Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os riscos da institucionalização da Operação Vingança https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/os-riscos-da-institucionalizacao-da-operacao-vinganca/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/os-riscos-da-institucionalizacao-da-operacao-vinganca/#respond Tue, 23 Nov 2021 13:57:18 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/foto-salgueiro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1845 Moradores, familiares e ativistas têm classificado o caso de Salgueiro como uma chacina cometida por policiais durante uma “operação vingança” pela morte de um sargento PM.

David Marques*

 

Entre a madrugada de domingo e a manhã de segunda-feira (21/11) 8 corpos foram retirados de uma área de mangue no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. As notícias sobre o caso dão conta de que os corpos apresentavam com sinais de tortura. Entre os sete mortos identificados, dois não possuíam antecedentes criminais.

No sábado, o sargento PM Leandro Rumbelsperger da Silva, de 40 anos, havia sido morto por criminosos em um ataque a uma base da PM. A operação foi então desencadeada, com participação do BOPE.

O caso se dá no contexto da vigência da chamada ADPF das Favelas, que restringiu e condicionou a realização de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19 à previa autorização judicial. O MP-RJ diz ter sido informado da operação. Vale lembrar, no entanto, que um dos casos citados na decisão do ministro Edson Fachin, do STF, nesta ADPF foi o de João Pedro, adolescente de 14 anos morto durante operação policial no mesmo Complexo do Salgueiro, em junho de 2020. Além disso, cabe mencionar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro em 2017 no caso da Favela Nova Brasília, no qual 26 pessoas foram mortas e 3 mulheres foram vítimas de violência sexual durante operações policiais entre 1995 e 96.

Moradores, familiares e ativistas têm classificado o caso de Salgueiro como uma chacina cometida por policiais durante uma “operação vingança” pela morte do sargento PM.

O Projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, buscou estudar as chacinas no Brasil – casos com três ou mais vítimas fatais na mesma ocorrência – a partir de notícias da imprensa. Foram sistematizados 408 casos entre 2015 e 2019. Destes, em 97 houve suspeita ou certeza da participação de policiais em sua execução (23,8%). Estes casos foram identificados em 16 estados, com destaque para RJ, PA e SP, nos quais em mais de 43% do total de casos identificados houve participação de policiais. Segundo este levantamento, somados, os casos nos quais há suspeita ou certeza de participação de policiais ou de outros agentes ou ex-agentes estatais (categorizados como atuação policial, operações policiais, grupos de extermínio ou milícia) são a segunda motivação mais frequente de chacinas no país.

Na tese recentemente defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, estudei em maior detalhe a participação de policiais em chacinas, com foco em um caso ocorrido em Osasco e Barueri, região metropolitana de São Paulo, em 2015. O estudo demonstrou que as chacinas com participação de policiais podem ser divididas em três tipos principais:

  1. Chacina cometida por policiais em serviço, em ações policiais de rotina ou em operações policiais planejadas, cujas mortes podem ser intencionalmente lícitas ou intencionalmente abusivas (podendo as abusivas serem ainda dissimuladas de legítimas);
  2. Chacina cometida por policiais fora de serviço, relacionadas com o oferecimento de serviços de segurança privada;
  3. Chacina cometida por policiais fora de serviço com o objetivo de extorquir traficantes de drogas, demonstrar poder, exercer controle e auferir benefícios financeiros com as dinâmicas criminais locais.

Na pesquisa, a realização vingança pela morte de outro agente de segurança pública foi mais frequentemente associada às ações letais de policiais em serviço, as chamadas “resistências seguidas de morte” e por meio de operações policiais planejadas. Estas mortes geralmente são cometidas por policiais que querem ver seus nomes associados a morte de pessoas que consideram criminosos, dentro de uma lógica de limpeza social, de “fazer justiça”.

O caso do Salgueiro parece corresponder em grande medida à análise acima, no que é chamado pelos moradores de “operação vingança”. Embora não se perca de vista a séria crise de segurança pública enfrentada pelo Rio de Janeiro nos últimos anos, é preciso questionar primeiramente o modelo de policiamento baseado no enfrentamento militarizado. O princípio da experiência da política de pacificação no Rio, na segunda metade dos anos 2000, mostrou que é possível fazer segurança de um modo diferente, e com resultados melhores, apostando em uma polícia que permaneça nas comunidades e nos territórios, se aproximando de sua população, e não apenas passe por eles. Ao fracasso da política de segurança segue-se o fortalecimento do crime organizado e das milícias, vastamente documentado em estudos e notícias. O resultado desse processo continua sendo a alta produção de letalidade, com suas mais diferentes vítimas, incluindo crianças, como João Pedro, e o Sargento Leandro.

Pesquisa do FBSP mostrou que de uma amostra de 316 casos de mortes decorrentes de intervenção policial ocorridas no Rio e em São Paulo em 2016, 90% foram objeto de pedido de arquivamento por parte do Ministério Público. Se o controle da atividade policial não é exercido de forma constante, incluindo os casos de mortes decorrentes de intervenção policial em serviço, ele torna-se virtualmente impraticável nos casos mais extremos e com isso temos a deterioração das instituições e do sistema democrático de segurança e justiça, que se torna refém do arbítrio.

 

*David Marques é doutor em sociologia e coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Morte de Ecko fortalece a expansão política miliciana https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/morte-de-ecko-fortalece-a-expansao-politica-miliciana/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/morte-de-ecko-fortalece-a-expansao-politica-miliciana/#respond Fri, 25 Jun 2021 15:27:01 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/ecko-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1802 Por trás da morte midiática do homem mais procurado pela polícia do Brasil está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento

José Cláudio Souza Alves*

O assassinato de Wellington da Silva Braga, o Ecko, em uma operação da Polícia Civil, no dia 12 de junho de 2021, representa mais um capítulo de uma guinada política da atuação policial pelo governo do estado do Rio de Janeiro em direção ao fortalecimento da estrutura miliciana que vem se expandindo de forma acelerada nos últimos anos. Por trás da morte midiática daquele que seria o homem mais procurado pela polícia do Brasil, e o líder da maior milícia do estado, está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento, como afirmado pelas autoridades policiais e pela mídia. Para entender isso, é preciso relacionar essa morte a uma sequência de eventos que se iniciaram em outubro de 2020.

Naquele momento, a um mês das eleições municipais, uma operação conjunta da Polícia Civil e Polícia Rodoviária Federal assassinou 17 pessoas, sob a justificativa de serem “narcomilicianos”. Esse termo passava a dar a tônica da atuação policial. Com ele, desvincula-se a atuação miliciana da ligação com os agentes de segurança pública, dentro do Estado, atribuindo-a às práticas de traficantes. A consequência seria a liberação para matar tais indivíduos, já que não passavam de bandidos. O marketing da ação policial “antimilícia”, ocultando o engajamento crescente dos policiais ao empreendimento miliciano, soma-se à lógica do “bandido bom é bandido morto”, tão cara à extrema direita, naquele momento, em plena campanha eleitoral.

O segundo evento foi a implantação de um destacamento do 39º Batalhão da Polícia Militar no Complexo do Roseiral, na cidade de Belford Roxo, em janeiro de 2021, a partir das articulações entre o prefeito reeleito, Wagner dos Santos Carneiro, e o governador Cláudio Castro. As mais de 20 mortes produzidas por operações policiais nessa área vitimando membros do Comando Vermelho (CV) se incluem na geopolítica de expansão das milícias, que há décadas dominam os bairros do São Bento e Pilar, na cidade vizinha de Duque de Caxias, seguindo o eixo da Avenida Leonel Brizola.

O terceiro momento surge na operação da Polícia Civil que assassinou 28 pessoas em uma operação na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Tal desproporcionalidade de mortes, quando comparadas ao histórico mais recente das operações na capital, relaciona-se tanto ao confronto com o STF e a ADPF que restringe operações policiais nas favelas, em decorrência dos efeitos da pandemia de Covid-19, como à disputa geopolítica miliciana que vem isolando o Jacarezinho a partir dos conflitos com o CV em três favelas próximas: Arará, Mandela 2 e Bandeira 2, as duas últimas, do Complexo de Manguinhos.

A morte de Ecko, a aproximadamente um mês da chacina do Jacarezinho, dá prosseguimento ao projeto em curso. A aliança entre milícia e Terceiro Comando Puro (TCP), tendo o aparato policial como fiador, perpetua-se, a despeito dos assassinatos de “narcomilicianos”, ligados ao TCP, presentes na Liga da Justiça ou ex-bonde do Ecko, numa espécie de “preço a ser pago” pela manutenção dos negócios e marketing “antimilícia” que tenta ocultar a expansão miliciana.

Há, igualmente, uma intensificação do controle territorial, econômico e político eleitoral feito pela milícia em cima das áreas do CV. Projeta-se um alinhamento midiático com o discurso do extermínio, praticado pela política de segurança pública, com destaque para as redes de televisão, notadamente o SBT, com sua penetração popular. Essa correlação de acontecimentos deixa nítida a estratégia política voltada para as eleições de 2022, nas quais os candidatos ao governo do estado, Câmara estadual e federal, Senado e Presidência da República, com projetos de extrema direita, visam aprofundar seus ganhos a partir das disputas entre si, engalfinhados para ocupar o palanque bolsonarista.

O cenário de aprofundamento do fosso social e crescimento do mundo do crime, como alternativa real frente à crise multidimensional que se estabelece, projeta a área de segurança pública como grande palco de operações psicológicas, sociais, midiáticas e assassinas cujo objetivo é consolidar uma hegemonia inconteste da extrema direita sob a batuta bolsonarista. A morte de Ecko, apenas mais um soldado transformado em chefão para justificar a lógica do extermínio como solução, tem, igualmente, uma outra dimensão, que não se pode desprezar. Ela abre um cenário de disputas, internas e externas à milícia, quanto à liderança e condução do legado miliciano na Zona Oeste e Baixada Fluminense que juntas congregam quase 50% do eleitorado do estado.

Danilo Dias Lima, o Tandera, emerge como novo “Lampião” a ser degolado, mas provoca instabilidade na disputa interna à milícia ao ser alçado, pela morte de Ecko, à categoria de novo “chefão” que enfrenta a resistência dos herdeiros familiares de Ecko, como é o caso de Luís Antônio da Silva Braga, seu irmão. Essa instabilidade da disputa interna miliciana se junta, por sua vez, ao risco da retomada, pelo CV, de áreas perdidas para a milícia, produzindo uma intensificação do terror nas comunidades em disputa, que são muitas. Esse agigantamento da onda de instabilidade e medo reforça o pano de fundo para a manutenção do extermínio como prática da segurança pública, retroalimentando mais operações e chacinas enquanto cortina de fumaça que oculta a expansão miliciana como projeto de controle de amplo espectro e, principalmente, político eleitoral.

Todos esses eventos projetam a milícia como grande palanque para 2022. Quem tiver mais milicianos ao seu lado, com controle territorial, econômico e político de áreas, sai na vantagem. Quem mais matar os “narcomilicianos”, troféus criados para as prateleiras da extrema direita, também ganha pontos. Quem soma as duas estratégias tem mais pontos ainda. Desse modo, o a região metropolitana do Rio de Janeiro mantém o seu papel de grande laboratório, repercutindo para o resto do país, dentro do projeto bolsonarista hegemônico, as novas etapas da “milicialização” da segurança pública.

 

*Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro “Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”.

 

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Na edição desta semana, leia também “O que nos ensina o Big Brother Policial que envolve a caçada a Lázaro Barbosa” e “Segurança Pública 4.0 : tecnologia e inovação no combate à criminalidade”.

 

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Rio é um dos maiores desafios de Segurança Pública no mundo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/rio-maiores-desafios-seguranca-publica-mundo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/rio-maiores-desafios-seguranca-publica-mundo/#respond Mon, 10 May 2021 22:47:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/policiais-foto-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1764 O controle do uso da força policial é preocupação permanente para democracias liberais consolidadas; reforma da polícia ajudou muitas das grandes cidades norte-americanas a atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história 

Alberto Kopittke*

 

Com uma grande união de forças, liderança política e investimento financeiro seria plenamente possível construir um plano capaz de reduzir a violência no Rio de Janeiro. Sim, o Rio de Janeiro é um dos maiores desafios para a Segurança Pública do mundo, mas já existe conhecimento suficiente acumulado sobre o que funciona para reduzir a violência para construir um grande e exitoso plano na cidade. Não se acabaria com o tráfico de drogas, assim como ele não acabou em Nova York, nem Medellín, mas seria possível retirar das organizações criminosas o controle de comunidades, armamento de grande porte e controlar homicídios e roubos.

Um plano de longo prazo, suprapartidário, que envolvesse um esforço de união nacional, com ações bem planejadas e coordenadas que viriam desde a reformulação do sistema prisional, um plano de reurbanização, a implementação de metodologias estruturadas de prevenção à violência e programas sociais, tecnologia de ponta e um significativo fortalecimento da área de inteligência das forças de segurança, sem dúvida conseguiria reduzir a violência de forma sustentável e permanente na cidade.

Tarefa mais difícil e demorada, no entanto, é reduzir a violência e a corrupção policiais. A chacina de Jacarezinho veio se somar a um macabro e longo histórico de episódios brutais provocados por algumas forças de segurança pública do país, totalmente fora de qualquer parâmetro razoável, compreensível e aceitável. Além das dezenas de jovens, a cada nova chacina morre também nossa democracia.

Nos EUA, o chamado “Primeiro Grande Despertar” contra a violência policial chacoalhou o país entre os anos 1960 e 1970, de forma muito mais forte do que nos episódios recentes das mortes de David Brown e George Floyd. A comunidade negra daquele país se organizou e passou a não aceitar mais a forma como era tratada pela polícia, resultando em grandes manifestações e muitos episódios de confrontos violentos que paralisaram as grandes cidades, às vezes por semanas, e em muitos casos resultaram em dezenas de mortes.

Como consequência daquelas mobilizações, prefeitos progressistas, chefes de polícia reformistas e a Suprema Corte realizaram reformas profundas sobre o controle do uso da força. Essas reformas incluíram a demissão de dezenas de policiais com histórico de violência, a redução da discricionariedade dos policiais, o fortalecimento dos mecanismos de controle interno, o aumento da transparência e a imposição de indenizações milionárias pela justiça como consequência de episódios de violência. Como resultado, entre 1970 e 1985, o número de mortes provocadas pela polícia caiu 51%, sendo que essa queda foi de 72% entre jovens negros entre 15 a 34 anos e a diferença entre o número de negros e brancos mortos pela polícia caiu de 7,5 vezes para 3. O problema é historicamente tão profundo que mais de mil pessoas ainda nos dias de hoje são mortas pela polícia, muitas vezes com brutalidade racista.

Vinte anos depois das grandes reformas internas, fato é que uma nova geração de policiais, formada dentro de uma nova mentalidade, liderou experiências significativas de redução da criminalidade e as polícias saíram fortalecidas e modernizadas desse processo, além de mais efetivas para prevenirem a violência. Essas novas polícias representaram o avanço decisivo para muitas das grandes cidades norte-americanas atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história.

Já no Brasil, nem mesmo as 45 mil mortes provocadas por intervenção policial na última década são capazes de mobilizar forças para dialogar sobre mudanças necessárias nas corporações. Ainda que ela seja agora exaltada como virtude, a violência policial não começou no atual governo. Durante os sete governos democráticos que o país teve desde a Constituição de 1988, com importantes exceções, o tema não foi tratado com a prioridade devida, o que agora vemos que cobra um alto preço para a democracia no país. E mesmo depois de tudo o que vivemos nos últimos anos, ainda não é possível vislumbrar que algum novo governante democrático que suba a rampa do Palácio do Planalto apresentará uma agenda de grande impacto nessa área.

O Governo Federal precisa assumir um novo papel na Segurança Pública. Instituições estaduais não conseguem investigar e promover mudanças de fato em situações tão graves como a do Rio de Janeiro; assim como a Inspetoria do Exército, responsável pelo controle das polícias militares, e o Ministério Público, responsável pelo controle das polícias civis, foram incapazes de promover avanços substanciais nesse tema desde a Constituição de 1988.

Um sistema federal de controle das polícias, com uma nova instituição federal especializada, poderia ter um papel importante. Nos EUA a Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça tem poderes para realizar investigações e processar policiais e até mesmo de realizar intervenções sobre as polícias, com o afastamento de toda a sua direção e a realização de remodelações internas profundas, o que já foi feito 17 vezes desde 1994.

A Inglaterra, que tem índices mínimos de criminalidade e de violência policial, possui um órgão federal chamado Escritório Independente sobre Conduta Policial. Sempre que uma das 43 ouvidorias estaduais recebe uma denúncia de um fato grave cometido por algum policial ele deve obrigatoriamente repassar essa denúncia para o Escritório Nacional, que inicialmente monitora as providências adotadas em nível estadual e quando necessário abre uma investigação independente sobre o caso. O órgão possui 890 servidores e um orçamento de 73 milhões de libras, o equivalente a R$ 335 milhões. As investigações podem resultar em denúncias ao Ministério Público Federal ou em recomendações para modificações em protocolos operacionais, que têm poder vinculativo e devem obrigatoriamente ser adotadas pelas polícias.

Como se vê por esses exemplos, o tema é uma preocupação permanente das democracias liberais consolidadas e não de regimes autoritários de esquerda ou de direita.

No Brasil, algumas medidas que não exigiriam grande volume de recursos, mas sim a disposição política de lideranças democráticas, poderiam gerar grande impacto. Uma pesquisa anual de vitimização e avaliação das polícias, como é feita em muitos países desenvolvidos, poderia orientar o repasse de recursos federais e determinar a abertura de investigações especiais naqueles locais em que muitas pessoas afirmarem não confiar na polícia ou serem vítimas de violência policial. Relatórios anuais de letalidade policial, uso de armas de fogo e de todas as formas de uso da força poderiam mostrar as unidades onde o problema da violência se concentra. Sistemas de alerta precoce poderiam auxiliar a expulsar novos policiais de perfil violento.

Câmeras de corpo ligadas automaticamente poderiam ajudar a trazer informações importantes sobre as ocorrências, assim como a obrigatoriedade de acompanhamento por diferentes instituições de controle das operações de risco em salas de comando e controle especiais, com o registro formal das ordens de toda cadeia de comando. A restrição de determinados tipos de treinamento e armas a unidades especiais, empregadas a partir de um protocolo nacional e forças tarefas entre o poder judiciário, ministério público e polícia federal poderiam combater grupos de extermínio altamente letais. Essas são algumas das mudanças possíveis, sem falar ainda em outras medidas que o Poder Judiciário poderia adotar, como a responsabilização dos superiores quando se tratar de Operações oficiais.

É sempre importante destacar que embora o tema seja muito grave, ele é altamente concentrado em alguns estados brasileiros e análises mais profundas possivelmente demonstrarão que se concentram em poucas unidades do conjunto das instituições e em pequenos grupos dentro delas, que mancham reiteradamente a imagem das instituições. Reformas internas importantes inclusive já tem sido feita em algumas instituições do país e esse processo deveria se tornar uma bandeira de todos aqueles que efetivamente defendem policiais modernas e efetivas contra o crime.

A inédita Lei George Floyd, fruto de mais um despertar e da nova onda de mudanças em curso nos EUA, tem como foco a regulação do uso da força pelas polícias e deverá ser aprovada nos próximos dias. Cabe pelo menos sonhar com um diálogo amplo das forças democráticas da sociedade brasileira sobre o que poderia vir a ser uma Lei Jacarezinho, para ajudar o país a dar os primeiros passos contra chacinas a céu aberto executadas por quem deveria antes de tudo proteger e não manchar comunidades inteiras de pavor e de sangue.

*Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Na edição desta semana, leia também “Ciência e erro na investigação policial” e “Uma milícia no Rio Grande do Sul?”.

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O Rio sob o domínio das milícias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/05/o-rio-sob-o-dominio-das-milicias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/05/o-rio-sob-o-dominio-das-milicias/#respond Thu, 05 Nov 2020 14:27:32 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/fs62-1-320x213.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1563 O controle territorial é uma das características históricas e distintivas da dinâmica dos grupos armados. Conheça mais o mapa que mostra que a expansão das milícias é o fenômeno mais notável da cidade nos últimos anos. Este artigo inaugura a parceria de conteúdo do blog com o Fonte Segura, boletim de análise do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Daniel Hirata*

Maria Isabel Couto** 

Desde o final dos anos 1970, “falanges” ou “facções” se formaram no interior de prisões e rapidamente ampliaram suas atividades para fora dos muros dos presídios, gradativamente deslocando o foco da sua atuação dos assaltos a banco para o tráfico de drogas[1]. A fixação espacial própria à venda de drogas, os fluxos intensos entre bairros e prisões e a necessidade de defesa das violentas incursões policiais foram fatores decisivos na caracterização do modelo de controle armado de territórios no Rio de Janeiro, até então sob hegemonia do Comando Vermelho (CV). Ao longo dos anos 1990 o CV sofreu segmentações que originaram o Terceiro Comando (TCP) e o Amigo dos Amigos (ADA)[2]. A lógica de enfrentamento bélico entre esses grupos, e desses com as polícias, marca até hoje a dinâmica espacial fluminense, estabelecendo fronteiras que afetam a rotina dos moradores e condicionam o provimento de serviços públicos, a economia local e as chances de sobrevivência.

Em meados dos anos 2000, as chamadas milícias passaram a entrar nessas disputas[3], a partir de um novo modelo de negócios, baseado na extração de recursos econômicos provenientes do controle de serviços públicos e do achaque de moradores e comerciantes, bem como em relações de tolerância e conivência de servidores públicos, especialmente agentes de segurança[4]. Trata-se de formas de territorialização distintas daquelas das facções do tráfico de drogas, mas que aprofundaram as dinâmicas de disputas e negociação dos grupos criminais, entre si e com as polícias.

Nesse rápido percurso, o que procuramos destacar é que apesar das transformações e rearranjos, a disputa violenta pelo espaço permanece uma constante. O controle territorial é uma das características históricas e distintivas da dinâmica dos grupos armados no RJ e elemento incontornável não só para a área de segurança pública, mas também importante para outras políticas públicas urbanas, desde transporte e habitação até educação e cultura. Por essa razão, surpreende que a cartografia do domínio territorial armado não tenha sido realizada até hoje ou que, quando feita, não tenha se tornado de conhecimento público. Sabe-se da existência de levantamentos, muitas vezes apócrifos e que não apresentavam procedimentos metodológicos explícitos ou conceitos bem definidos, o que dificulta o seu uso como ferramenta para informar o debate público e especializado, típico de sociedades democráticas.

Procurando atuar justamente sobre essa lacuna, o Fogo Cruzado, o GENI-UFF, o NEV-USP, o Disque-Denúncia e o Pista News se reuniram no projeto “Mapa dos grupos armados do Rio de Janeiro”. O objetivo é finalmente construir a cartografia histórica do controle territorial armado no estado, de forma que a mesma permita não apenas informar a opinião pública, mas também auxiliar o trabalho de pesquisadores, jornalistas, gestores públicos e operadores do sistema de justiça criminal.

Um protótipo para o ano de 2019 foi elaborado a partir do repositório do Dique-Denúncia. Das 37.883 denúncias analisadas, 10.206 foram consideradas válidas para comporem uma base própria, de acordo com três critérios característicos do que chamamos de domínio territorial: controle territorial, controle social e atividades de mercado. Posteriormente às denúncias foram classificadas segundo a menção aos principais grupos armados do Rio de Janeiro – CV, TCP, ADA e Milícias – e plotadas no mapa. Para o caso da presença de diferentes grupos armados em um mesmo território, definimos um limiar que seguiu a porcentagem de denúncias para cada grupo a fim de determinar o controle de dado grupo armado ou a caracterização daquela área como “em disputa”.

Gráfico 1: Porcentagem de bairros, da extensão e da população sobre controle de grupos armados na cidade do Rio de Janeiro em 2019

Fonte: Disque-Denúncia (Elaboração Fogo Cruzado, GENI-UFF, NEV-USP, Pista News)

O resultado inicial da análise por bairros ajuda a exemplificar a importância desse projeto. Em 2019 as milícias já abrangiam um território maior que os demais grupos na cidade do Rio (57,5% da superfície da capital do estado). A extensão do domínio das milícias é o fenômeno mais notável dos últimos anos visto que, mesmo sendo um modelo de negócios mais recente e tendo enfrentado uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em 2007/2008, isso não impediu seu avanço. No entanto, antes da existência desse mapa, a sua expansão transcorria sob um véu de desinformação e medo. Muitos pesquisadores, a partir de suas intuições e pesquisas, expunham-se ao risco pessoal, afirmando o crescimento das milícias sem, contudo, conseguir demonstrá-lo no contexto geral da cidade e do estado do Rio. Agora, a partir da concretude do mapa, a presença e abrangência das milícias torna-se mais difícil de negar e pode ser comparada com indicadores de criminalidade disponibilizados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), com dados da realização de operações policiais produzidos pelo GENI-UFF e pelo CESEC, bem como com dados gerais de tiroteios produzidos pelo Fogo Cruzado e com dados de desempenho eleitoral obtidos através do TRE. Abre-se com isso um conjunto de possibilidades de análise que enfim podem permitir uma melhor compreensão das dinâmicas violentas de disputa pelo espaço urbano no Rio de Janeiro, jogando luz, inclusive, sobre o papel do Estado na conformação das mesmas.

Este é o propósito do grupo que se reuniu para confeccionar o presente mapa, que, cabe destacar, não se propõe a ser um retrato totalmente preciso da presença dos grupos armados no Rio de Janeiro, mas sim uma ferramenta em construção e aperfeiçoamento que possibilite estimar a dimensão do controle armado por diferentes grupos. Seguindo esse objetivo, os próximos passos do grupo são: (i) a elaboração de uma série histórica, tendo como início o ano de 2005; (ii) a atualização permanente do mapa em plataforma aberta para consulta pública; e, (iii) o desenvolvimento de uma análise mais granular a partir de favelas, conjuntos habitacionais e sub bairros.

[1] MISSE, Michel. (1999). Malandros Marginais e Vagabundo: A acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 416 p. Tese (doutorado). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro

[2] BARBOSA, Antonio Carlos Rafael. (1998), Um abraço para todos os amigos. Algumas considerações sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Niterói, EDUFF.

[3] SOUZA ALVES, José Cláudio (2003). Dos Barões ao extermínio: uma história da violência na baixada fluminense. Duque de Caxias: APPH, CLIO.

[4] Ver nota técnica da Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos, disponível em: http://estaticog1.globo.com/2020/10/26/textodaredesobremiliciaversaoampliadafinal.pdf?_ga=2.14377200.690116268.1604050293-1773541129.1603388616

* professor de sociologia e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense.

** Doutora e mestre em sociologia pelo IESP/UERJ. Atualmente é gestora de dados do Fogo Cruzado.

 

Este artigo é parte do Boletim Fonte Segura, no qual assinantes Folha têm 50% de desconto na assinatura. Conheça mais em https://fontesegura.org.br.

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Sob Witzel, os reféns da leniência e da sofreguidão https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/25/sob-witzel-os-refens-da-leniencia-e-da-sofreguidao/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/25/sob-witzel-os-refens-da-leniencia-e-da-sofreguidao/#respond Sun, 25 Aug 2019 14:24:49 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Witzel-EFE-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1040 Talvez por influência de uma das escolas mais em moda atualmente no Direito, o populismo penal, a gestão de Wilson Witzel (PSC) à frente do Governo do Rio de Janeiro adotou a tática de aliar a sofreguidão com a leniência na segurança pública. O episódio envolvendo a morte, por um atirador de elite da PMERJ, de um sequestrador que manteve 38 passageiros de ônibus reféns na ponte Rio-Niterói, no último dia 20, é um dos exemplos dessa tática e da distância que ela guarda com a realidade da área.

Em primeiro lugar, Witzel adotou a segurança pública como plataforma da sua sofreguidão por se fazer relevante no debate nacional e tenta disputar com Jair Bolsonaro a posição de líder antissistema, mesmo que à custa da verdade dos fatos. Isso porque, ao aproveitar o desenlace do caso do sequestrador na ponte Rio-Niterói para reforçar seu discurso de “abate” de criminosos armados com fuzis e armas de guerra, o governador do Rio comete, a meu ver, dois grandes atos-falhos.

Sem contar a comemoração efusiva e aética da morte dos sequestrador ao sair da helicóptero que o levou à cena do sequestro, que depois foi negada, Witzel apressou-se a prometer que promoverá o Sniper por ato de bravura, sem considerar que ali ela estava expondo o policial sem antes investigar os riscos de represália de pessoas ligadas ao sequestrador que eventualmente pudessem querer vingança e/ou sem se dar conta que seu gesto atropelou toda uma cadeia de comando, supervisão e controle.

Um Sniper só atira após receber comando autorizando-o a neutralizar o seu alvo. E, se há um disparo, ele é fruto de uma decisão tática de comando da própria polícia, nunca do governador. Não existe decisão política, pois ela deve ficar no plano tático-operacional. E, nesses casos, por ser uma decisão de comando, o policial já está salvaguardado pela legislação e conta com proteção jurídica para que não seja responsabilizado individualmente, ao contrário do discurso fácil e diversionista que se instalou no Brasil sobre excludente de ilicitude.

Além disso, as operações antiterrorismo no mundo todo nos ensinam que medidas extremas de neutralização exigem que existam “regras de engajamento” muito claras e, sobretudo, que os policiais da ponta tenham suas identidades preservadas durante a obrigatória investigação dos fatos. Se Witzel quiser, ele pode assumir o ônus jurídico de publicar a regra de engajamento que acha mais adequada e dar guarida à atividade policial. Mas, mais uma vez, a sofreguidão colocou os policiais em risco.

E desse primeiro ato falho deriva o segundo e mais grave deles. A declaração do governador após o episódio, em que ele afirma que pretende consultar o STF (Supremo Tribunal Federal) sobre em que possibilidades os policiais podem matar suspeitos de cometer um crime revela que o discurso de guerra do governador é minuciosamente calculado para, de um lado, conquistar corações e mentes da população em pânico e dos policiais.

Porém, por outro lado, se a “guerra” resultar em “danos colaterais” politicamente ou legalmente altos demais e cobranças chegarem, a atitude de questionar o Supremo mostra tão somente que as mãos serão lavadas e que a responsabilidade de comando desaparecerá para dar lugar à imputação de erros e culpas individuais dos policiais da ponta.

Na dúvida, a autoridade se blinda e toca a vida fazendo um discurso de ordem vago e leniente, enquanto policiais e população se digladiam em um vórtice interminável de violência, medo e ressentimento; enquanto ficamos reféns e no meio do fogo cruzado que sequestra a vida cotidiana de milhões de pessoas.

Por trás da “dúvida” legal disseminada por Witzel esconde-se o temor em tomar decisões que dariam segurança jurídica ao modelo de enfrentamento por eles defendido e, consequentemente, dariam a tão explorada politicamente proteção aos policiais. Mas, como ex-juiz, Wilson Witzel sabe que decisões têm consequências.

Por todos esses fatos, é fundamental olharmos para a segurança pública sem o ranço miliciano e contagiante da intolerância e convidarmos as polícias [e mesmo as Forças Armadas] a refletirem sobre a forma como estão sendo usadas eleitoralmente pelos governantes. Uma democracia forte não depende apenas do voto, mas de instituições de Estado que acreditem no Estado Democrático de Direito e o coloque todos os dias em prática sem o diversionismo ideológico que marca nossa Era.

 

 

 

 

 

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Medo das milícias supera medo dos traficantes em favelas e bairros nobres do Rio, diz Datafolha e FBSP https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/02/18/medo-das-milicias-supera-medo-dos-traficantes-em-favelas-e-bairros-nobres-do-rio-diz-datafolha-e-fbsp/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/02/18/medo-das-milicias-supera-medo-dos-traficantes-em-favelas-e-bairros-nobres-do-rio-diz-datafolha-e-fbsp/#respond Mon, 18 Feb 2019 16:28:11 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/info_mapa_desk2-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=624 Os milicianos, que ganharam as manchetes nacionais neste início de 2019 com o caso de Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro, são hoje mais temidos que os traficantes de facções criminosas dentro das comunidades e entre os moradores da zona sul da cidade do Rio de Janeiro.

Segundo o Datafolha, que ouviu 843 pessoas na capital fluminense entre os dias 23 e 25 de janeiro deste ano em pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgada nesta segunda (18), 29% dos entrevistados nas comunidades têm mais medo das milícias do que de traficantes e policiais – 25% têm mais medo do tráfico, 18% da polícia e 21% de todos na mesma proporção.

Na zona sul, onde se concentram os bairros mais ricos da cidade, esse índice é ainda maior: 38% temem mais as milícias contra 20% dos traficantes, 24% de todos, e 12% da polícia.

O fato é que as milícias não são um fenômeno recente e já há vários estudos e reportagens sobre como elas funcionam e, basicamente, vão ganhando legitimidade política; vão dominando cada vez mais territórios pela violência e pelo terror; e vão almejando o poder do Estado. Em época em que o debate sobre terrorismo volta à tona no Brasil, as milícias seriam as organizações que, no país, mais se assemelham a grupo terroristas à luz do direito internacional, pois almejam rivalizar e substituir o Estado de Direito.

Seja como for, uma pesquisa rápida na web conseguirá localizar boas análises de pesquisadores como Alba Zaluar e Ignácio Cano, ambos da UERJ, que aprofundam esta discussão. Afinal, este é um tema que merece toda a dedicação das autoridades comprometidas com a manutenção do Estado de Direito e com a integridade da nação e do seu território nacional.

E esse dado chama ainda mais a atenção pois aparece em uma pesquisa que foi elaborada para avaliar o impacto da intervenção federal na segurança pública, encerrada em 31 de dezembro do ano passado. Ou seja, surge em um momento em que o Rio de Janeiro poderia estar vivendo uma reversão positiva do cenário de medo e violência, após inúmeros esforços feitos ao longo dos quase 11 meses de ação das Forças Armadas na cidade.

Mas a intervenção federal fez com que os militares tenham trabalhado muito mas não tenham conseguido mudar o quadro de medo, risco e insegurança encontrado no Rio de Janeiro antes da ação das Forças Armadas, já que esteve, conforme relatório do Observatório da Intervenção, em muito baseada na premissa do enfrentamento e que, resultados de médio e longo prazo, ainda demorarão a chegar e estão em risco pelas posições ideológicas do novo governador.

Se forem levados em consideração os dados colhidos em toda a cidade, o medo dos traficantes de facções ainda supera o das milícias, com 34% e 27%, respectivamente. Outros 12% tem mais medo de policiais e 22% tem medo de todos na mesma proporção. Entre as pessoas que declaram ter mais medo dos traficantes, 39% são favoráveis à intervenção federal na cidade, 17% foram contra e 16%, indiferentes. No caso de quem teme as milícias, foram 27% a favor, 30% contra e 18% mostraram-se indiferentes.

O levantamento também questionou se os entrevistados foram de fato vítimas de algum tipo de violência nos últimos 12 meses. Os dados mostram um contraste entre o medo e a realidade dos cariocas. Nesse caso, 29% se viram no meio de fogo cruzado entre policiais e criminosos, em um indicativo de que há algo de muito equivocado nas políticas de segurança implementadas na cidade.

Diante de tais números, não é difícil compreender o quanto é ineficiente e, até mesmo, tosco, investir em receitas que não coordenem esforços e que não articulem, simultaneamente, prevenção da violência e repressão qualificada da criminalidade. Pacotes ou medidas que não levem isso em consideração e/ou apostem na lógica do confronto só agravarão o cenário de devastação moral do Rio de Janeiro – e, sendo sincero, do Brasil todo.

Aliás, não adianta nos indignarmos de cima dos nossos pedestais acadêmicos e sociais e falarmos que as favelas são lugares que amontoam gente e são abandonados pelo Estado. Isso é importante para fazer a sociedade refletir, mas soluções efetivas precisam ser construídas em conjunto e ouvindo as próprias comunidades. Do contrário, não seremos em nada diferentes dos higienistas do começo do século XX.

A pesquisa do Datafolha é a segunda do gênero realizada a pedido do FBSP para monitorar os resultados da intervenção federal no Rio de Janeiro, que terminou em dezembro do ano. Uma primeira foi realizada poucos dias depois do início da operação. Os dados de 2019 não diferem muito desta primeira. Ou seja, os levantamentos realizados em março do ano passado e em janeiro deste ano mostram um aspecto pouco debatido no que diz respeito à segurança pública que é a dimensão do medo. As pessoas continuam apavoradas e de nada adiantará políticas criminais e penitenciárias que foquem apenas na esfera penal e processual penal.

Se queremos superar as anacrônicas e ineficientes políticas criminais e penitenciárias brasileiras, temos que começar dando voz para as comunidades e para os policiais que estão na ponta da linha atendendo a população. A sapiência das leis reside não em silenciar as vozes da cidadania, mas em potencializá-las em um novo modelo de segurança pública e justiça criminal que seja capaz de verdadeiramente reduzir a violência e o medo; seja capaz de tornar o Brasil mais seguro sem atalhos ou soluções mágicas.

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