Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A proposta de reforma policial afeta o federalismo* https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/12/a-proposta-de-reforma-policial-afeta-o-federalismo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/12/a-proposta-de-reforma-policial-afeta-o-federalismo/#respond Tue, 12 Jan 2021 16:49:02 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/tanrg_abr_26042018_0438_1-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1629 Está em discussão no Congresso Nacional um substitutivo ao projeto de Lei 4363/2001, visando alterar a organização das Polícias Militares. A proposta altera fundamentalmente a estrutura do sistema federativo brasileiro, uma vez que reduz drasticamente o poder dos governadores para controlar as polícias militares estaduais. Como agravante, esta discussão ocorre num contexto em que o presidente Jair Bolsonaro, que têm significativo apoio entre policiais militares, trava disputas políticas com governadores em diversos estados do Brasil.

 

Arthur Trindade M. Costa**

Não é de hoje que se discute a necessidade de atualizar a legislação que organiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros, regidas ainda por um decreto-lei da ditadura de 1969. Nesses mais de 50 anos de vigência Decreto Lei 667/69, o país passou por significativas mudanças sociais e econômicas. No plano político, o regime militar deu lugar a um novo regime democrático conhecido como Nova República.

Por este motivo diversos projetos de lei têm sido apresentados para reorganizar as polícias. O atual projeto substitutivo, que foi elaborado com ajuda do Conselho Nacional dos Comandantes-Gerais das PMs e dos Corpos de Bombeiros, conta com apoio do governo federal e de algumas entidades de classe como a Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais.

O projeto diminui drasticamente os poderes de governadores sobre o comando das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros, uma vez que cria uma lista tríplice para a escolha de comandantes-gerais. O mandato dos comandantes seria praticamente fixo, pois os governadores teriam que justificar a exoneração do comandante-geral. Na prática, além de diminuir o poder dos governadores, o projeto acentuará ainda mais a politização dentro das corporações, já que haveria disputa pela eleição para a lista tríplice.

No que se refere às carreiras, o projeto apresenta mudanças significativas. O texto prevê a criação da patente de general, tal qual nas Forças Armadas. Seriam criadas três novas patentes: brigadeiro-general, major-general e tenente-general. . É importante lembrar que, devido a brechas na legislação, em muitos estados há mais coronéis na ativa do que a quantidade prevista no quadro de efetivo. Nesses estados não faltam generais, mas sobram coronéis.

O projeto permitirá que militares indiciados em inquéritos policiais ou réus em processos possam ser promovidos. Também está prevista a promoção por bravura desde que seja comprovado risco real da própria vida. Além disso, será criado o quadro de oficiais e praças temporários. Na prática, os policiais afastados por corrupção poderão ser promovidos. A ideia de promoção por bravura pode se tornar em um incentivo a violência policial.

O substitutivo traz várias outras mudanças. Dentre elas estão previstas a equiparação salarial dos policiais militares do Rio de Janeiro e dos ex-territórios com os militares do Distrito Federal; alterações na organização e competências da justiça militar e a ampliação das competências do Conselho Nacional de Comandantes Gerais de Polícia Militar. O texto é bastante detalhista e prevê a padronização das cores das viaturas e dos uniformes. Ou seja, os governadores sequer poderiam opinar sobre a cor do fardamento das polícias.

O projeto tem importantes desdobramentos econômicos e jurídicos. Mas é no campo político que a proposta terá maior impacto. Se o projeto substitutivo for aprovado na forma como está, haverá uma significativa mudança no sistema federativo brasileiro.

Um traço marcante do federalismo brasileiro é a alternância entre períodos de centralização e descentralização. Nos períodos autoritários – Estado Novo e Regime Militar – houve grande concentração de poderes políticos e de funções administrativas nos governos federais. Nos demais períodos, observou-se um federalismo altamente descentralizado, no qual os estados guardaram grande autonomia política.

As polícias, embora um pouco ausentes das discussões sobre a federação brasileira, sempre foram instituições centrais para pensar as autonomias estaduais ou a concentração de poderes no governo federal. Ao longo da história republicana brasileira, o sistema policial brasileiro acompanhou as oscilações da federação. Ora as polícias estavam submetidas ao poder central, ora significavam a garantia da liberdade das elites políticas estaduais.

Durante o Estado Novo (1937-1945), as polícias estaduais foram controladas pelo governo federal. A Polícia Civil do Distrito Federal, subordinada ao Ministro da Justiça, era encarregada de controlar as demais policiais civis estaduais. Cabia ao Ministro da Justiça aprovar as indicações de Diretores-Gerais. A Constituição de 1934 tornou as Polícias Militares “forças auxiliares” controladas pelo Exército que passou a nomear seus comandantes. Desta forma, todo aparato policial foi posto sob o controle direto de Getúlio Vargas.

Durante o regime militar (1964-1985), o aparato policial esteve sob controle do Exército. As Forças Públicas foram extintas e seus efetivos incorporados às polícias militares, que passaram a ser as únicas forças policiais destinadas ao patrulhamento ostensivo das cidades. Em 1967 foi criada a Inspetoria-Geral das Polícias Militares do Ministério do Exército (IGPM), destinada a supervisionar e controlar as Polícias Militares Estaduais. Cabia à IGPM aprovar a nomeação dos Comandantes Gerais.

Com o fim do regime militar e a transição política, esse quadro voltou a ser alterado. A Constituição de 1988 assegurou que as polícias civis e militares estão sob o controle dos governadores. Entretanto, ficou estabelecido que a sua organização e funcionamento são regulados por legislação federal. Na prática, os governadores recuperaram a prerrogativa de nomear os comandantes e chefes das polícias, mas lhes foi vedada a possibilidade de reestruturar individualmente o aparato policial.

Discutir a reorganização das polícias militares é fundamental. Mas é preciso ter muita cautela para não desequilibrar a federação brasileira. Afinal de contas, o sistema federativo é um dos principais mecanismos de freios e contrapesos da democracia. As aventuras autoritárias sempre começam pelo controle das Polícias e das Forças Armadas. Foi assim que aconteceu na Venezuela, onde a reforma policial de 2006 colocou as 24 polícias estaduais sob controle do Presidente da República, além de criar outras 99 polícias municipais, também sob controle do governo bolivariano.

 

*Artigo inédito da edição 71 do Fonte Segura, que vai ao ar nesta quarta-feira, dia 13/01.

 

**Arthur Trindade Maranhão Costa é Professor da UnB, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e editor do Fonte Segura.

 

Acompanhe as edições semanais integrais do Fonte Segura, a newsletter com dados e análises sobre segurança pública. Acessefontesegura.org.br

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Polícias Militares têm 32,5% de defasagem entre efetivos existentes e previstos; 10 poderiam reduzir postos de coronéis https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/10/policias-militares-tem-325-de-defasagem-entre-efetivos-existentes-e-previstos-10-poderiam-reduzir-postos-de-coroneis/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/10/policias-militares-tem-325-de-defasagem-entre-efetivos-existentes-e-previstos-10-poderiam-reduzir-postos-de-coroneis/#respond Sun, 10 Nov 2019 15:37:13 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/15343431065b7437c249881_1534343106_3x2_md-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1160 Mesmo com 32,5% de defasagem entre efetivos existentes e previstos nas PM do país, dados revelam que existem distorções na gestão das Polícias Militares do país que priorizam o topo da carreira das polícias em prejuízo ao trabalho na ponta da linha. Simulação do Boletim Fonte Segura (clique aqui), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sugere que ao menos 10 Unidades da Federação poderiam reduzir o número de postos de coronéis PM hoje preenchidos. Apenas a PM de São Paulo mostrou-se alinhada ao modelo de gestão que equilibra alocação entre oficiais e praças.

 

O Brasil está diante de uma série de desafios macroeconômicos, sociais e de propostas de reforma da sua máquina pública. Falar de reformas modernizantes é um dos mantras atuais, independente do sentido que se queira dar à modernização pretendida e/ou do espectro ideológico dos diferentes atores e instituições postas no debate público. Porém, na segurança pública, essa discussão é quase sempre interditada e carente de dados que ajudem a traçar cenários e avaliar custos e benefícios.

Prova disso é que quase toda a legislação e as normas que organizam o funcionamento das instituições de segurança pública no país são anteriores à Constituição de 1988, que até hoje não foi devidamente regulamentada. Como já extensamente explorado, a Lei que criou a figura do Inquérito Policial (com mudança em 2013 que foca nas prerrogativas dos delegados de polícia e não no fluxo de trabalho), que é a forma de traduzir um fato social em um procedimento formal de investigação e tratamento judicial, é de 1871; o Código Penal é de 1940 (reformado em sua parte geral em 1984); O Código de Processo Penal é de 1941; a Lei de Execução Penal é de 1984; e, por fim, a  norma que organiza as Polícias Militares, conhecida como R200, é de 1983 (uma nova versão está sendo negociada entre um grupo de Oficiais e o Governo Bolsonaro).

Esses são apenas alguns exemplos da dissonância entre teoria e prática que sobrecarregam a atividade policial e que tornam o cotidiano dessas corporações bastante complexo e dotado de uma baixa capacidade de governança, coordenação e supervisão. Não à toa, as propostas legislativas em curso (pacote dos ministros Sergio Moro e Alexandre de Moraes, entre outros) evitam tocar nos aspectos administrativos da área e optam por caminhar na chave das respostas penais e processuais penais. Pouco se fala de carreiras, mecanismos de supervisão e custo-efetividade de padrões de policiamento e/ou condições de trabalho para os cerca de 600 mil policiais brasileiros.

Em um quadro que tem que lidar com quase 160 milhões de atendimentos das polícias militares todos os anos, cada corporação, de acordo com a sua cultura organizacional e/ou condições fiscais e políticas da Unidade da Federação ao qual está subordinada, decide qual o melhor modelo de gestão e administração de modo bastante autônomo; elas são, em várias UFs, as responsáveis pela gestão de suas próprias folhas de pagamento, atribuição que mesmo as Polícias Civis não têm.

A autonomia das Polícias Militares em si não é ruim. O problema é que, da forma como a arquitetura institucional da segurança pública do Brasil está desenhada, essa autonomia pode ser excessiva se mecanismos de controle e supervisão não forem efetivos e independentes. A boa teoria de Estado demonstra que accountability (transparência e prestação de contas) é a melhor forma de se evitar o Leviatã, ainda mais no seu braço armado e militarizado.

Seguindo essa premissa, o Faces da Violência publica dados do Fonte Segura, que obteve junto à Inspetoria Geral das Polícias Militares do Exército Brasileiro (IGPM/EB), via Lei de Acesso à Informação, vários dados de 2018 que, a partir dessa edição especial, começa a analisar.

Se é importante destacar que os dados da IGPM/EB são os únicos atualizados (O Ministério da Justiça e Segurança Pública não divulga sua pesquisa “Perfil das Instituições de Segurança Pública” desde 2017), também é importante ressaltar que eles apresentam problemas que deveriam ser objeto de revisão. Os dados da IGPM/EB indicam, por exemplo, uma previsão legal de 15 coronéis PM (topo da carreira nas PM) no Rio Grande do Norte. Porém, uma pesquisa na legislação estadual mostra que a previsão correta é de 21 coronéis PM. Já no Ceará ocorre situação inversa, ou seja, há a previsão legal de 25 coronéis PM e a IGPM indica uma previsão de 27 cargos desta natureza.

Seja como for, considerando que se trata de uma fonte oficial, os números fornecidos foram analisados e um primeiro e exploratório estudo foi produzido. Nele, diante da multiplicidade de arranjos organizacionais, os dados brutos são apresentados e as análises não partiram de nenhum cenário ideal, mas da média da própria realidade nacional. Assim, os resultados revelaram distorções mas também demonstraram que nos falta estudos de impacto mais detalhados sobre qual modelo de polícia militarizada é mais aderente aos requisitos e funções fixadas pela Constituição.

Essa é uma discussão em aberto. As Polícias como um todo e as militares em particular detêm mais poder coercitivo do que as Forças Armadas, pois só as primeiras são autorizadas a agirem na manutenção da ordem de plano e sem convocação de um dos Poderes da República em território nacional. E é por isso que é tão importante olharmos para as suas opções político-institucionais e para a forma como estão organizadas.

De acordo com dados obtidos junto à Inspetoria Geral das Polícias Militares, órgão do Exército Brasileiro, as PM do país contavam, em 2018, com um efetivo total de 417.451 pessoas. Se considerarmos os efetivos fixados pelas diferentes leis estaduais, essa quantidade de policiais militares representa um déficit de 32,5% em relação aos 618.556 policiais previstos pelas Leis (figura 1)

O gráfico 1 revela também que, se desagregarmos o efetivo por carreiras e patentes, vamos verificar que o déficit de 32,5% é médio, pois entre os praças (cabos e soldados), o déficit é maior ainda, da ordem de 38,1%. Entre os oficiais, o déficit seria de 27,8% e, entre os suboficiais (subtenentes e sargentos), de 17,9%. Porém, esses valores são apenas parte da questão, exigindo que sejam considerados aspectos subnacionais e se discuta os critérios adotados para a fixação dos efetivos pelas referidas leis.

Segundo o gráfico 2, todavia, não bastassem essas distorções entre os postos intermediários de supervisão policiais, quando observamos os dados referentes ao posto de Coronel PM, topo da carreira de oficiais PM, iremos notar que várias Unidades da Federação estão privilegiando o topo da carreira, com casos em que a quantidade existente é superior até mesmo ao limite legal.

Esse não é um padrão para todos os postos de oficiais, mas bastante realçado entre os Coroneis PM. 14 Unidades da Federação possuem, segundo os dados da IGPM/EB, mais coroneis PM ativos do que o limite fixado pelas legislações locais. São elas: Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia e Sergipe.

Entretanto, proporcionalmente, 4 UF chamam bastante atenção. Rio de Janeiro tem o maior número absoluto de coronéis na ativa do Brasil (104) e 33% mais postos ocupados do que os previstos na legislação. Amazonas e Rio Grande do Norte têm 50% mais coronéis ativos do que o limite previsto (Os dados do RN fornecidos pela IGPM são diferentes daquele da legislação loca, que prevê 21 coronéis PM, ou seja, se este número fosse o adotado, o estado teria 42,7% mais postos ativos de coronéis do que o previsto e não 50%). Pará tem um percentual ainda maior de coronéis da ativa, com 75,7%. Mas é Rondônia que supera todas as UF e, proporcionalmente, tem 77,8% mais postos ativos do que previstos.

Várias são as explicações para este fenômeno, mas, objetivamente, o que eles representam na gestão das PM hoje no país não é consenso. Há distorções que priorizam o topo da hierarquia policial militar que precisariam ser mais bem avaliadas e novos modelos de gestão adotados.

Isso porque, nesse momento, não apenas o R200 está sendo rediscutido. O Congresso está discutindo a adoção do termo circunstanciado pelas PM, carreira única, ciclo completo e outras soluções para modernizar as polícias no país. Mas, se não considerarmos as estruturas vigentes, dificilmente avançaremos. Há uma concentração de poder real que deve ser refletida, até para a formulação de novos planos de cargos e salários e programas de valorização profissional.

Na prática, com o modelo vigente, mudanças que não foquem em mecanismos de coordenação e governança e em critérios objetivos de controle externo, monitoramento e avaliação só concentrarão poder nas mãos de um pequeno número de profissionais, com quase ou nenhuma contrapartida na qualidade do serviço prestado à população, já que as UF com as estruturas mais verticalizadas não necessariamente são as com menores índices de criminalidade.

Em outras palavras, reformas substantivas virão quando mecanismos de supervisão, controle e transparência estiverem valorizados e implementados, com o uso de novas tecnologias e com a participação da sociedade e de outros Órgãos de Estado.

Veja a íntegra do estudo em https://fontesegura.org.br/news/

 

 

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Projetos de reforma da previdência e combate ao crime ignoram carreiras policiais https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/03/30/projetos-de-reforma-da-previdencia-e-combate-ao-crime-ignoram-carreiras-policiais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/03/30/projetos-de-reforma-da-previdencia-e-combate-ao-crime-ignoram-carreiras-policiais/#respond Sat, 30 Mar 2019 16:34:39 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/03/Moro-e-Guedes-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=723 As propostas de reforma da Previdência e do sistema de proteção social dos militares, bem como o pacote do Ministro Sergio Moro, ignoram que a implementação das medidas sugeridas irá reforçar uma série de distorções nas carreiras policiais do país. Ao invés de garantir direitos e condições dignas de trabalho de uma categoria que acreditou no projeto político do Presidente Jair Bolsonaro, elas vão, se aprovadas do jeito que estão, reforçar os antagonismos que já em muito dificultam a gestão e a governança de um sistema caótico e sedento por efetivas transformações.

Para começar, vale visualizar o quadro comparativo elaborado pela Ordem dos Policiais do Brasil – OPB, entidade que reúne vários desses profissionais em torno de agendas de interesse das diferentes carreiras que integram as polícias brasileiras.

Sem entrar no mérito de qual das alternativas é mais justa para com os policiais e para a situação fiscal do país, o quadro mostra que, ao contrário dos militares, os policiais civis, federais e rodoviários federais perderão a integralidade e paridade e a pensão integral e vitalícia. Isso significa que as pensões a serem recebidas pelos familiares de policiais mortos em serviço serão sempre uma fração do salário do policial e, na maior parte, temporária. A depender do caso, cônjuge pode receber pensão com redução de até 80% do salário do policial e durante apenas 4 meses. Já militares mortos durante a folga ou em serviço terão direito que seus familiares recebam pensão integral e vitalícia.

Ainda segundo a OPB, policiais não possuem regras de transição na idade mínima, além de terem alíquotas que podem chegar a 22% do salário. Como exemplo, um policial com 50 anos de idade, que à época da promulgação da reforma ainda teria, de acordo com as regras atuais, um mês para se aposentar, terá que trabalhar 5 anos a mais, até atingir a nova idade mínima, diante da ausência da regra de transição. No outro extremo, militares com 50 anos de idade e que, à época da promulgação, faltaria um mês para se aposentar com as regras atuais terá que trabalhar 5 dias a mais.

Não bastassem essas distorções, o Governo Federal não dá a devida prioridade para a reversão do processo de sucateamento da Polícia Federal (não distinto do que ocorre nas Polícias Civis estaduais). Consulta ao Portal da Transparência, indica que a Polícia Federal conta, em 2019, com um efetivo fixado de 14.686 pessoas, sendo 13.161 cargos efetivos. Segundo a Associação Nacional de Delegados Federais, somente 10.875 desses cargos estão ocupados, projetando um déficit de 3.811 vagas. Além disso, há hoje 1.115 policiais aprovados em concursos aguardando convocação, número insuficiente para substituir os 1.257 federais que já podem se aposentar a qualquer momento.

Sem pensarmos em novos fluxos de processamento de casos/crimes, que permitam a priorização formal e legal para investigação de crimes violentos e/ou graves, não há como superarmos os gargalos da área. Nos projetos, nada foi falado sobre nova governança, em que tecnologia, informação, transparência, participação, financiamento, controle e valorização profissional sejam vetores de mudanças. Focou-se apenas nos aspectos penais, como se eles fossem a única coisa que importa.

Ademais, nota-se que não há coordenação entre os projetos de reforma da previdência e o pacote do ministro Sergio Moro. São dois universos que surgem como separados, mas que, para serem convertidos em políticas públicas mais eficientes e efetivas, precisariam dialogar.

Se assim fosse feito, veríamos que os ajustes processuais do pacote de medidas legislativas do Ministério da Justiça e Segurança Pública poderiam ser mais focalizados e voltados à governança do sistema, otimizando e valorizando os recursos humanos existentes. Afinal, ainda segundo o Portal da Transparência, 32,1% da execução financeira da Polícia Federal, em 2019, é com previdência social, mostrando os limites de políticas exclusivamente pautadas em pessoal.

De igual modo, em várias policiais, temos uma quantidade enorme de carreiras (a polícia Civil de São Paulo, por exemplo, tem 14 carreiras). Se o Governo Bolsonaro foi sensível à demanda das FFAA e propôs uma reestruturação da carreira militar, por que não é possível propor o mesmo para os policiais, que parecem que só são lembrados na hora das eleições e dos discursos fáceis e ideológicos de guerra?

Temos espaço para carreira única em cada corporação? Ou temos espaço para ao menos unificar as carreiras de agentes, investigadores e escrivães de polícia, por exemplo? Medidas administrativas precisam ser postas em prática em associação às questões penais e processuais penais.

O Congresso daria uma enorme contribuição se, aproveitando o momento de consenso em torno da urgência das medidas para a previdência e para a segurança pública, unisse todas estas frentes em uma proposta aglutinativa de reforma do modelo de segurança pública e justiça criminal do Brasil. Não podemos mais ficar fazendo remendos pontuais ou prometendo remédios milagrosos.

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A Constituição de 1988 dá direitos demais aos criminosos? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/29/direitos-demais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/29/direitos-demais/#respond Mon, 30 Jul 2018 01:29:51 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/1714360-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=164 Muito tem se falado sobre a segurança pública ser um dos temas mais centrais do debate público de 2018. Várias tem sido as promessas para o problema do medo e da violência e, mesmo assim, as taxas de criminalidade crescem a cada ano em ritmo assustador.

E, entre estas promessas, têm se destacado aquelas que defendem que os “bandidos” têm direitos demais e que a Constituição de 1988 precisa ser ajustada para que as polícias possam “impor” a ordem e “botar medo nos criminosos” sem que sejam responsabilizadas ou criticadas. Por estas propostas, a agenda de direitos civis, sociais e humanos propugnada nas cláusulas pétreas da nossa Carta Magna é um impeditivo da eficiência policial.

O problema é que aqueles que fazem este tipo de discurso esquecem, propositalmente, que a legislação infraconstitucional, ou seja, as leis que regulam o funcionamento das polícias e do sistema de justiça criminal é anterior à Constituição Federal de 1988 e que ela forma uma verdadeira “colcha de retalhos” a prejudicar a efetividade das ações.

Para se ter uma ideia, a lei que organiza as Polícias Militares no Brasil é de 1983. Já a Lei que rege os Inquéritos das Polícias Civis e Federal é de 1871 (sim, a Lei data da época do Império). E, de igual modo, as Leis que regulam a atividade de polícia judiciária e o fluxo do sistema de justiça criminal são dos anos de 1940 (Código Penal) e 1941 (Código de Processo Penal). A Lei de Execução Penais, que regulamenta o cumprimento de penas, é de 1984.

Ou seja, a Constituição de 1988 mudou pouco a forma de atuação das nossas instituições policiais e do sistema de justiça criminal e não pode ser responsabilizada pelas ineficiências e inequidades de um modelo muito mais antigo. Ela pode ser criticada por não inovar e por herdar os vícios e falhas do passado. Mas, a bem da verdade, o Brasil tem pecado na segurança pública faz muitas décadas.

Vários são os capítulos e artigos da Constituição que precisam ser regulamentados e várias são as leis que precisariam ser modernizadas à luz do texto constitucional. Mas, ao contrário desta importante missão, os nossos congressistas optam por fomentar a legislação do pânico e atuar por espasmos, sem planejamento e/ou um projeto claro de nação.

Brandem palavras de ordem e exploram a crença da população, mas não avançam em enfrentar os reais causadores do medo e da violência. E não é por falta de avisos, evidências e/ou dados. Preferem agravar penas e jogar para a torcida amedrontada pelo cenário de criminalidade que nos assola.

E, neste movimento, só de modo residual são feitos questionamentos acerca do modelo que organiza as polícias brasileiras e que, ao invés de dotá-las de eficiência no enfrentamento ao crime organizado e à violência, as enfraquece e as torna reféns de estruturas burocráticas, ineficientes e arcaicas.

As crises de 2018, que são várias e não estão circunscritas ao Rio de Janeiro, são repetições de situações agudas vividas em quase todos os estados brasileiros nos últimos 15, 20 anos e demonstram o quão distante estamos dos padrões de civilidade de países desenvolvidos. Segurança tem se resumido à administração constante de crises, intercaladas por momentos de calmaria. Não à toa chegamos à exaustão de um modelo cruel e gerador de ainda mais conflitos e tensões.

Sergio Lima/Folhapress

Mas até onde conseguiremos postergar esforços para a reversão estrutural dessa situação? Até quando a população irá resistir às tentações do tempo social da direita que vê com bons olhos a reversão de conquistas de direitos e espaços de cidadania?

O fato é que o Estado, em seus vários poderes e instâncias, tem atuado a partir de um oneroso sistema de segurança pública, que fica recorrentemente paralisado por disputas de competência, fragmentação de políticas e jogos corporativos, mas que, paradoxalmente, demanda investimentos crescentes para se manter. Demanda sairmos da mesmice e dos jogos corporativos.

E, infelizmente, no meio dessas disputas, ficam a população, sem força política suficiente para influenciar novas agendas, e os mais de 600 mil policiais brasileiros, que na ausência de regras claras de valorização profissional, só são lembrados como heróis quando são mortos ou como garotos-propaganda de candidatos que se dizem defensores da categoria mas que nunca, enquanto exerceram seus mandatos, fizeram muito mais do que reclamar.

Na brecha e no cotidiano das periferias das regiões metropolitanas, o medo e a insegurança acabam fortalecendo o crime e pautando a relação entre polícia e comunidade; entre Estado e Sociedade. O crime organiza cresce no país pela incapacidade de se coordenar esforços por parte das várias instituições que compõem o sistema de segurança e justiça criminal.

Não é possível pedir civilidade e dignidade ao crime (que precisa ser investigado e punido), mas é, sim, possível exigir racionalidade e eficiência democrática dos gestores públicos responsáveis por fazer frente à violência, ao medo e à criminalidade.

No lugar da cultura de ódio que tanto marca manifestações públicas sobre o tema, temos que defender a garantia de direitos como o que diferencia o Estado da barbárie. Uma polícia forte não é sinônimo de violência, de obtenção de provas por meio de coações e/ou grampos indiscriminados.

O Brasil que queremos precisa de uma polícia forte e valorizada e que seja conhecida da comunidade. Polícias distantes dificultam não só a prevenção da violência mas também a investigação de crimes. Sabendo a quem recorrer, fica muito mais fácil confiar na polícia e ajuda-la a cumprir sua missão.

A polícia não pode trabalhar sozinha e criar vínculos públicos com a comunidade tem sido uma das estratégias mais bem sucedidas no mundo. Ações de reorientação das práticas policiais em direção à participação da comunidade na formulação e execução de ações (conselhos, bases de polícia comunitária, entre outros) mostraram-se muito mais eficazes na reconquista da legitimidade e de espaços.

A história recente das políticas de segurança nos ensina que, entre as ações que mais tiveram êxito em reverter as taxas de violência, o envolvimento com a comunidade tem sido mais eficiente se associado a práticas integradas de gestão, pelas quais há uma irredutível aliança entre técnica e política.

E nessa aliança, as melhores práticas concentraram suas energias no tripé aproximação com a população, uso intensivo de informações e aperfeiçoamento da inteligência.

Por uso intensivo de informações compreendemos a adoção de técnicas de produção de indicadores e análise de dados para planejamento, monitoramento e avaliação de operações policiais. Elas foram fundamentais para otimizar recursos humanos e materiais no dia-a-dia das polícias. Não se trata apenas de tecnologia, mas de mudança nas opacas práticas das instituições da área.

Já no aperfeiçoamento da inteligência, queremos destacar os esforços de coordenação dos fluxos de informações para a investigação criminal com vistas a reduzir ruídos e produzir provas mais robustas e que permitam punir quem comente um delito.

No entanto, por melhores que sejam essas práticas de gestão, sem uma mudança substantiva na estrutura normativa das polícias, o quadro de insegurança hoje existente tenderá a ganhar contornos dramáticos. O SUSP sinaliza para este caminho de coordenação mas ele precisa ser posto em prática. O Congresso que for eleito este ano terá a responsabilidade de fazer o que não foi feito nos últimos 30 anos.

Uma das lições de países que conseguiram reformar suas polícias, como Irlanda e África do Sul, é que quando a atividade policial deixa de ser autônoma e passa a responder à lógica das políticas públicas muito se ganha.

Para além de soluções puramente técnicas, percebe-se que os problemas da área podem ser mitigados quando a política está efetivamente comprometida na construção de uma nova postura do Estado em relação à sociedade. Não precisamos de salvadores da pátria e/ou demolidores; precisamos perseverar para implementar as premissas da Constituição Federal de 1988.

As críticas à agenda de direitos civis, humanos e sociais são, portanto, críticas ideológicas e desprovidas de evidências e de base de realidade. Vamos colocar em prática o que foi previsto? Talvez nos surpreendamos e consigamos resultados muito mais robustos do que receitar violência como antídoto para a própria violência.

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versão atualizada e revista de artigo publicado em 2012, por mim e por Samira Bueno, intitulado “É hora de reformar as polícias

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Nazareth Cerqueira e o desafio da reforma da segurança pública no Brasil – Parte 3 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/17/nazareth-cerqueira-e-o-desafio-da-reforma-da-seguranca-publica-no-brasil-parte-3/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/17/nazareth-cerqueira-e-o-desafio-da-reforma-da-seguranca-publica-no-brasil-parte-3/#respond Tue, 17 Jul 2018 12:52:50 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/constituicao-de-1988-e-promulgada-1380925787522_615x470-150x150.jpg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=136 Trechos da terceira e última parte do capítulo de Elizabeth Leeds no Livro “Polícia e democracia: 30 anos de estranhamentos e esperanças”, editado pela Alameda Editorial e organizado por mim e por Samira Bueno.

Prestação de contas

Se, de um lado, a resistência às ideias de Cerqueira com relação ao policiamento comunitário e aos direitos humanos no Rio de Janeiro subsistia de forma latente, por outro, a reação ao esforço de criação de uma estrutura para a prestação de contas da atuação policial, bem como de um código de conduta para orientar o trabalho dos policiais, foi bastante explícita. Ela pode ter gerado, em última instância, consequências indesejadas, como os episódios trágicos de violência policial dos anos 1990. Mantendo a coerência com a sua filosofia que propunha a abertura de um canal de comunicação entre a polícia e a sociedade, o coronel Cerqueira estabeleceu o primeiro código de conduta policial, baseado nos documentos de direitos humanos das Nações Unidas, criando ainda a primeira corregedoria para investigação dos casos de má conduta profissional dentro da própria PM.

A ideia passada ao público era de que mesmo um suspeito de cometer crimes merecia ser tratado como ser humano em um Estado de direito, em oposição clara à noção popular de que “bandido bom é bandido morto”, ainda bastante presente entre alguns setores da polícia atual. À época, a percepção do contingente policial era a de que a corregedoria representava um cerceamento às suas atividades.

Cerqueira foi implacável na punição dos membros da PM culpados de violação de direitos humanos. Por outro lado, também acreditava que a polícia – especialmente os praças, oriundos em sua maioria das classes de menor renda – era vitimizada por sua própria ideologia. Em um artigo apresentado no 7o Simpósio Internacional de Vitimologia, realizado no Rio de Janeiro em 1991, o coronel relata o caso de um jovem soldado que fora testemunha de um “auto de resistência”, em 1985. Sob custódia da polícia, um jovem acabou morrendo, após queixa de tratamento violento. Embora o espancamento fatal tenha sido conduzido por policiais de alta patente, a história oficial responsabilizava os praças pela sua morte – na verdade estes apenas haviam testemunhado o ato letal.

Disseram-lhes que “[…] precisavam aprender que o trabalho do policial era duro, e foram intimidados a permanecer calados a respeito da morte do rapaz”. Um dos praças acabou suicidando-se dentro do batalhão, onde foi encontrada uma carta em que alegava sua inocência e expressava revolta e tristeza pela morte do jovem. Invocando um de seus heróis intelectuais, o jurista argentino Eugenio Zaffaroni, Cerqueira denominou o episódio como um caso de vitimização indireta ou “policização”, no qual jovens recrutas, a maioria originária das classes mais baixas, são “[…] modelados ou condicionados pela sua cultura organizacional, que desenvolve crenças que justifica práticas violentas e abusivas, característica de nossas instituições policiais”. Cerqueira tinha consciência das condições que levam a polícia a adotar práticas violentas e reforçar as crenças de uma instituição militarizada.

Em 1993, durante o segundo mandato de Cerqueira como comandante da polícia militar, o Rio de Janeiro vivenciou duas tragédias causadas por má conduta policial: as chacinas da Candelária e de Vigário Geral. Levadas a cabo por uma facção corrupta da PM, chamada de Cavalos Corredores (um dos sete grupos de extermínio identificados pela corporação), tirou a vida de 29 cidadãos inocentes. Na Candelária o grupo de extermínio matou oito crianças em situação de rua que dormiam em frente à catedral, uma das principais da cidade, e em Vigário Geral assassinou 21 moradores inocentes.

Na visão dos policiais seguidores de Cerqueira, os dois episódios foram, acima de tudo, um boicote violento do grupo de extermínio às ideias do coronel e à sua tentativa de criar uma estrutura de prestação de contas dentro da PM. No caso específico de Vigário Geral, uma vingança pelo assassinato de policiais militares corruptos, cometido por traficantes após uma negociação malsucedida. Quando Cerqueira convocou psicólogos para entrevistar os policiais envolvidos na chacina da Candelária, o que em si já era inovador, os policiais, presos durante o processo alegaram que acreditavam estar fazendo um favor à sociedade ao matar bandidos que simplesmente voltariam a cometer crimes. O coronel agiu com celeridade no caso dos massacres. Muito antes da instauração de processo judicial contra os policiais envolvidos, expulsou-os da PM, enquanto se aguardava o lento desenrolar do processo nos tribunais.

Ao aposentar-se, após o cumprimento de seu segundo mandato como comandante, Cerqueira tornou-se vice-presidente do Instituto Carioca de Criminologia, um think tank fundado pela socióloga Vera Malaguti e pelo advogado criminalista Nilo Batista, vice-governador durante a gestão de Brizola, que assumiu o governo do Estado por um breve período, enquanto o político gaúcho concorria à presidência da República. Durante a sua passagem pelo instituto o coronel publicou artigos sobre segurança pública, editou uma série de livros sobre os novos paradigmas de policiamento, denominada “Polícia Amanhã”, utilizada amplamente pelas forças policiais brasileiras, viajando intensamente por todo o país para participar de seminários e oficinas sobre policiamento comunitário e orientação relacionada ao universo das drogas, entre outras práticas policiais inovadoras.

Enquanto o impacto do coronel Cerqueira nas políticas de segurança pública do Rio de Janeiro tenha se limitado a alguns segmentos da PM, fora do Estado sua influência foi significativa. Seja por meio de seus artigos, pela tradução e divulgação de literatura internacional importante sobre o tema, seja por sua participação em seminários e oficinas em todo o Brasil, a noção de policiamento comunitário e os novos paradigmas da formação policial permanecerão indissoluvelmente associados ao nome de Cerqueira. Atualmente não existe nenhum curso de formação policial em todo o país que não inclua pelo menos um de seus trabalhos ou um artigo estrangeiro por ele traduzido. Sua influência é sentida especialmente no Paraná, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Espírito Santo, Pernambuco e Paraíba, entre outros.

O coronel foi assassinado em 1999, ao sair do edifício que abrigava o Instituto Carioca de Criminologia, com um tiro disparado por um policial de baixo escalão, que por sua vez morto imediatamente pelos seguranças de um edifício vizinho. A explicação oficial declarou o assassino portador de problemas mentais. Mas há alusões, feitas por diversos policiais e autoridades de governos anteriores que entrevistei, ao fato de que Cerqueira teria sido assassinado porque não se mostrava disposto a perdoar os atos de corrupção e má conduta policial, especialmente aqueles levados a cabo pelos grupos de extermínio.

O quanto a liderança, a filosofia e a coragem de um indivíduo podem influenciar políticas tensas como as de segurança pública depende do momento político e de uma série de fatores externos, sobre os quais ele terá provavelmente pouco controle. Demonizado pela batalha ideológica que se desenrolou dentro da polícia militar nos anos 1980 e 1990, Cerqueira foi homenageado e enaltecido pela mesma instituição em 2010, quando a PM comemorava seu ducentésimo aniversário e os partidários do coronel haviam galgado posições de responsabilidade na hierarquia policial. […]

A questão inevitável para aqueles que hoje desenham políticas de segurança pública é: qual o significado e extensão potencial da liderança de um indivíduo para promover mudanças de longo prazo de modo geral e no Rio de Janeiro, especificamente? Deve-se esperar o tempo necessário para que novas gerações assumam o poder e, mais uma vez, se sensibilizem com as questões da segurança cidadã? Ou será que os atores da sociedade civil devem fazer pressão sobre as autoridades governamentais? Seriam as variáveis históricas e políticas específicas do Rio de Janeiro que tornaram essa mudança tão passageira?

Ficou claro a partir de um exame dos diversos esforços de implantação de políticas moldadas nas crenças de Cerqueira nos últimos trinta anos – incluindo, por exemplo, os novos paradigmas de formação policial e o policiamento comunitário – que a memória institucional não desaparece por completo, apesar das dificuldades; e aquilo que tiver valor em um determinado momento histórico acabará reaparecendo quando o próximo contexto político permitir.

Apesar das mudanças que o coronel Cerqueira tentou implantar na PM do Rio de Janeiro, reformando-a para convertê-la em um órgão a serviço da sociedade, afastando-a da ideologia da militarização, ele nunca tentou mudar a estrutura básica, hierarquicamente militarizada, da instituição, devido às limitações políticas e constitucionais da época. A pergunta que permanece em aberto é se esforços como os de Cerqueira, em prol de uma reforma ampla, poderiam ser adotados de forma permanente sem qualquer mudança estrutural […].

***

SUMÁRIO “Polícia e democracia: 30 anos de estranhamentos e esperanças

Apresentação
Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno

Agentes de mudança em instituições resistentes: Nazareth Cerqueira e o desafio da reforma da segurança pública no Brasil
Elizabeth Leeds

Por uma polícia digna: entrevista com José Oswaldo Pereira Vieira
Por Renato Sérgio de Lima

A virtude está no meio: entrevista com Paulo Celso Pinheiro Sette Câmara
Por Jésus Trindade Barreto Júnior

Decifrando o enigma da segurança pública: entrevista com Coronel Carlos Alberto de Camargo
Por Samira Bueno e David Marques

Políticas de Segurança Pública: entrevista com José Mariano Beltrame
Por Luciane Patrício

A Brigada Militar no pós-democracia
Luiz Antônio Brenner Guimarães

Os policiais civis de linha de frente na nova ordem democrática
Ludmila Mendonça Lopes Ribeiro, David Marques, Samira Bueno e Sara Prado

O pós-redemocratização (1985-2015) na visão de praças da polícia militar: avanços, rupturas e permanências políticas na segurança pública
Alan Fernandes

Diálogos sobre mulheres policiais
Barbara Musumeci Mourão

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Nazareth Cerqueira e o desafio da reforma da segurança pública no Brasil – Parte 1 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/15/nazareth-cerqueira-e-o-desafio-da-reforma-da-seguranca-publica-no-brasil-parte-1/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/15/nazareth-cerqueira-e-o-desafio-da-reforma-da-seguranca-publica-no-brasil-parte-1/#respond Sun, 15 Jul 2018 15:13:25 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/1722767-150x150.jpeg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=124 Na semana em que o SUSP, Sistema Único de Segurança Pública, entrou em vigor, várias foram as iniciativas anunciadas para modernizar a área: novos sistemas tecnológicos para integração de banco de dados policiais; pedido de informações do MPF sobre a implementação do SUSP e a inclusão de mecanismos de fortalecimento dos sistemas de controle de armas e explosivos; bem como disputas pelas verbas das loterias entre as pastas da segurança, cultura e esporte.

Todas são temas importantes e que mostram uma sociedade em movimento. Elas estão dentro das regras do jogo democrático e das disputas por prioridades governamentais. O que mais chamou atenção, contudo, foi que, em paralelo à agenda de modernização das políticas públicas, vários retrocessos têm sido defendidos abertamente por representantes do atraso e, pior, estão ganhando ouvidos qualificados, independente desse modelo fazer vítimas de todos os lados.

Um destes retrocessos é o reforço, à direita sobretudo mas também à esquerda, do clima policiais x sociedade civil, como se fossem dois lados opostos e antagônicos. Isso para não falar do quão difícil está falar de transparência e prestação de contas pelas instituições de segurança pública e justiça criminal.

Mas, se olharmos em perspectiva, veremos que esse antagonismo responde à lógica política e não é um fato consolidado. Muitos policiais batalharam para substituir desconfianças mútuas e estranhamentos em uma agenda moderna e cidadã de reformas institucionais ao longo dos últimos 30 anos.

E, neste sentido, recupero capítulo do Livro “Polícia e Democracia: 30 anos de estranhamentos e esperanças”, publicado pela Alameda Editorial. O texto foi escrito por Elizabeth Leeds sobre a trajetória do Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, cujo trabalho encontra paralelos com o de Robert Peel, que reformou a polícia inglesa no século XIX.

Cerqueira foi comandante da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro de 1983 a 1987 e de 1991 a 1994. Foi um dos primeiros comandantes das polícias militares brasileiras oriundos da própria polícia, e não das Forças Armadas. O Coronel Nazareth Cerqueira foi assassinado em 1999, em circunstâncias até hoje pouco esclarecidas.

Nesta e nas próximas postagens, vou reproduzir trechos do capítulo de Elizabeth Leeds, pois, no texto, muitas das questões que hoje parecem novidade ou inevitáveis, já estavam postas nos anos 1980 e 1990. De forma engajada e polêmica, Elizabeth Leeds nos provoca a uma reflexão sobre a força de discursos que louvam a violência como política pública e mostram que as resistências ao Estado de Direito são muito maiores do que os que acreditaram na redemocratização poderiam imaginar.

Serve de alerta para pensarmos como construir pontes de diálogo efetivas e para refletirmos os desafios cidadania em um país assolado pelo medo e pela violência – e, até as eleições, de polarizações extremadas.

Agentes de mudança em instituições resistentes: Nazareth Cerqueira e o desafio da reforma da segurança pública no Brasil – Parte 1

Elizabeth Leeds

Desde 1985, o avanço da democratização e o crescimento de uma sociedade civil robusta e organizada equiparam o Brasil com ferramentas que lhe permitiu fazer pressão em prol de uma agenda de justiça social. No entanto, o setor que menos progrediu nesse período foi justamente o da justiça criminal e, mais especificamente, o da polícia. A Constituição Democrática de 1988 mudou, pelo menos no papel, praticamente todo o governo, mas deixou intactas, do ponto de vista formal, as instituições policiais.

Com exceção da mudança nominal e simbólica do papel da polícia, não mais a garantidora da “segurança nacional” e sim da “segurança pública” – o que significou que evoluiu da função de proteger o Estado à de proteção de cada um dos cidadãos –, o novo ordenamento constitucional não alterou as instituições policiais, que mantiveram o modelo implantado em 1964, no início do regime militar. Além disso, a Constituição de 1988 impôs restrições às oportunidades formais de envolvimento da sociedade civil na reforma da segurança pública.

Ao longo da década de 1980 e início dos anos 1990, o avanço da democratização e o fortalecimento de uma sociedade civil organizada deram ao Brasil mecanismos para exercer pressão em prol de uma agenda de justiça social. Porém, tanto as organizações da sociedade civil quanto os acadêmicos relutavam, de modo geral, a envolver-se em questões de segurança pública e reforma policial, pois ambos os grupos haviam sido alvo do regime militar e vítima da repressão policial.

Ao longo desse período as organizações de direitos humanos assumiram o papel mais do que necessário de denunciar casos de violação de direitos humanos por parte da polícia. Mas a questão da mudança institucional, de maior amplitude e complexidade, e que exigia justamente interação com os elementos progressistas da polícia, foi um processo bem mais complicado. Até bem recentemente, a colaboração com os policiais progressistas, influenciando a mudança institucional, era tida como uma verdadeira traição aos princípios e prioridades daqueles que lutavam pelos direitos humanos.

De fato, a nova geração de organizações de direitos humanos, disposta a formar parcerias com a polícia e batalhar pela mudança, foi considerada “vendida”, demasiado próxima do governo, rotulada de “chapa branca”. Ou seja: as resistências eram de duas naturezas: em primeiro lugar, havia uma estrutura militarizada com rígida ideologia e práticas refratárias ao pensamento estratégico de prevenção do crime e da violência e, segundo, havia a dificuldade em envolver os atores da sociedade civil e os acadêmicos em parcerias com a polícia. E foram esses os dois focos de atuação do coronel Cerqueira nos seus dois mandatos e mesmo nos anos seguintes.

Foi nos primeiros anos da redemocratização, em 1983, que o governador Leonel Brizola, recém-eleito, nomeou pela primeira vez o coronel Cerqueira comandante da PM do Rio de Janeiro. As polícias militar e civil refletem, de modo geral, a longa história e cultura específicas de seus Estados, uma variável com implicações consideráveis quando se trata de estimular a mudança institucional.

Apesar de seus dois séculos de existência, a polícia que Cerqueira passou a comandar era fruto da mudança do papel político do Rio de Janeiro no cenário nacional e era, na verdade, um amálgama de quatro forças policiais diferentes: a Polícia Militar do Distrito Federal, da época em que o Rio era a capital do país, até 1960; a Polícia Militar do Estado da Guanabara, criada em 1960, quando a administração federal mudou-se para Brasília; a Polícia Militar do antigo estado do Rio de Janeiro; e a Polícia Militar do atual estado do Rio de Janeiro, após a fusão dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975.

A unificação das forças estaduais de ambos significou um realinhamento total, organizacional, da burocracia e da administração. Mais complicada ainda foi a fusão de duas culturas, com história, mentalidade, tradição e papéis diversos. Na qualidade de polícia da antiga capital do país, o Distrito Federal, a PM da Guanabara herdara o legado histórico do “gendarme”, que Portugal havia copiado da França e trazido ao Brasil em 1809. Era tida como uma força policial de elite, próxima à sede do governo nacional, com melhores salários e formação. Já a Polícia Militar do antigo Estado do Rio de Janeiro era considerada mais provinciana, com menores salários e pior treinamento. O impacto foi significativo em termos de rixas profissionais e dificuldades de ajuste entre as diversas culturas institucionais.

No que tange a questões de promoções, por exemplo, muitos dos que, em condições normais, poderiam contar com uma ascensão certeira após trabalharem o número de anos exigidos, descobriram que não havia vagas suficientes na nova organização. Em 1983, Cerqueira enfrentava os conflitos internos decorrentes desse amálgama institucional, que teve lugar em 1975. Esse conflito e essa diferença de mentalidade e identidade existem ainda hoje.

A escolha de Cerqueira para o posto de comandante foi atípica, do ponto de vista tradicional. Negro, de uma família humilde do bairro de Olaria, no subúrbio industrial capital fluminense, ele graduou-se na Escola de Formação de Oficiais como o primeiro da turma. No entanto, sofreu discriminação racial ao longo de sua carreira. Em entrevista realizada em 1988, no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em comemoração ao centésimo aniversário da abolição da escravatura, Cerqueira falou dos insultos e menosprezo que sofreu, desde a escola primária, proferidos pelos próprios professores, até a educação superior, na Academia de Polícia, incluindo os oficiais superiores.

Apesar da percepção generalizada de que a PM era um canal de mobilidade social para os negros, havia um racismo velado sempre que algum negro entrava na competição, junto com os brancos, por um cargo de alto escalão. Na verdade, o fato de um negro conquistar o cargo de comandante era considerado acintoso pela maioria dos membros brancos da corporação. Mesmo depois de assumir o cargo, Cerqueira teve de enfrentar casos de insubordinação com insinuações racistas.

Quando foi escolhido por Brizola, opositor contumaz do regime militar e autodenominado socialista, a elite branca, a mídia e os militares reagiram com surpresa e mesmo desprezo, enquanto os membros do então nascente movimento negro brasileiro, bem como os residentes das favelas cariocas, majoritariamente negros e pardos, alvo frequente da violência crônica policial, receberam-no com alegria.

Embora Cerqueira nunca tenha se identificado publicamente com o movimento negro, sua experiência como jovem e, posteriormente, como profissional negro influenciou sua filosofia e práticas de modo significativo. Sempre um intelectual, com graduação em filosofia e psicologia, acreditava na luta contra o racismo pela via teórica, combatendo os conceitos que gerassem atitudes racistas. Em lugar do confronto direto, dizia:

[…] defendo outro tipo de luta, que é o do enfrentamento das concepções teóricas que estariam por trás das crenças que impulsionam o sistema de justiça criminal para punir os negros, os mais pobres e todas as categorias marginalizadas.

O coronel Celso Guimarães, que trabalhava próximo a Cerqueira, colocando em prática aquilo que este concebia intelectualmente, lembrou-se de um incidente de 1982 que teve impacto visceral na sua determinação em mudar práticas policiais racistas. Em uma blitz na Favela da Cachoeirinha a polícia colocou residentes negros em uma fila, com cordas em volta do pescoço, evocando a época da escravidão. Cerqueira imaginou o impacto dessas imagens na cabeça das crianças que vissem seus pais naquela situação e jurou que nunca mais permitiria que a cena se repetisse.

Nos seus dois mandatos, o coronel chamou atenção para a questão do racismo, encomendando estudos sobre a violência contra a comunidade negra e realizando seminários para divulgar os seus resultados, entre os quais o Encontro com a Comunidade Negra. Reformulou políticas de modo a eliminar o conceito do “inimigo interno” dirigido, de modo geral, aos residentes das favelas. Essas novas visões foram incorporadas à formação tanto de oficiais quanto dos policiais menos graduados, os praças. No seu segundo mandato, organizou seminários sobre a cultura negra para discutir a influência do funk e a expressão cultural promovida por esse movimento no ambiente das favelas.

[na próxima postagem, a parte do texto de Elizabeth Leeds que fala de resistências e policiamento comunitário]

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Rotas da insegurança e da violência no Brasil – Parte 2 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/02/rotas-da-inseguranca-e-da-violencia-no-brasil-parte-2/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/07/02/rotas-da-inseguranca-e-da-violencia-no-brasil-parte-2/#respond Mon, 02 Jul 2018 18:35:17 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/Troche-2-150x150.png http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=102 A primeira parte deste texto, publicada em 01/07, pode ser resumida no fato de que a forma que implementamos políticas públicas de segurança no país é ainda regida por pressupostos ideológicos e distantes do que seria um ciclo virtuoso de políticas públicas orientadas a resolver problemas e reduzir a violência.

E, até como a soma de todos os nossos erros históricos, temos um quadro pelo qual o país ostenta uma das maiores populações prisionais do planeta, sem que os crimes sejam reduzidos.
Por esta opção, relega-se a um segundo plano de prioridades, paradoxalmente, os presos por crimes violentos como homicídios e estupros, que seriam aqueles que deveriam merecer as penas mais severas – a conta nunca fecha, pois, com um volume maior de crimes envolvendo tráfico, mais presos teremos por este tipo penal e não teremos espaço nas prisões para priorizar, proporcionalmente, a prisão de homicidas e estupradores. E, enquanto crescem os presos por tráfico, os dados disponíveis mostram que, no mesmo período, o número de presos por tais crimes tem se mantido estável e responde, em média, por 11% dos presos brasileiros.

Não é à toa que se diz que prendemos muito mas prendemos muito mal. Com isso, a centralidade que o PCC e seus congêneres ocupam hoje é resultado direto da ação, ou, se preferirmos, da omissão do Estado em lidar com a questão prisional e da segurança pública como um problema de política pública essencial para o modelo democrático de desenvolvimento do país. Fizemos opções que se mostram equivocadas em várias partes do mundo, mas não temos coragem política de enfrentar a derrota da guerra contra às drogas e propor novos caminhos. E, em meio à esta leniência, abandonamos os presos à própria sorte e ao recrutamento pelas facções e agora nos chocamos quando vemos eclodir episódios de extrema crueldade e violência.

O fato é que, historicamente, a forma como a segurança pública é operada no Brasil teve seus contornos fundamentais fortalecidos pela matriz ideológica nacional desenvolvimentista e consolidou-se, a partir dos anos 50 e 60, sobretudo pela atuação da Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1949. Foi a partir da doutrina engendrada pela ESG que foi sendo amalgamada a síntese entre a seletividade penal (tratamento diferenciado para segmentos diferentes da sociedade pelo qual alguns serão submetidos ao máximo rigor da lei e, outros, terão acesso à integralidade das garantias individuais previstas na Constituição), a construção de inimigos internos e a ideia de um modelo de desenvolvimento que aceita as profundas inequidades no acesso à justiça.

O modelo segurança nacional e desenvolvimento pautou-se pelos valores forjados na guerra fria, de dois polos opostos em disputa, e não nasceu pronto, foi fruto de desdobramentos institucionais e de articulações entre militares e civis; de razões econômicas e razões políticas; e da combinação de razões políticas e de cultura jurídica que atribuem papel ambíguo às instituições policiais.

O principal viés doutrinário dessa ideologia é fazer crer que em torno do desenvolvimento econômico circulam conflitos e disputas pela hegemonia política da nação tanto por concorrentes externos como por interesses de opositores internos, exigindo o controle e o monitoramento da sociedade. A sociedade precisa ser tutelada e a ordem, entendida enquanto ausência de conflitos e questionamentos ao status quo, deve ser preservada acima de qualquer coisa. Os discursos que sequestram a agenda da ordem estão, habilmente, explorando esse fato e vociferando ódios, preconceitos e propostas que, se transformadas em voto, colidirão frontalmente com a ordem constitucional. Estamos vendo o prelúdio de tensões ainda maiores entre as instituições e o consequente aumento dos riscos de rupturas democráticas.

Se, na sua origem, o inimigo eram os “comunistas”, agora o crime organizado parece operar como freio às mudanças na arquitetura institucional do sistema de justiça criminal e de segurança que foram sendo formuladas e, mais residualmente, implementadas desde a Constituinte e que tiveram seu ápice simbólico no lançamento do primeiro Plano Nacional de Segurança Pública, pelo Governo FHC, quando pela primeira vez a União chama para si a agenda da segurança pública de forma mais explícita.

Não é de se estranhar, portanto, que setores ultraconservadores da máquina estatal aproveitem a crise atual nos presídios e na segurança pública para associarem a ação do PCC a roteiros que o ligam à lógica da defesa nacional, independentemente de uma avaliação mais rigorosa e técnica das condições que permitiram que as facções criminais crescessem e se proliferassem no Brasil. Um novo velho inimigo está sendo moldado para que as práticas institucionais continuem influenciadas pela lógica da defesa nacional e subordinação da sociedade ao Estado.

Os interesses postos são diversos e este é um movimento que não se circunscreve ao Brasil e responde ao tempo social pautado pelo medo e pela insegurança. Falar de segurança é falar de identificar e neutralizar o inimigo, seja ele interno ou externo. E, para tanto, recomendações que hipermilitarizam a área ganham terreno e conquistam mentalidades. É isso que faz o Governo Temer com a Intervenção Militar na Segurança Pública do Rio de Janeiro, por exemplo.

Porém, não obstante reconhecer o aumento do poder e da influência do PCC no cenário do crime e da violência do país, vale explicitar que este é apenas um dos eixos em disputa. Pesquisas recentes sobre fronteiras mostram um quadro generalizado de violências e ilegalismos que não se resume à ação das facções criminosas responsáveis pelo tráfico, no qual o comércio de armas e drogas se associa à corrupção policial; ao comércio de madeira; ao contrabando de produtos como cigarros; aos homicídios e mortes por encomenda; à violência contra mulheres, crianças e população indígena; ao tráfico de pessoas e de órgãos.

(continua..)

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O Caveirão Voador e os Zumbis à Procura de Corpos Frescos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/21/o-caveirao-voador-e-os-zumbis-a-procura-de-corpos-frescos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/21/o-caveirao-voador-e-os-zumbis-a-procura-de-corpos-frescos/#respond Thu, 21 Jun 2018 21:49:10 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/15293656155b28446f8ea4c_1529365615_3x2_xl-150x150.jpg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=65 Em mais uma sequência de confrontos e tiroteios que estão sendo banalizados por décadas de descaso com a população das comunidades cariocas, Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos de idade, morreu nesta quarta-feira (20) após ser baleado a caminho da escola durante operação policial no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro.

Nesta operação, segundo várias imagens que estão circulando pela Internet, a Polícia Civil do Rio de Janeiro mobilizou o uso de um helicóptero blindado apelidado de “Caveirão Voador”. A aeronave foi usada como o que tecnicamente é chamado “plataforma de tiro”. Policiais Civis atiravam em direção ao chão em sobrevoos rasantes, indicando uma operação de neutralização e combate. É necessário uma apuração isenta para saber se a morte de Marcos Vinícius foi provocada por algum disparo originado da aeronave.

Para além da indignação que uma operação desta deveria provocar em todos nós, o episódio chama atenção para alguns procedimentos que valem ser trazidos à luz do debate nacional. Esta é uma questão nacional e precisa ser tratada enquanto tal. Em primeiro lugar, mesmo em um contexto de intervenção federal liderada por um General de Exército, a operação foi conduzida pela Polícia Civil, que, em tese, não teria prerrogativa constitucional de operações táticas como as levadas a cabo na Maré.

A lógica do confronto naturaliza a confusão de competências quando feita em territórios pobres, mas, à luz do direito, a Polícia Civil deve uma explicação sobre qual a justificativa legal para o uso desta aeronave. Que investigação esta ou estava sendo conduzida que exigiu o apoio de equipes táticas especializadas? Aliás, para que a Polícia Civil precisa de uma aeronave blindada? Quais as explicações técnicas para esta aquisição e qual o custo envolvido em sua manutenção e operação?

A ideia de confronto está tão banalizada que poucos notaram que não foi a Polícia Militar que interveio na situação. Ou seja, que a discussão sobre o fim das polícias militares como antídoto à violência institucional tem desconsiderado que o padrão de enfrentamento não é exclusivo a estas e está enraizado nas concepções de ordem e comandos de política criminal do país.

Mas, concedendo o benefício da dúvida, fui verificar como é regulada a ação de aeronaves policiais no Brasil. Para tanto, consultei o Coronel José Vicente da Silva, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública e um dos mais renomados especialistas em segurança pública do país, com mais de 50 anos de profissão.

Segundo o que me explicou o Coronel José Vicente, as polícias podem operar aeronaves em confrontos e se utilizarem delas como plataforma de tiro atendidas duas condições, uma técnica e outra legal. A primeira destas condições é que, para poderem atirar com garantia de que estão mirando corretamente, o helicóptero precisa estar estabilizado no ar, quase sem movimentos.

Diferentemente de uma operação de guerra, um helicóptero policial precisa ter condições operacionais para atuar com o máximo de precisão. Já a segunda condição para o uso de um helicóptero policial como plataforma de tiro é legal. O uso de armamento letal só pode ser empregado se, em terra, existirem riscos à integridade de civis e/ou policiais (legítima defesa do policial ou de outrem).

Ambas as alternativas, pelas imagens disponíveis, não estavam totalmente claras ou presentes, indicando a urgência do Interventor Federal, General Braga Neto, instaurar procedimento investigatório, sem prejuízo de competência concorrente do mesmo ser feito pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, que tem a obrigação de exercer o controle externo da atividade policial.

Ao contrário do que tem sido a regra do Interventor Federal, que tem evitado e/ou, mesmo, vetado a imprensa, a morte de Marcos Vinicius deveria provocar um choque de transparência na segurança pública carioca. É necessário dar a máxima transparência para os protocolos adotados (se é que eles existem), as filmagens disponíveis e a cadeia de comando da operação.

Afinal, em uma população apavorada, com mais de 30% declarando que ficou no meio de um tiroteio entre policiais e bandidos, o debate sobre o absurdo em torno desta situação está longe de ser ideológico ou político. É técnico e civilizatório mesmo. Não devemos dar ouvidos a determinados políticos que atuam como zumbis à procura dos corpos frescos para se manterem eleitoralmente viáveis. Segurança Pública se faz com evidências, planejamento e inteligência.

Não há justificativa para um padrão tão obsoleto e letal. Mas, para manter o mínimo de confiança, ou a Polícia Civil Carioca mostra que não errou grosseiramente ou, somados aos mais de 100 dias sem sabermos quem matou e quem mandou matar Marielle Franco e Anderson Gomes, o episódio será o atestado que faltava para a completa falência das polícias e da incapacidade de se fazer políticas públicas inteligentes de segurança no Rio de Janeiro.

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