Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Militarização da Segurança Pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/#respond Thu, 18 Mar 2021 19:57:45 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/bolsonarofaces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1696 Polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de Bolsonaro, enquanto os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e obtiveram conquistas políticas

Renato Sérgio de Lima*

Circulou, na semana que passou, um áudio atribuído a um Policial Rodoviário Federal que acusa o Governo de Jair Bolsonaro de levar adiante um “Lockdown Policial” cujo objetivo, na prática, seria o enfraquecimento das polícias civis, federal, rodoviária federal, penal federal e penais estaduais. Até por isso, para o autor do áudio, há em curso um adiantado plano de militarização da segurança pública no Brasil e de destruição das forças civis de segurança.

Para sustentar a sua hipótese, o autor do áudio argumenta que o governo tem privilegiado as carreiras militares federal e estaduais em detrimento das demais forças policiais. Ele cita a Reforma da Previdência, que teria imposto regras de transição mais severas para as polícias de natureza civil; a Lei Complementar 173, que proíbe reajustes salariais durante a epidemia de Covid-19; e a PEC 186, que adota medidas permanentes e emergenciais de controle do crescimento das despesas obrigatórias e de reequilíbrio fiscal. Ele também menciona a proposta de Reforma Administrativa como um ponto de alerta.

A meu ver, o áudio toca em pontos relevantes da ação do governo no campo da segurança pública e, concordo, há uma clara predileção pelas forças militares federal e estaduais. Mas creio que o cenário seja um pouco mais complexo. Ao que tudo indica, estamos presenciando um movimento de reconfiguração do associativismo policial e um rearranjo entre as lideranças da área. O governo Bolsonaro estaria atuando para eliminar dissonâncias entre sua principal base eleitoral e usa as pautas policiais para se contrapor às demandas liberais de Paulo Guedes pela manutenção do teto fiscal sem, no entanto, romper com o “mercado”.

Assim, entendo que não há o rompimento propriamente dito que foi anunciado pela imprensa na semana passada. É fato que as polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de poder de Jair Bolsonaro, não obstante existir um nível grande de convergência ideológica mesmo entre elas. É um sutil paradoxo que precisa ser compreendido pelos analistas da área para que não sejamos abduzidos pelo jogo de marcação.

Se partirmos do reconhecimento desse paradoxo, veremos que há um contraponto de sobrevivência das lideranças sindicais civis tradicionais dado que os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e conseguiram algumas conquistas políticas – por mais que, em termos de carreiras, também não tenham avançado em nada substantivo. Ou as lideranças civis se reposicionam ou são engolidas e superadas por novos atores mais alinhados às expectativas das bases policiais.

Não à toa, de modo sagaz, as críticas mais pesadas partiram de entidades relativamente novas no jogo associativista, que são a UPB e a OPB (Ordem das Polícias do Brasil). Se o rompimento fosse real, as próprias associações individuais estariam assumindo o protagonismo, mas efetivamente elas estão funcionando como anteparo de mitigação e negociação; elas aproveitam a repercussão e reabrem canais de negociação.

Isso não significa que não existam insatisfações crescentes e/ou reclamações pertinentes sobre o abandono de demandas corporativistas. Um exemplo é a explicitação, por parte da Associação de Delegados da Polícia Federal, de não ter nenhum canal de diálogo com o Ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública. No entanto, o embate parece ser mais sobre capital político e prestígio de ser ouvido do que sobre o endereçamento de demandas históricas de reforma da arquitetura da segurança pública.

Agora, no que diz respeito às polícias militares, que respondem por mais de 60% dos efetivos policiais do país e seus integrantes são os que mais têm aderido ao projeto de poder do atual presidente, adotaram uma tática diferente. Nesse caso, a opção foi por fortalecer as demandas das corporações, representadas pelos seus Comandantes Gerais, que negociam diretamente com o governo um reequilíbrio de forças e um projeto de autonomização vendido como de blindagem aos usos políticos.

As demandas associativistas estão em segundo plano e o que vale é a lógica militar clássica. O maior exemplo é o Projeto de Lei Orgânica das PM, que data de 2001, mas que na última segunda (16), teve um novo relator designado, o deputado do Capitão Augusto (PL/SP) que deve apresentar o substitutivo que está sendo negociado com o governo o mais rápido possível. Vale lembrar que o nome do Capitão Augusto já circulava como o relator ideal desde o início de 2020 e fazia parte de um pré-acordo com o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

Seja como for, o conteúdo do PL é extremamente concentrador de poderes nos oficiais das Polícias Militares e pouco avança sobre condições de vida e trabalho dos policiais militares. O foco das minutas de substitutivos que estão circulando está muito mais dedicado ao desenho de estratégias de autonomização das corporações dos governos estaduais e dos mecanismos de controle civil.

Por tudo isso, a novidade das pressões em torno do “rompimento” dos policiais com o governo não está no seu valor de face, ou seja, num fato indiscutível. O que estamos vendo é um movimento de pressão que visa reconfigurar o campo para que os policiais passem a fazer uma defesa inquestionável do governo ou, caso contrário, para que lideranças civis que atuam na chave sindical de modo mais isento e crítico sejam substituídas por novos e mais alinhados nomes. Esses já aparecem como os salvadores das categorias e devem rivalizar com nomes que há muito ocupam posições nas associações.

 

*Sociólogo e Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Lava Jato: ação estratégica em análise pelo STF” e “O Rei da Inglaterra não pode entrar na cabana do miserável”

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Entreguem as armas https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/02/24/entreguem-as-armas/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/02/24/entreguem-as-armas/#respond Mon, 24 Feb 2020 13:33:56 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/02/15821392305e4d875e4a81d_1582139230_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1310 Com Arthur Trindade Maranhão Costa*

O Faces da Violência tem 20 meses de vida e, em vários textos publicados neste espaço, temos alertado para a desfuncionalidade do modelo de polícia brasileiro e os riscos que a emergência do projeto populista de poder que dá sustentação à parceria Jair Bolsonaro e Sergio Moro oferece para o Estado Democrático de Direito no Brasil. Não é de hoje que os ingredientes da crise que agora mais uma vez assola o Ceará (mas que é nacional) estão fermentando um quadro grave e que deveria exigir mais atenções das autoridades e da sociedade.

Assim, não foi novidade ver a escalada de confronto e violência provocada pelo ato insano e irresponsável do Senador Cid Gomes, que em texto anterior publicado no site da Revista Piaui, chamamos de atentado e que, por isso, fomos bastante criticados por parcela que parece não querer ver que estamos diante de uma enorme encruzilhada histórica. Segundo o dicionário Houaiss, entre outras acepções, atentado, é um substantivo masculino para descrever  “ato criminoso ou tentativa de sua perpetração contra pessoas, ideias etc”.

E por que criminoso? Pelo simples fato de que, naquela situação, supostos policiais encapuzados estavam invadindo prédios públicos e danificando viaturas. Além disso, ao optarem por esconder seus rostos e, ao mesmo tempo, continuarem armados não mais estavam representando o Estado ou cumprindo funções de manutenção da ordem pública. Afinal, um dos conceitos-chave da teoria de polícia sobre o mandato e a função desta fundamental instituição é o de autoridade pública constituída. E, na medida em que policiais optaram por cobrir seus rostos e descumprir ordens de comando, eles não mais estavam constituídos de autoridade pública. Eles estavam ali como cidadãos.

E, diante de uma demanda legítima por salário e condições de trabalho, a luta por direitos não pode ser feita repetindo táticas do crime organizado ou com as armas do Estado sob o risco de tornar sociedade e instituições reféns do medo e de interesses corporativos.

A única saída para esse dilema legal, seria o depósito das armas no quartéis e a reivindicação de que os policiais sejam tratados como cidadão comuns e que possam, daí sim, se manifestar com total liberdade. Esse seria um gesto muito mais poderoso e radical. Infelizmente, ao contrário, falsos profetas ficam incentivando confrontos e antagonismos.

Outro ponto que suscitou debate no nosso artigo na Piauí foi o alerta que fizemos sobre o papel das forças policiais na ruptura da ordem em vários países sul-americanos. Como previsto, um dos muitos dos gatilhos ideológicos da polarização foi acionado, ou seja, ouvimos que falar das Polícias do Chile e da Bolívia e não citar a Venezuela, o país mais anti-democrático da América do Sul, seria prova de que nossa análise seria, no mínimo, parcial.

O que os defensores deste ponto de vista não se atentaram foi que, na Venezuela, o regime bolivariano se baseia no exército e nas milícias. Desde a tentativa de golpe fracassada contra seu governo em 2002, Hugo Cháves decidiu reforçar seu apoio junto às FFAA. Mas, em 2008, Chávez também criou a Milícia Nacional Bolivariana, uma espécie de exército político do regime. A MNB é um corpo de cerca de um milhão de pessoas treinadas com cassetetes e rifles, que prometem dar suas vidas pela Revolução. Assim, a Venezuela é um caso de ditadura que abduz todas as instituições de força para seu projeto.

Mas a lembrança da Venezuela nos faz reforçar nosso argumento de fundo. No passado, as Forças Armadas eram os atores centrais para a manutenção dos regimes autoritários. Na década de 1970, a maioria dos regimes autoritários era governada por militares. Com a terceira onda de democratização e o fim dos regimes autoritários, houve uma reacomodação da relações civis-militares. Via de regra, os militares voltaram aos quarteis se afastando da disputa política.

Talvez por isso, quando analisamos os atuais governos populistas, voltemos imediatamente para entender o que se passa nas Forças Armadas. Mas esquecemos que nos atuais regimes populistas são as policias, mais do que as Forças Armadas, que desempenham papel central. Obviamente, o apoio das FFAA continua sendo relevante, mas é a instrumentalização do aparato policial que diferencia os regimes populistas.

Na Hungria, os policiais são um dos principais grupos de sustentação do governo populista de Viktor Orban. Desde que chegou ao poder 2010, o líder do partido Fidesz tem buscado construir laços de lealdade com as forças policiais do pais. Em 2019, Órban incentivou a criação da Legião Nacional, uma espécie de milícia uniformizada, voltada para resgatar os ideais nacionalistas da antiga Guarda Húngara, proscrita em 2008.

Nas Filipinas, as polícias são atores centrais na política de guerra às drogas de Rodrigo Duterte. Entre 2016 e 2019, estima-se que as policias tenham matado cerca de 12 mil civis. O governo admite oficialmente 5100 mortes. Desde 2018, lideranças da oposição tem denunciado a criação de esquadrões da morte voltados para perseguir e eliminar a dissidência política.

Nestes países, a instrumentalização do aparato policial passa pela extensão de benefícios previdenciários, aumento de salários e distribuição de cargos nos governos para policiais. A dimensão simbólica é fundamental. Os líderes populistas procuram aparecer sempre ao lado de policiais, portando armas e usando uniformes. O objetivo é conquistar apoio político quase que incondicional dos policiais. Além da lealdade dos policiais, esses líderes populistas também buscam o controle direto das polícias, passando por cima de prefeitos e governadores.

E é neste contexto que devemos olhar para os riscos da crise do Ceará ganhar corpo e ser justificativa para atos de ruptura por parte de apoiadores do projeto populista de Bolsonaro. Não se trata de uma crise isolada, provocada pelas idiossincrasias e disputas locais ou nacionais da família Gomes, mas de um movimento que retoma a agenda de transparência, controle e supervisão de instituições autorizadas a manter e impor, se necessário, a ordem pública e social prevista na nossa Constituição.

Na atual toada, a visita à Fortaleza programada para hoje (24) dos ministros Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) merece toda a atenção. A depender da modulação do discurso de ambos, saberemos o quanto o Governo Federal está disposto a escalar ainda mais esse delicado momento em que vivemos. Moro foi rápido para nacionalizar o mérito da queda dos homicídios em 2019 e, com isso, terá muito trabalho para se desvincilhar de responsabilidade neste momento.

Seja como for, os episódios desta última semana mostram que o projeto populista de poder em torno de Bolsonaro é muito mais amplo do que as tentativas de cooptar as polícias e conta com apoios em outras instituições de Estado. O que, em outras palavras, significa dizer que o Brasil sob Bolsonaro está muito mais próximo do bolivarianismo venezuelano do que muitos gostariam de assumir.

A torcida é para que as polícias percebam este movimento e não caiam em um canto da sereia perigoso e violento, onde todos temos muito a perder.

*Professor da UNB e membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Em nome do Pai https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/11/em-nome-do-pai/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/11/em-nome-do-pai/#respond Sun, 11 Aug 2019 14:55:46 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/Troche-2-150x150.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1024 No dia dos pais e em uma era de Brasil sob domínio de Bolsonaro, Witzel e muitos outros políticos que surfam na onda de pânico e medo da população, hoje eu lembrei bastante do filme Em Nome do Pai (In the Name of the Father, no original ), uma coprodução irlandesa e britânica, de 1993, dirigida por Jim Sheridan e baseado no livro autobiográfico “Proved Innocent”, de Gerry Conlon.

O filme conta a história real de Gerry Conlon, que juntamente com três amigos são injustamente presos, acusados e condenados de serem os responsáveis por um atentado à bomba do IRA, em 1974, em um pub de Gildfod, próximo à Londres. Sob tortura física e emocional do exército britânico, eles confessam um crime que não cometeram e são condenados a passar o resto de suas vidas na cadeia. Giuseppe Conlon, pai de Gerry, tenta ajudar o filho e também é condenado. Só alguns anos depois, a advogada Gareth Peirce, motivada a fazer justiça e descobrir a verdade, consegue mostrar a injustiça cometida.

O filme é uma das histórias mais inquietantes sobre como o poder do Estado pode, se não devidamente controlado, gerar injustiças em nome de um fim “nobre”, no caso, o combate ao terror político. Se olharmos para o Brasil, “Em nome do Pai” é uma metanarrativa do tempo presente e mostra que nossas instituições de segurança pública e justiça criminal precisam mais do que nunca compreender que “as polícias são o povo e o povo é a polícia”, para resgatar o lema de Sir Robert Peel, criador do modelo moderno de polícia.

E compreender tal lema significa assumir que o povo, em uma democracia, tem múltiplas posições políticas e ideológicas e que nenhuma delas é moralmente ou legalmente superior às outras. Cabe a polícia e ao sistema de justiça garantirem a máxima liberdade de expressão e organização política pacífica, mesmo que em oposição ao governante de plantão. E, para que isso seja possível e uma democracia não pereça, não basta votos, mas instituições verdadeiramente democráticas, transparentes e dispostas a servirem à cidadania e não aos donos do poder e/ou a grupos sedentos por vinganças e/ou imposição autocrática de suas visões de mundo.

E quem nos alerta sobre essa questão é um dos mais renomados criminólogos vivos, o norte-americano Lawrence Sherman, professor do Instituto de Criminologia de Cambridge, no Reino Unido. Ele foi um dos criadores do modelo de policiamento baseado em evidências, nos EUA, nos anos 1970, e fez conferência durante o 13o Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado em João Pessoa, na Paraíba, na semana passada.

Mas parece que poucos querem ouvir o que Lawrence Sherman disse.

Nas últimas semanas, entre outras, a Polícia Militar de São Paulo, invadiu um endereço privado (coisa que legalmente só poderia fazê-lo sob ordem judicial ou diante de fragrante delito) para pedir documentos de um grupo de mulheres ligadas ao PSOL, que gostem ou não seus simpatizantes ou adversários de suas posições, é um partido político com registro e é uma organização legítima. A mesma PMESP deteve um torcedor do Corinthians que gritava contra o Presidente Jair Bolsonaro e, ao ser contestada disse que havia feito a detenção por segurança do torcedor, mas vídeos que circulam nas redes mostram que não existia nenhuma ameaça ou risco imediato.

Já a Polícia Civil do Rio de Janeiro publicou portaria com manual que regulamenta o uso de helicópteros pela corporação, até em atendimento a cobranças que a Defensoria Pública do Estado havia feito. Porém, ao cumprir a demanda, a Polícia Civil determinou sigilo de 15 anos sobre o material. O Governador Witzel, em sua tentativa de competir com Jair Bolsonaro pela frase mais surreal da política atual, não só defendeu a medida mas deixou claro que, em sua compreensão, o Estado deve tutelar a população, sem transparência ou contestações, que serão vistas como indícios de envolvimento com o crime.

Contestar está se tornando perigoso no Brasil. A discordância ou o questionamento às políticas do governo de Jair Bolsonaro ou dos de seus apoiadores em vários estados, mesmo que fundadas em evidências científicas, estão sendo rotulados de postura antipatriótica quando o foco estão em temas da agenda geopolítica e internacional e, tão grave quanto, sendo criminalizadas, com ameaças, detenções e prisões.

Imprensa, sociedade civil, lideranças indígenas, ambientalistas, populações vulneráveis e, mesmo, prerrogativas de advogados estão na mira dos “snipers” das patrulhas bolsonaristas. Mas é importante lembrá-los de que o Estado não é Jair Bolsonaro e que as instituições públicas não o servem. Elas estão a serviço da cidadania e são guiadas pelo Império da Lei. E, por isso mesmo, controle não é sinônimo de desprestígio ou inimizade. É acreditar no Estado Democrático de Direito.

Não há atalho, adesão ideológica ou fim que justifique o contrário.

 

 

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Se Deus é brasileiro, ele pediu para sair e a casa está abandonada. https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/02/09/se-deus-e-brasileiro-ele-pediu-para-sair-e-a-casa-esta-abandonada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/02/09/se-deus-e-brasileiro-ele-pediu-para-sair-e-a-casa-esta-abandonada/#respond Sat, 09 Feb 2019 17:53:55 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/15490513405c54a5cc2948a_1549051340_3x2_xl-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=612 Chega a ser chocante a sequência de fatos que tomaram o país nas últimas semanas e que revelam o abismo ético em que caímos: denúncias envolvendo a família do Presidente da República, ligações suspeitas entre as milícias e políticos, tragédia em Brumadinho, incêndio no CT do Flamengo, tempestades no Rio de Janeiro, operação policial em favelas cariocas com maior número de mortes em anos.

Ao mesmo tempo, chama atenção como a prolongada internação do Presidente Jair Bolsonaro no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, está estressando muito rapidamente o delicado equilíbrio de forças que dão sustentação ao seu projeto de Poder.

Disputas e conflitos entre integrantes de governos formados por coalizões de interesses são comuns, mas a demora de Bolsonaro em reassumir o governo pode significar a ruptura da coalizão atual no governo, ainda mais em um momento em que estamos em permanente estado de alerta e nos perguntando quase diariamente qual a próxima crise ética, denúncia ou tragédia que acontecerá.

Contrariando todas as expectativas sobre sua capacidade individual de articulação, o Presidente Jair Bolsonaro conseguiu, ajudado pelo Zeitgeist, se posicionar como o eixo de força capaz de fazer mover as engrenagens políticas do país em direção a um projeto de reconversão reacionária da sociedade brasileira, em muito pautado no pânico moral gerado pela crise econômica, pela insegurança, pela violência e pelo sentimento de impunidade que grassam no país.

A questão, contudo, é que só quando o eixo fraqueja e os ‘guardas da esquina’ se arvoram em guardiões da ordem, percebemos os riscos postos para a institucionalidade e para a manutenção da ordem social democrática. Em pânico e acuados, vamos aceitando retrocessos e elogiando os “homens de boa vontade”.

O projeto político de Jair Bolsonaro é um projeto multicêntrico que não tem um objetivo comum e que só se mantem em contraposição e/ou antagonismo. Em torno de Jair Bolsonaro, ao menos cinco grupos interconectados, porém distintos e com objetivos diferentes, cerraram fileiras e associados estão a operar um perigoso vigilantismo moral e legal.

O primeiro destes grupos são os militares. É verdade que entre os militares não há coesão absoluta, sendo que os egressos das forças de paz das quais o Brasil integrou a partir do Governo Lula estão mais próximas do projeto político do presidente Jair Bolsonaro (General Augusto Heleno, General Santos Cruz, General Fernando Azevedo e Silva, entre outros). Nesse particular, a escolha de Hamilton Mourão como Vice-Presidente serviu ao simbolismo eleitoral e, sobretudo, serviu ao equilíbrio interno da caserna.

Para os militares, mesmo reconhecendo que os Governos do PT foram os que mais investiram na modernização tecnológica das Forças Armadas, a ressonância dos discursos de Bolsonaro frente à crise ética que assolou o país durante as gestões Lula e Dilma foi a oportunidade perfeita e democrática para a sua reinserção no centro do poder, na ideia de que a experiência acumulada e a “retidão” doutrinária de seus integrantes poderiam ser aliadas na “reconstrução moral da pátria” e armas poderosas para se evitar que traumas do Golpe de 1964 fossem reabertos.

O segundo é o grupo formado por segmentos da alta burocracia pública, do Poder Judiciário e do Ministério Público que, tomados pelo sentimento de onipotência de seus saberes e movidos pela crença na impotência frente àquilo que identificam como a leniência das leis, propugnam a adoção de ferramentas autoritárias e populistas de persecução penal. Nem que para isso signifique fazer o que for preciso para fazer valer suas teses.

O pacote “anticrime” de Sérgio Moro é uma prova forte deste processo, na medida em que propõe soluções para o drama da criminalidade a partir de uma visão nitidamente parcial do problema e não contempla, em seu escopo, medidas que visem a segurança pública como um todo; não fala da organização das polícias e não trata de saídas para o sistema prisional, fontes principais, mais que as leis, dos principais dilemas e ineficiências da área no país. O pacote chega a retomar teses que o movimento de mulheres conseguiu banir da nossa jurisprudência como “forte emoção” e legítima defesa da honra como critérios de absolvição sumária. O pacote fala de crime mas não fala de violência e medo.

O terceiro grupo é formado pelo movimento neopentecostal de evangélicos e católicos ultraconservadores, que incentiva uma agenda moral e costumes que subjuga e visa submeter qualquer visão de mundo destoante, preferencialmente neutralizando pautas multiculturais e de reconhecimento de identidades e pluralidades que não as fundadas exclusivamente na moral judaico-cristã. Para este grupo, com Damares Alves como abre-alas, o certo é apenas aquilo que seus líderes defendem e todos aqueles que discordam precisam, segundo seus porta-vozes nas redes sociais, ser ameaçados, perseguidos e punidos, não muito diferentes das Fatwas fundamentalistas dos Talebans e do Estado Islâmico.

O quarto grupo é formado pelos internacionalistas guiados por Steve Bannon e Olavo de Carvalho e que têm no clã Bolsonaro seu principal esteio de propagação, com o Chanceler Ernesto Araújo e o Ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, como ajudantes de ordens de luxo. Para este grupo, a chegada de Bolsonaro à Presidência não foi suficiente e é necessário aniquilar todos aqueles que discordam de suas teses e crenças. Este grupo advoga uma longa “guerra cultural”, a começar pela educação moral e cívica de seus valores, contra o globalismo e seus representantes, sendo que a agenda de defesa de direitos civis e humanos é assumida como a representação do mal a ser combatido. O incentivo ao ódio e ao ressentimento, bem como o culto às armas se destacam entre os adeptos deste segmento.

O quinto grupo é formado a partir da convergência do mercado financeiro e do setor privado em torno das teses ultraliberais de Paulo Guedes como aquelas únicas capazes de tirar o Brasil de uma de suas mais profundas crises econômicas da história. Sua principal aposta é a necessária e inadiável reforma da previdência, nem que, para muitos que formam este grupo, isso signifique partilhar esforços com os líderes de agendas antiliberais e autoritárias. Também defende a redução do tamanho do Estado e a desregulamentação radical dos negócios e das atividades econômicas, cujo exemplo mais nítido é a crítica à agenda ambiental e à pauta indígena e o incentivo à mineração e ao agronegócio.

No meio de todos esses grupos e tendo que fazer frente às tragédias em série, os policiais e bombeiros militares estaduais, que em sua grande maioria acreditou no projeto de Jair Bolsonaro, são diplomaticamente recebidos nos gabinetes do Poder mas poucas são suas demandas atendidas e, o mais importante, resolvidas. As Polícias e Corpos de Bombeiros militares parecem que ficarão a reboque das Forças Armadas no debate sobre previdência e as polícias civis continuam sucateadas e sem perspectivas de investimentos.

A crise na coalizão de governo é real e, associada às tragédias, à violência banalizada e às omissões éticas que nos assolam, nos lembra que não é à toa que estamos exaustos e atordoados; estamos perdidos em um eterno porvir que nunca chega e suga precocemente nossas energias, sonhos e vidas.

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A cruzada brasileira rumo à Jerusalém https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/07/a-cruzada-brasileira-rumo-a-jerusalem/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/07/a-cruzada-brasileira-rumo-a-jerusalem/#respond Fri, 07 Dec 2018 02:24:46 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/08128175-150x150.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=486 Esta semana, o Instituto para Economia e Paz, com sede em Sydney, Austrália, divulgou a edição 2018 do Índice Global de Terrorismo – IGT (ver a íntegra aqui, na versão em inglês). Segundo este índice, as mortes por terrorismo diminuíram 27% no mundo entre 2016 a 2017 e, neste último ano, alcançaram 18.814 pessoas mortas.

No ranking geral, composto por 138 países e liderado pelo Iraque, o Brasil ocupa a 90ª posição, mais bem colocado que países da Europa e do que os EUA (20º). Se tomarmos apenas os 11 países avaliados da América do Sul, o Brasil ficou em 7º, sendo que, na Região, a nação com mais atentados terroristas em 2017 foi a Colômbia (27º.), seguida do Peru (66º).

Independentemente da posição brasileira ser relativamente boa, estes números são a evidência de que o terrorismo está longe de ser um problema menor no mundo e que as nações precisam estar preparadas para lidar com os riscos a ele associados. O terrorismo é uma das mais antigas e poderosas armas de imposição sectária e autoritária do medo e da violência.

E, para combate-lo, a prevenção e o investimento pesado em informação e inteligência são as estratégias mais eficazes. No fundo, contra a barbárie da violência política e/ou religiosa, principal combustível para o terrorismo, a vigilância constante é a forma de evitarmos ataques e anteciparmos problemas.

E é isso que analistas indicam que o presidente eleito Jair Bolsonaro parece que não está considerando ao anunciar a transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, cidade que é cenário central da geopolítica mundial que antagoniza nações e, por vezes, retroalimenta o fogo do caldeirão fervente do Oriente Médio.

O fato é que, pretensamente querendo agradar o segmento religioso neopentecostal, o governo Bolsonaro está colocando o Brasil no mapa de risco do terrorismo mundial.

Em termos objetivos, enquanto o Brasil hoje é visto como país neutro em termos da geopolítica do terror, Israel tem um índice de terrorismo 3,4 vezes superior ao brasileiro e, ao nos alinharmos aos EUA e transferirmos a embaixada para Jerusalém, estaremos trazendo este problema para o nosso colo. Estamos assumindo um risco muito grande.

Mas sabendo que o governo Bolsonaro é composto por muitos altos oficiais da reserva das Forças Armadas, que são instituições que prezam pelo cultivo do pensamento estratégico e da análise de cenários, a pergunta que fica é por quê assumir tais riscos, ainda mais que eles historicamente não são nossos?

Como não há almoço grátis, segundo o ditado norte-americano, talvez o governo Bolsonaro esteja achando que os riscos da decisão sejam menores do que os benefícios de um alinhamento radical com os governos de Israel e EUA, grandes fornecedores de tecnologia militar e na área de energia.

Uma outra possibilidade é que o cálculo seja econômico, na crença de que eventuais perdas no comércio internacional advindas de potenciais sanções dos países árabes seriam compensadas por Israel e, sobretudo, pelos EUA. Ou ainda, de que o custo da violência oriundo da criminalidade comum é mais alto (R$ 258 bilhões) do que o impacto do terrorismo (US$ 52 bilhões ou cerca de R$ 201,5 bilhões) e, nessa direção, uma reconfiguração das respostas públicas frente ao crime, à violência e ao medo não encontraria grandes obstáculos políticos e legais junto ao Congresso e ao Judiciário.

E, nesse processo de reconfiguração, talvez o cálculo seja de natureza tática, já que eventuais atentados terroristas que ocorreriam no Brasil seriam argumentos simbólicos fundamentais para um projeto de poder de restrição de direitos por dentro da institucionalidade democrática, tal como ocorre hoje na Turquia, na Rússia, na Hungria e nas Filipinas (país cujo presidente, Rodrigo Duterte, tem um discurso muito parecido com o de Bolsonaro e que registrou, segundo o IGT, o maior número de mortes por terrorismo em mais de uma década no ano passado).

Talvez ainda o governo e a família de Jair Bolsonaro estejam pensando que, em termos práticos, nada mudaria, já que, na segurança, o total de mortes por atentados terroristas no mundo é cerca de 3,5 vezes menor do que as 63.880 mortes violentas intencionais registradas apenas no Brasil (ver dados para 2017 aqui) e que um aumento de mortes por atos terroristas seria diluído no trágico patamar de violência do país. O custo político seria pequeno mesmo que a um custo alto em vidas.

Dito de outro modo, se a violência criminal brasileira é muito maior do que a soma de todas as vítimas juntas dos atentados terroristas no mundo, o risco desses últimos crescerem internamente pode servir como justificativa para a aprovação mais fácil da criminalização de movimentos sociais e de manifestações por direitos fundamentais. O terrorismo é um problema global e que politicamente mobiliza muito mais do que a violência contra jovens negros das periferias do país.

Não deixa, portanto, de ser politicamente potente, na perspectiva do próximo governo, tratar a violência como um problema de defesa nacional, já que medidas de exceção poderiam ser acionadas. Isso autorizaria e aceleraria reformas legais e mobilizaria ainda mais a sociedade em torno de uma renovada agenda de endurecimento penal e institucional. Cruelmente, a possibilidade do terrorismo passaria a ser o turnpoint ideológico para a reconversão política-ideológica do Brasil propugnada pela gestão do presidente eleito. Mas não de modo direto. É necessário embala-la como fruto da ação “corajosa” e altruísta; de respeito à soberania de uma grande nação amiga.

Significa dizer que, para além de justificativas retóricas em torno da autodeterminação das nações, o anúncio de transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém não é um ato de inocência política ou um gesto para agradar os neopentecostais ou os EUA/Israel apenas. A meu ver, este anúncio parece ser uma estratégia sofisticada de reenquadramento institucional e simbólico mais afeita aos prestidigitadores políticos, que provocam debates sobre determinados assuntos para poderem esconder suas reais intenções e atingirem seus objetivos de modo mais rápido e com menos oposição.

A guerra cultural contra a agenda de direitos civis já começou! O drama é que, com isso, o Brasil corre o sério perigo de se tornar ainda mais violento, desigual e segregacionista.

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Brasil, terra devastada pela violência? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/08/12/brasil-terra-devastada-pela-violencia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/08/12/brasil-terra-devastada-pela-violencia/#respond Sun, 12 Aug 2018 20:22:09 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/650x375_1376297-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=190 Os números da 12ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados na semana que passou, e a repercussão por eles gerados trazem à mente texto que publiquei na coletânea “O Brasil no Contexto: 1987-2017”, organizada por Jaime Pinsky, da Editora Contexto.

Nele, eu analiso como a permanência da violência enquanto uma das características mais marcantes da sociedade brasileira está associada, nos planos sociocultural, econômico e geopolítico, à forma como o Brasil fez a síntese entre sua história, seu projeto de nação e as transformações vividas pelo mundo nos últimos 30 anos.

Com o fim da empolgação com o fim da Guerra Fria, em 1989, vários acontecimentos passaram a fazer parte do cotidiano do mundo e acabaram com todas as antigas certezas; resultaram, inclusive, no resgate dos nacionalismos, cuja maior emblema será por anos a saída inglesa da União Europeia (Brexit) e a eleição de Donald Trump para a Presidência dos EUA.

E, como era de se esperar, o Brasil não ficou imune a esses processos históricos e geopolíticos. Ao final da década de 1980, o país emergia disposto a repactuar regras de convivência entre seus cidadãos e, em 1988, promulga a “Constituição Cidadã”, cuja centralidade na vida do país parecia que iria selar as pazes do Estado com a sociedade, reforçar direitos sociais e políticos e incluir milhões de brasileiros e brasileiras em um novo e mais justo modelo democrático de desenvolvimento.

Entretanto, com o passar dos anos, múltiplos acontecimentos e narrativas cruzadas foram se sobrepondo e o Brasil foi se dando conta, ainda que tardiamente, de vários dos seus erros, omissões e tragédias.

A utopia da paz foi cedendo espaço para um cenário distópico de devastação moral e política; um cenário de medo e violência que tornou o país suscetível aos discursos autoritários e que coloca em risco o próprio ideal de democracia, como bem narraram os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblat no livro “Como as democracias morrem”.

E, um dos principais ingredientes deste novo tempo social é o medo, que no Brasil atual é em muito traduzido pelo medo da violência do crime organizado, mas que em realidade é fruto de inúmeros processos culturais e políticos que fazem com que a violência seja cultuada por segmentos expressivos da população como resposta possível do Estado frente ao crime ou, até mesmo, como recurso legítimo frente às estruturas desiguais da sociedade brasileira.

E, em meio a essa complexa teia social e no cotidiano das cidades, as ameaças do crime, as altas taxas de violência contra as mulheres, bem como a baixíssima capacidade dos órgãos de segurança e justiça em evitar a impunidade mostram que, no que diz respeito às políticas públicas de segurança, o Estado opera um oneroso sistema e um forte paradoxo que erode a confiança nas leis e nas instituições, de um lado, e abre, por outro, margens para medidas de extremo rigor e para a desconsideração de garantias e direitos civis. Muito se trabalha, mas pouco se faz para mudar a realidade. Não temos garantido o monopólio legítimo da violência nas mãos do Estado.

A vida vale muito pouco no país.

O caso recente registrado em Guarapuava, no Paraná, pelo qual o professor Luis Carlos Manvailer está sendo acusado de ser o responsável por atirar e matar a advogada Tatiane Spitzner, sua esposa, da sacada do apartamento do casal, lembra-nos que as reações à violência, no cotidiano, são seletivas. Isso porque o episódio foi amplamente acompanhado pelo sistema de segurança do edifício onde o casal morava, mas, neste caso, parece que as câmeras estavam lá para monitorar o motoboy que entrega a pizza e não para intervir em casos como este; para que as autoridades policiais fossem acionadas.

Em outras palavras, vivemos numa guerra muda e que parece não mais provocar indignação social desde que circunscrita às periferias e favelas. E, em meio à exploração do medo e deste traço de identidade do brasileiro, mercadores misóginos e intolerantes da morte, travestidos de justiceiros e defensores da moral e dos bons costumes; dos “indefesos” e “desarmados” cidadãos, vão ganhando eleições e espaço no debate público da década de 2010.

Na crítica aos governos de esquerda que marcaram a década de 2000 na América Latina – que na segurança pública não se mostraram em nada diferentes de governos conservadores ou de direita –, o país está vendo crescer um movimento sectário perigoso, que eleitoralmente se assemelha ao que também estamos vendo nos EUA e na Europa, com a diferença básica de que, aqui, o inimigo é interno.

Fantasmas da Guerra Fria são ressuscitados, como o medo do “Comunismo” (a URSAL do candidato Cabo Daciolo é um exemplo.), bem como novas bandeiras são levantadas, como a da “escola sem partido”, a denúncia da ideologia de gênero, resgate dos valores da religião ou a negação do racismo.

E, para combater esse inimigo, surgem propostas para que conquistas da Constituição de 1988 sejam revistas, como o fim da universalidade das políticas sociais ou a limitação de direitos. A população parece hipnotizada e correndo o risco de acreditar em novos candidatos a Jim Jones, pastor da seita “O Templo do Povo”, que em 1978 levou 900 pessoas ao suicídio coletivo em Jonestown, na Guiana.

Diante de tantas tragédias, os números e os episódios de violência narrados esta semana nos fazem pensar se iremos conseguir nos mobilizar em torno da vida ou se, ao contrário, continuaremos embarcados em uma nau perdida no Rio Tibre, primeira e longa travessia que leva as almas até o Purgatório, tão bem descrito na Divina Comédia, de Dante Alighieri.

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Violência: o atestado de óbito da Democracia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/05/violencia-o-atestado-de-obito-da-democracia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/05/violencia-o-atestado-de-obito-da-democracia/#respond Tue, 05 Jun 2018 14:14:37 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/1712367-150x150.jpeg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=37 O Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgaram hoje a edição de 2018 do Atlas da Violência, publicação que sistematiza e analisa dados fornecidos pelo sistema de saúde do país. Os números, mais uma vez, são de uma tragédia mais do que anunciada. Em 2016, 62.517 pessoas foram assassinadas no Brasil, em um aumento de 5,8% em relação ao ano anterior.

E as más notícias não param neste total. Os 62.517 homicídios representam uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, maior patamar da história desde que os dados do sistema de saúde são contabilizados. E, se focarmos apenas nos jovens entre 15 e 29 anos de idade, a taxa salta para 65,5 mortes para cada 100 mil jovens. Trata-se de uma taxa mais do que o dobro maior do que a média nacional e que revela que estamos boicotando o nosso futuro.

Estudos do economista Daniel Cerqueira, do Ipea, estimam que o Brasil perde 1,5% de seu PIB todos os anos (Produto Interno bruto) ao aceitar que os assassinatos de jovens se mantenham nestes patamares obscenos. E, em 6 estados brasileiros, as taxas de mortes de jovens superam as inacreditáveis 100 mortes por 100 mil, com destaque para Bahia (114,3) e Pernambuco (105,4), dois grandes estados do Nordeste.

Além disso, os dados demonstram que entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1% e está em 40,2 mortes para cada 100 mil habitantes, a taxa de não negros teve redução de 6,8%e está em 16 mortes para cada 100 mil habitantes.
Temos que ter a dignidade de abrirmos um debate transparente sobre o significado destes dados e sobre as razões da questão racial ser tão predominante na explicação da violência.

No entanto, ao invés de enfrentarmos o problema, o discurso bélico de autoridades é o atalho mais curto para o fracasso do Estado de Direito no Brasil. Nada se fala em prevenção, repressão qualificada e aperfeiçoamento das instituições; nada se fala de quão obtusa é a cruzada de “guerra às drogas” vivida por nós e de como o mata-mata que vige nas periferias das grandes cidades é a face mais perversa de opções político-institucionais sobre como lidar com os nossos conflitos sociais mais candentes. Somos uma sociedade atemorizada e autoritária, onde as promessas que valorizam a violência como resposta são uma poderosa arma eleitoral.

Basta vermos que no dia em que o Atlas da Violência vai mostrar um recorde histórico de assassinatos, a pesquisa do site jornalístico Poder360 mostra o defensor de mais violência como solução para os problemas da segurança pública, Jair Bolsonaro, como líder das pesquisas. Chega a ser imoral a aceitação que a violência tem no Brasil.

Imoral e completamente desprovida de racionalidade, já que a violência é parte da história do país e não é fruto exclusiva de “perigosos criminosos de fuzis”. Por certo a nova dinâmica do crime organizado exige respostas mais eficientes do que as o Estado brasileiro tem dado por meio da ação de suas esferas e poderes.

Porém, se olharmos para o indecente dado que mostra que 50,9% das vítimas de estupros no país é composta por crianças com até 13 anos de idade e, ainda mais angustiante, que 30% dos casos de estupro contra crianças são perpetrados por familiares próximos, veremos que a violência atinge a todos nós e que a melhor saída para o país seria uma grande coalização política para bani-la do nosso cotidiano.

Sim, a solução passa pela construção de um projeto político que seja capaz de modernizar a segurança pública brasileira e pacificar a sociedade. Mas sem ideias toscas e salvacionistas, mas com trabalho, evidências e esforços articulados e coordenados. Um projeto que valorize o profissional da área e, ao mesmo tempo, esteja motivado pelo cumprimento da lei, que tem nas cláusulas pétreas da Constituição Federal a sua maior guia.
Enquanto olharmos a segurança pública sob o prisma do terror que toma conta do brasileiro, soluções efetivas dificilmente terão êxito.

Estamos correndo um enorme risco civilizatório e é importante que saibamos explicita-los para não haver margem de dúvidas: ou o Brasil interdita politicamente a violência ou estaremos preenchendo o atestado de óbito da democracia no país.

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A lei é para todos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/05/30/a-lei-e-para-todos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/05/30/a-lei-e-para-todos/#respond Wed, 30 May 2018 16:22:59 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/05/15275478655b0c87d9bc320_1527547865_3x2_md-150x150.jpg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=12

A forma como o Brasil está enfrentando a crise no transporte rodoviário de cargas, que em muito já ultrapassou as demandas dos caminhoneiros autônomos do país, é evidência cabal da fragilidade das instituições democráticas no Brasil, com ruidosos e agressivos grupos a favor da intervenção militar ganhando um perigoso protagonismo e revelando muito sobre o tempo social em que vivemos.

As tentações autoritárias se multiplicam e, infelizmente, confirmam os achados antecipados em artigo publicado em junho do ano passado na Ilustríssima (Violência e Medo Insuflam Defesa de Autoritarismo-no-brasil).

Nesse artigo, dados de pesquisa realizada pelo Datafolha e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que o país é terreno fértil para ideias e líderes autoritários. Diante do medo provocado pela violência urbana, propostas salvacionistas dão o tom do debate eleitoral: enquanto se valorizam líderes pretensamente capazes de restaurar a ordem e recolocar a sociedade nos trilhos, a democracia perde espaço.

Porém, o paradão dos caminhões, que conseguiu aglutinar demandas legítimas de um segmento profissional com toda sorte de interesses político-ideológicos e insatisfações difusas com o governo de Michel Temer e a classe política, trouxe um elemento adicional que ganhou pouco destaque e que pretendo refletir aqui com todos os leitores e leitoras.

Refiro-me à forma como as polícias e as Forças Armadas lidaram até aqui com a situação. Em paralelo ao crescente esfarelamento da autoridade do governo federal, as instituições mostraram-se bastante reticentes em conter e reprimir atos de quebra da ordem, como bloqueios de pistas, ameaças a quem queria trabalhar e crimes. Mesmo após a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), ter autorizado, se necessário, o uso da força e, sobretudo, multas de R$ 100 mil, essas instituições não quiseram assumir o ônus envolvido na dispersão de um movimento visto como legítimo por parcela significativa da população (pesquisa Datafolha de hoje mostra que os caminhoneiros, face mais visível desta crise, contam com 87% de apoio entre a população).

E, como resultado, a Polícia Rodoviária Federal, por exemplo, não quis colocar automaticamente em prática a decisão do STF e escudou-se no argumento da necessidade de uma posição da AGU (Advocacia Geral da União). A Polícia Federal, contrariando sua estratégia de comunicação de máxima exposição midiática, está sendo muito cautelosa e evitando dar detalhes de sua atuação. O mesmo estamos vendo nas Forças Armadas e nas Polícias Militares, que foram incumbidas de escoltar cargas vitais e desobstruir pistas, mas evitaram confrontos e estão sendo super-diplomáticas no trato com os manifestantes.

As forças de segurança deveriam ter agido de outra forma? É cedo para fazermos afirmações peremptórias. Mesmo após 10 dias de paralisação, falta-nos dados mais amplos sobre o que de fato está em jogo nesta semana de crise. A princípio, gerenciar crises é sempre mais saudável do que reprimi-las. Mas, como instituições republicanas, é essencial que sejam guiadas por métricas públicas e que prestem contas do que foi e do que está sendo feito. Não há margem para dois pesos e duas medidas. A mesma lei vale para todos.

E porque eu digo isso? Se olharmos para os padrões recentes de atuação dessas instituições, o movimento mostra uma inflexão em relação à narrativa que vem dominando o país e que defende confrontos abertos com “bandidos” e a criminalização de movimentos sociais. Se os grupos políticos fossem outros e a narrativa da criminalização das reivindicações sociais estivesse em pauta, a atitude das polícias teria sido diferente?

Afinal, como relata reportagem do UOL publicada na segunda (28), alguns caminhoneiros estavam se apropriando das cargas para poderem se alimentar nos acostamentos das estradas. E, no limite, se o uso de cargas pelos caminhoneiros foi consentido pelos donos das cargas, teríamos neste ato provas do locaute, que é quando empresários incentivam seus trabalhadores a fazerem greve e é um crime no país. Se eles não pediram, temos um furto qualificado, que também é crime. Em ambos os casos, estamos presenciando situações que autorizariam investigações celeres, detenções e, se fosse o caso, flagrantes. Mas a empatia com a causa dos caminhoneiros modulou até aqui a ação pública e torna o quadro bastante opaco e incerto.

E, por trás dessa aparente mudança de narrativa e de postura, esconde-se uma complexa teia de gargalos e dilemas de governança e coordenação do sistema de segurança pública e justiça criminal que, muitas vezes, funciona em uma lógica fragmentada, pouco transparente e demasiadamente autônoma em relação à ordem social inaugurada pela Constituição de 1988. Teia esta que nos motiva a debater os rumos e sentidos das respostas públicas frente ao crime, à violência, ao medo e à manutenção da ordem social democrática do Brasil contemporâneo.

O blog Faces da Violência pretende, exatamente, ser um espaço que buscará analisar o que está por trás dos números da tragédia de medo e violência que nos assola e, com isso, pensar soluções mais efetivas para todos estes movimentos. Violência, segurança e ordem serão, portanto, debatidas a partir de uma perspectiva que valoriza a vida e a cidadania e que acredita no Brasil.

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