ibis Pereira, que ingressou na PM do Rio de Janeiro em 1983, lembra das palavras de Cerqueira na aula inaugural da Academia de Polícia. Ao falar da centralidade do ser humano como o maior objetivo da proteção policial, o coronel definiu: “[…] o policial não pode ser apenas um protetor da dignidade humana, ele tem que ser também um promotor da dignidade humana”. A introdução da noção de direitos humanos, nesse contexto, representou uma guinada radical de um currículo que tinha como foco, até então, o combate ao crime por meio de uma estratégia militar.

Enraizar a noção de prestação de serviço à sociedade e, com ela, a de respeito aos direitos humanos, representava um desafio assumido pelo coronel: o desenvolvimento de várias novas estratégias, todas direcionadas a abrir uma instituição fechada como a PM a novos paradigmas, literaturas e parceiros, incluindo aqueles que anteriormente haviam se colocado contra a polícia, e vice-versa. Além da reforma radical do currículo, durante a gestão de Cerqueira foi criado o periódico Cadernos da Polícia, que traduzia e adaptava à realidade brasileira os diversos livros e artigos que o coronel adquiria em suas viagens internacionais.

A principal responsável pela tradução desse material, contratada por Cerqueira, Mina Seinfeld de Carakushansky, observa que essa nova literatura foi apresentada a uma corporação que se satisfazia, na época, com uma trajetória profissional muito mais limitada: estudar direito, servir durante o tempo exigido e se aposentar da polícia. Seria necessária a chegada de uma nova geração de oficiais à PM fluminense, cerca de dez anos depois, para que se percebesse a importância dessa nova literatura.
A ideia de fomentar parcerias entre a polícia e a universidade também era algo estranho para ambas as instituições.

Até o início dos anos 1990, seus universos eram distantes e antagônicos. Na realidade, as universidades, por terem sido alvo da repressão policial durante o regime militar, eram vistas como um locus de subversão. O coronel Cerqueira não foi o primeiro oficial da polícia a encorajar essa parceria. Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul também começavam a buscar novos relacionamentos. A crença de que parcerias entre a corporação e a universidade eram fundamentais para fins de formação e pesquisa fazia parte da estratégia de Cerqueira para ampliar a formação em segurança pública.

No segundo mandato de Brizola (1991-1995), sobretudo, reforçou-se amplamente essa noção, com a fundação do Centro Unificado de Ensino e Pesquisa para as Instituições de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (Ceuep), também conhecido como Escola de Cidadania, dirigida pelo professor Gisálio Cerqueira Filho, subordinada ao gabinete do vice-governador Nilo Batista, e associada à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Esse curso era oferecido aos alunos das polícias civil e militar, do Corpo de Bombeiros e da Defesa Civil e Desipe [Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro], tornando-se o precursor de outro curso, mais conhecido, o de especialização em políticas públicas de justiça criminal e segurança pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), dirigido pelo professor Roberto Kant de Lima.

O curso da UFF era o sonho do coronel Cerqueira, que morreu antes da sua realização. Para homenagear esse sonho, a sala onde se ministrou o curso foi a ele dedicada, contendo, na entrada, uma placa com o seu nome. A especialização, com duração de um ano, era voltada a oficiais da PM de médio escalão e aberta também aos membros da PC e outras instituições do sistema judiciário penal; pela primeira, um curso desse tipo era oferecido dentro do espaço democrático de uma universidade pública e não em uma academia de polícia. Tratou-se de um esforço pioneiro por parte do professor Kant de Lima; seu conteúdo e sua metodologia eram uma novidade em um curso obrigatório para fins de promoção na carreira […].
Um episódio, ocorrido durante o segundo ano do projeto, foi bastante significativo e indicativo do potencial – ou incapacidade – do curso em promover a mudança cultural dentro da PM, tão desejada pelo coronel Cerqueira.

O acordo original entre a polícia militar e a UFF estipulava que os alunos assistissem às aulas vestidos à paisana e desarmados, porque, afinal, tratava-se de um ambiente universitário, aberto e democrático. Porém, mais conservador, o sucessor do comandante da PM que havia assinado o acordo original mudou as regras, obrigando os alunos a comparecerem às aulas uniformizados e armados, com o objetivo de preservar a identidade da PM.

Essa decisão foi um grande desincentivo à dinâmica interna do curso: uniforme era sinônimo de hierarquia e os alunos sentiam-se constrangidos em contradizer a ordem um oficial superior, mesmo dentro do espírito do debate acadêmico. Mas, em um episódio inédito de discussão com um comandante, os alunos argumentaram e o convenceram a revogar a sua decisão, honrando os termos do acordo original. Na cerimônia de graduação, realizada na Academia de Polícia, o mesmo comandante enfatizou, em seu discurso, que temia que o curso levasse a PM a perder sua identidade tradicional militar, bem como o conhecimento de tudo o que sempre soubera fazer. A intenção do curso era justamente iniciar um processo de mudança.

Policiamento comunitário

Considerando o legado do coronel Cerqueira em prol da desmilitarização da cultura policial, muito provavelmente ele será mais lembrado pela introdução do policiamento comunitário no Brasil. Esse esforço também mostra a profunda clivagem ideológica entre os membros da polícia militar de sua geração. Tratava-se de um conceito totalmente revolucionário para o Brasil da época, importado e adaptado pelo coronel, após inúmeras visitas a cidades dos Estados Unidos e do Canadá. […].

A noção de policiamento comunitário, nas suas diversas manifestações, significa que os oficiais que atuam na esfera da comunidade tomam suas próprias decisões com certo grau de descentralização e se responsabilizam por elas. Era um conceito completamente contrário à estrutura organizacional militarizada. Atualmente, já existe um corpus crescente de literatura sobre os esforços iniciais para a introdução desse conceito no Rio de Janeiro, não sendo minha intenção avaliar profundamente esses programas pioneiros. No âmbito deste ensaio, basta dizer que essas experiências, apesar de falhas, criaram uma série de modelos, cada um dos quais aprendendo com o anterior, de modo que os componentes de uma experiência acabavam transmitidos às versões posteriores.

Concebido no primeiro mandato de Cerqueira, dentro do “Plano Diretor da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro para o período de 1984 a 1987”, o policiamento comunitário inicialmente criado teve várias versões, cada uma com as suas especificidades, retomadas nos trinta anos seguintes. Na primeira dessas versões, foi criado, em 1983, o Centro Integrado de Policiamento Comunitário (Cipoc), na Cidade de Deus, em substituição ao Destacamento de Policiamento Ostensivo. Antigas celas prisionais foram transformadas em banheiros públicos, um banco de empregos e outros serviços de natureza social. Além disso, quatro grupos acompanhavam o andamento desse novo trabalho de integração da polícia na comunidade.

Na opinião do coronel Robson Rodrigues, primeiro comandante das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro, apesar de falho, o Cipoc foi o precursor desse outro projeto, que seria implantado 25 anos depois. Se o Cipoc foi criado em uma área “subnormal” (favela), uma segunda experiência de policiamento comunitário foi implantada em bairros de classe média: Urca, Laranjeiras e Grajaú, onde associações de moradores já existentes foram parte integral da operacionalização do projeto.

O segundo mandato de Cerqueira (1991-1994) começou com restrições políticas adicionais oriundas da irritação de muitos de seus colegas, que rejeitavam sua nomeação. Apesar de ter-se aposentado da PM após o primeiro mandato, o coronel foi reconvocado por Brizola para assumir o posto. De acordo com a tradição da polícia militar, nomear alguém que já estava na reserva era contra as regras da corporação, pois roubava dos oficiais mais jovens o direito de se tornarem comandantes da corporação. Todo esse ressentimento, especialmente da parte dos oficiais do antigo estado do Rio de Janeiro, continuaria a afetar a aceitação de Cerqueira pelo resto de seu mandato, que incluiu o segundo e mais conhecido experimento de policiamento comunitário em Copacabana.

Essa experiência, implantada no final de sua gestão, foi em parte uma resposta à tragédia dos massacres da Candelária e Vigário Geral, em 1993. Uma colaboração entre a PM e a ONG Viva Rio, que criou e manteve vários conselhos de bairro, o projeto limitou-se a uma área de 28 quarteirões entre Copacabana e o Leme, numa jornada de trabalho policial de 12 horas, 8 da manhã e 8 da noite. Em muitos aspectos, o projeto padecia dos mesmos problemas verificados em outras tentativas de policiamento comunitário na cidade, tanto anteriores quanto posteriores à experiência de Copacabana: formação insatisfatória; falta de recursos adequados e falta de coordenação com ou concorrência com outras agências governamentais; falta de apoio da comunidade de modo geral; e, acima de tudo, falta de apoio da PM como um todo. De modo semelhante ao apontado pelas avaliações recentes das UPP, muitos policiais opunham-se ao envolvimento comunitário por não se tratar, na sua visão, de “policiamento de verdade”.

As resistências às políticas idealizadas pelo coronel continuaram dentro da instituição, mesmo após sua morte, em 1999, quando seus seguidores tentaram implantar novas versões de policiamento comunitário. Eles falam em um boicote implícito, mas bem articulado, ao policiamento comunitário criado por Cerqueira. Embora os oficiais do mesmo nível hierárquico elogiassem seus planos e programas, na prática os projetos de policiamento comunitário sofreram sabotagem, durante e após o mandato do coronel.

Essa situação ficou mais evidente durante a vigência de um programa de viés comunitário e pacificador, chamado Gpae (Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais), montado inicialmente nas comunidades de Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, situadas nos bairros de Ipanema e Copacabana, e, depois, seguidas de três outras regiões da capital fluminense e Niterói.

Criado pelo então major Antônio Carlos Carballo, discípulo de Cerqueira; combinava os princípios do policiamento comunitário introduzidos pelo seu mestre, e o modelo da chamada “Operação Cessar-Fogo”, o famoso projeto de redução de violência de Boston, no estado de Massachusetts, Estados Unidos. Desde o início, a missão do Gpae era reduzir a violência armada – sem, contudo, eliminar o tráfico de drogas; coibir o envolvimento de crianças em atividades ilícitas; garantir no território de abrangência a presença constante da polícia comunitária, que por sua vez deveria atuar de forma exemplar, e, sobretudo, mudar a relação de antagonismo entre a comunidade e a polícia. Qualquer policial que abusasse do poder ou se envolvesse em atividades criminosas seria excluído do projeto.

A mensuração do sucesso de qualquer programa inovador depende de quem o avalia e do momento em que ocorre esta avaliação, no seu ciclo de vida. Nesse sentido, o Gpae despertou a atenção da mídia nacional e internacional, que o retratou com uma experiência predominantemente positiva. O programa também foi objeto de inúmeras avaliações acadêmicas nacionais e internacionais, com análises mais nuançadas; e inspirou uma ação semelhante em Belo Horizonte, os Grupamentos de Policiamento de Áreas de Risco (Gepar).

Da mesma forma que os projetos anteriores, o Gpae gerou consequências diversas. Houve, de um lado, uma redução significativa da violência armada nas comunidades em que foi instalado e nas áreas de classe média circundantes. Mas o projeto não conseguiu promover a confiança da comunidade na polícia. […]. Seguindo o movimento pendular das políticas de segurança pública, o programa foi suspenso no mandato seguinte.

[na próxima postagem, o trecho sobre prestação de contas e o sumário do livro “Polícia e Democracia”]

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A educação e a escola no centro da segurança pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/29/a-educacao-e-a-escola-no-centro-da-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/29/a-educacao-e-a-escola-no-centro-da-seguranca-publica/#respond Fri, 29 Jun 2018 17:30:03 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/17321230-150x150.jpeg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=83 Em coautoria com Regina Esteves, diretora-presidente da Comunitas.

A violência é um fenômeno multicausal e fortemente correlacionado com fatores socioeconômicos, espaciais e demográficos. E, a depender da combinação desses fatores em um determinado território, alguns podem assumir caráter preponderante no crescimento ou na redução da violência.

Por este raciocínio, cabe-nos focar esforços para construir um vigoroso movimento de modernização das políticas de segurança pública no Brasil, que envolva diferentes esferas e poderes; cabe-nos identificar fatores protetivos aos enormes dilemas impostos pelo atual cenário de medo, crime e violência no país.

Afinal, sempre é bom reiterar que a boa política pública é aquela que visa dar respostas mais eficientes e eficazes aos dilemas sociais e prover serviços com qualidade e capacidade de garantir direitos e oportunidades.

Por esta perspectiva, um dos fatores que mais chamam atenção de quem estuda violência e seus efeitos macrossociais é a educação. A educação é, segundo extensa literatura especializada, o eixo angular sobre o qual se assenta um projeto de desenvolvimento mais efetivo, democrático e inclusivo.

Falar de educação e violência é falar da chance que queremos dar para o Brasil enfrentar seus traumas e crises. É falar sobre que Brasil queremos!

Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sobre Medo da Violência e Autoritarismo no Brasil, mostrou que a educação é um dos mais fortes fatores de proteção contra a escalada de intolerância e ódio que toma conta do Ocidente. Quanto maior a educação, maior é a adesão ao Estado Democrático de Direito e maior é a capacidade de se lidar com a incerteza, uma das marcas da atualidade no mundo.

Mas para garantir educação de qualidade, precisamos investir em ambientes escolares mais atrativos e, no caso aqui tratado, mais seguros. Segundo dados do Diagnóstico Participativo das Violências nas Escolas, feito pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais em parceria com MEC, 69,7% dos jovens afirmam já ter visto algum tipo de agressão dentro do ambiente escolar.

Os dois dados mostram, portanto, que a Escola é um espaço estratégico na construção de um projeto de cidadania e desenvolvimento capaz de fazer frente à violência e à desigualdade. É necessário olharmos de forma mais sistêmica para a Escola e cuidar para que ela seja fortalecida em seu caráter preventivo e cidadão.

Essa não é uma ideia nova ou um grande achado, mas precisa sempre ser enunciada como uma tarefa que envolve não só as polícias. União, Estados, Distrito Federal e Municípios têm uma enorme contribuição a dar.

Mas se não é uma ideia nova, ela deve, porém, e tornar-se, cada vez mais, uma ação concreta e articulada entre os vários envolvidos, sejam eles atores públicos ou privados.

E, entre práticas municipais que vêm se destacado (Medellín, na Colômbia; Pelotas/RS; Teresina/PI, entre outras), a Escola cumpre exatamente esta posição-chave e um papel importante de prevenção social ao possibilitar as condições para que sejam implementadas estratégias complementares de prevenção primária (melhoria das condições sociais); secundária (com grupos vulneráveis); e de prevenção terciária (com egressos do sistema socioeducativo e/ou prisional).

Isso porque ela é o espaço de cidadania que, na prática, é a única opção crível e disponível à prisão enquanto política pública universal voltada para os jovens, principais protagonistas da violência no Brasil. É fundamental criarmos alternativas para os milhões de jovens que não estudam e não trabalham para que eles não sejam presas fáceis do crime organizado.

Nada disso é possível, porém, sem uma articulação robusta entre as diversas secretarias e gestores públicos responsáveis por diferentes atividades. É preciso incentivar a derrubada de barreiras entre Secretarias da Educação e as demais, especialmente as de Segurança Pública, para que informações, experiências e objetivos se cruzem de forma transversal, resultando em uma frente ampla, mas que culmine em um objetivo comum.

Isso é o que também está sendo feito em Niterói, no Rio de Janeiro, e que precisa vir acompanhada de avaliações sistemáticas para que possamos constituir um repositório de práticas de prevenção à violência no Brasil. Vivemos um dilema de coordenação de ações e precisamos ser criativos em superá-lo.

A violência tem que ser contida de forma inteligente e a Educação tem esse poder: formar cidadãos e cidadãs que não sejam reféns do medo e da insegurança, mas capazes de serem senhores e senhoras do seu próprio destino.

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Direito à cidade e novos papéis dos municípios na Segurança Pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/23/direito-a-cidade-e-novos-papeis-dos-municipios-na-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/23/direito-a-cidade-e-novos-papeis-dos-municipios-na-seguranca-publica/#respond Sat, 23 Jun 2018 20:23:17 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/15181821045a7d9ed8a3400_1518182104_3x2_rt-150x150.jpg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=71 *Coautoria de Flávia Carbonari, jornalista e consultora do Banco Mundial.

A América Latina é hoje a região mais violenta do planeta. Apesar de abrigar apenas 8% da população global, a região é responsável por 33% dos homicídios que ocorrem no mundo. Sozinho, o Brasil responde por mais de 12% desse total.

Os Estados Unidos, por sua vez, também se destacam entre os países industrializados com a maior taxa de mortes por armas de fogo. Quando combinado, o continente americano abriga 47 das 50 cidades mais violentas do mundo, segundo ranking anual da ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz; entre elas, 17 são brasileiras.

Processos de urbanização rápidos e desordenados e sem planejamento, fácil acesso a armas, a presença do narcotráfico, altos índices de exclusão social e aspectos culturais, com normas sociais machistas e que valorizam a violência como forma de resolução de conflito, são alguns do inúmeros fatores comuns que explicam as altas taxas de crime e violência do continente.

É claro que as altas taxas de crime não são homogêneas pela região ou nem mesmo dentro dos próprios países. A criminalidade se concentra em lugares específicos – municípios mais vulneráveis, como mostrou recentemente o Atlas da Violência 2018; bairros mais vulneráveis; e até segmentos de ruas específicos– e faz da maioria de suas vítimas populações mais excluídas.

É por isso que, apesar dos contextos diferentes, podemos encontrar semelhanças nos problemas de segurança enfrentados por diferentes cidades do continente. Em 2014, o bairro de Englewood, em Chicago, com uma taxa de homicídios de 65,5 para cada 100,000 habitantes, teve mais mortes do que a Ciudad Juárez, no México, com 55,9, por exemplo, como mostrou estudo da economista Laura Chioda.

Se os fatores de risco que levam às altas taxas de criminalidade violenta na região são parecidos, muitas das soluções podem também ser adaptadas de uma cidade à outra. Mas o que as cidades das Américas podem aprender umas com as outras? Que estratégias que funcionam em uma cidade podem ser aplicadas a outros contextos?

Uma agenda transnacional para abordar a violência urbana na região seria sustentável? Essas foram algumas das questões que levaram cerca de 30 pesquisadores, funcionários públicos, representantes de organismos multilaterais e da sociedade civil do Brasil, México, Colômbia e dos Estados Unidos para um encontro em Chicago na semana passada (dias 14 e 15/06).

O objetivo da reunião, organizada pelo think tank Chicago Council on Global Affairs, em parceria com o Chicago Crime Lab da Universidade de Chicago, era estabelecer uma rede de intercâmbio entre as diferentes cidades em busca de soluções eficazes para a redução da violência.

No Brasil, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto Cidade Segura fazem parte desta iniciativa na ideia de fomentar fortes investimentos no desenho e na avaliação de estratégias de prevenção secundária (com grupos vulneráveis à violência) e terciária (com egressos dos sistemas socieducativo e prisional) que possam ser aplicadas à nossa realidade. Só a polícia e/ou a repressão não darão conta do tamanho do nosso problema.

Para que isso seja possível, é preciso uma discussão sobre o direito à cidade e o papel dos municípios na prevenção da violência. Afinal, a segurança é um direito em si (Artigos 5º e 6º da CF) e seus impactos são muito maiores do que apenas os da esfera criminal ou da atividade policial. O SUSP (Sistema Único de Segurança Pública) é uma grande oportunidade para viabilizar novos cenários e ações.

O município é o grande articulador no nível local dos diversos atores sociais responsáveis pela segurança pública. A interseção entre o desenvolvimento urbano e a redução da violência deve, portanto, enfatizar o papel fundamental das cidades em sua prevenção através da promoção da coexistência e da inclusão social; a revitalização, uso e ocupação de espaços públicos; a participação no planejamento e monitoramento de políticas públicas; e a coordenação com os governos estadual e federal.

No estudo “Aprendendo da América Latina: tendências de políticas que levaram à redução do crime em dez cidades da região” que fizemos para o relatório global Know Violence in Childhood, olhando cidades do Brasil, Colômbia, México, Guatemala e El Salvador vimos que ter um sistema de informações forte que mostra um quadro composto de onde a violência está ocorrendo, quem é afetado e o risco fatores que o impulsionam, é essencial para direcionar recursos escassos para onde eles possam ser mais eficazes em abordagens territoriais abrangentes.

Em segundo lugar, melhorar o sistema de governança e gestão do setor de segurança, construindo a estrutura institucional e os mecanismos de coordenação que estabelecem uma divisão clara de trabalho entre os diferentes níveis e setores do governo e os canais de recursos contribui para uma resposta mais coerente à violência.

A combinação de intervenções direcionadas de “ganhos rápidos”, como a recuperação de espaços públicos ou o controle de álcool ou armas de fogo, com mais programas de longo prazo e direcionados, como emprego juvenil ou reintegração, parece ter sido fundamental nesses locais. E, finalmente, envolver uma ampla gama de partes interessadas, incluindo comunidades, academia, sociedade civil e setor privado, também se mostrou necessário nesses lugares.

Segurança não combina com o pânico promovido por alguns segmentos; segurança combina com cidades mais seguras e cidadãs.

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A sedução da ordem https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/02/a-seducao-da-ordem/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/02/a-seducao-da-ordem/#respond Sat, 02 Jun 2018 21:16:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/Folha-27-de-fevereiro-2018-Danilo-Vespa-150x150.jpg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=32 Ao longo das últimas décadas, o Brasil foi se dando conta da tragédia em torno dos números da segurança pública no país. Crimes em uma espiral crescente de casos, relatos cada vez mais frequentes de mortes violentas e cenas de medo e terror foram se tornando banais no cotidiano. Fomos nos acostumando com números superiores aos de guerras abertas e conflitos étnicos no mundo afora. A violência foi se transformando em uma das principais preocupações da população brasileira e um dos principais motores políticos da atualidade.
E, não à toa, em um momento de profunda crise de legitimidade das instituições democráticas, nos tornamos presas fáceis de grupos que exploram o fato de que os brasileiros estão sedentos por uma perspectiva de ordem que sinalize um projeto de mudança efetiva para uma vida melhor e  tentam vender sua fé na violência como forma de governar e de impor ordem ao “caos” que se transformou o Brasil.
O problema é que, como tenho destacando em vários espaços, convivemos faz anos com uma espécie de vendeta moral e política que nunca tem fim e que parece ganhar cada vez mais adeptos ao reverberar ódios, preconceitos e intolerância. A violência é, se olharmos por trás dos números do medo e da violência, uma permanente marca societária do país e é um dos principais entraves para um novo e virtuoso modelo de desenvolvimento para o Brasil.
E como chegamos até aqui? Com décadas e décadas relegando o tema à terceira divisão das prioridades políticas e institucionais ou, pior, lidando com ele como uma pauta quase que exclusivamente policial. Nesta seara, por sua vez, pouco fizemos para ajustarmos as polícias, em termos normativos e de doutrina, à ordem social democrática inaugurada pela Constituição de 1988 (a legislação que organiza a estrutura das Polícias Militares, por exemplo, ainda é do começo dos anos 1980).
Com isso, em meio à “guerra às drogas” inaugurada na década de 1970 e à caça aos “delinquentes”, nossas políticas criminais e penitenciárias obsoletas não priorizam a prisão de matadores e outros autores de graves e violentos crimes e transformam prisões em celeiros descontrolados de facções. O país pouco fez nos últimos anos para mudar os padrões operacionais das polícias baseados na lógica do enfrentamento ao criminoso e do cartório burocrático que rege os inquéritos policiais.
Contraditoriamente, o Poder Público gasta energias, recursos e esforços, mas não chegamos a lugar algum. Há muito sendo feito, porém com baixa eficiência e efetividade. Cada instituição da área vai tocando suas ações na esperança de que, em algum momento, as coisas se resolvam. No máximo, quando surgem episódios agudos de crises penitenciárias, de greves de policiais ou de fortes confrontos entre gangues/organizações criminosas por controle de territórios, recorremos às Forças Armadas como bálsamo caro e tópico.
É fato que vários têm sido os programas e iniciativas de redução dos crimes violentos tentados pelas Unidades da Federação que, em um primeiro momento, conseguem frear a escalada de mortalidade violenta. Porém, basta uma nova crise ou uma mudança política, tudo volta sempre ao ponto do nosso eterno recomeço. Falta-nos capacidade coordenação federativa e republicana da área e, por esta razão, não temos nenhuma governança sobre as respostas públicas frente ao crime, à violência e ao medo.
Enquanto vemos atônitos o crescimento do movimento em defesa de uma intervenção militar e o percentual de intenções de votos do pré-candidato Jair Bolsonaro, que se esforça para ser o “salvador da pátria” de plantão, a segurança pública não é reconhecida como agenda prioritária no debate político brasileiro. Ficamos surpresos a nos dar conta que chocando o ovo da serpente do autoritarismo.
Tudo isso para dizer que, se o Brasil não encarar de frente o drama da violência e não construir um novo projeto político e institucional para a segurança pública do país, não só veremos as tentações autoritárias crescerem, como correremos sérios e reais riscos de retrocessos civis, políticos, sociais. Nas próximas postagens, a ideia é tentar apresentar e analisar muitas das propostas cidadãs de mudanças. Há outras opções e soluções. Precisamos acreditar e nos mobilizar, sem inocência mas com base em evidências e na agenda de direitos civis, humanos e sociais.
E, para concluir, ao falar de propostas cidadãs de transformação, eu queria de iniciar o blog fazendo um tributo a Paulo de Mesquita Neto, cujo falecimento completou 10 anos no final de março último. Paulo Mesquita foi pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência, da USP, e, junto comigo, José Marcelo Zacchi, Elizabeth Leeds e Josephine Bourgois, ajudou a fundar o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Mas o ponto mais importante da trajetória pública de Paulo Mesquita é que ele foi um dos mais ativos defensores da ideia de modernização cidadã da segurança pública brasileira, pela qual não há nenhuma oposição entre defender enfaticamente direitos humanos e valorizar políticas públicas efetivas e transparentes de prevenção da violência e controle do crime. Em uma era de ódio, polarizações e ressentimentos, Paulo e sua serenidade faz muita falta!

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