Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os problemas dos protocolos de abordagem policial https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/os-problemas-dos-protocolos-de-abordagem-policial/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/os-problemas-dos-protocolos-de-abordagem-policial/#respond Wed, 09 Jun 2021 13:54:43 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/policia_militar_sp-min-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1787 O detalhe da cena rotineira é o que a torna “natural” ou uma cena “estranha” no Brasil: ser um jovem negro ou um jovem branco.

Gilvan Gomes da Silva*

No dia 28 de maio uma abordagem policial ganhou destaque nas redes sociais e nas manchetes das grandes mídias televisivas e digitais. Em um parque na Cidade Ocidental, em Goiás, um ciclista jovem Youtuber praticava manobras e filmava. Enquanto executava a performance, uma viatura de polícia parou próximo ao local da filmagem e começou uma sequência evolutiva de falas estressantes que pode ser resumida entre ordens para a realização da abordagem, revista e questionamentos do porquê do procedimento. 

A situação evoluiu para falas mais tensas e arma apontada para o ciclista e terminou com o jovem ciclista algemado, mesmo tendo cedido às ordens sem esboçar reação, a não ser o seu questionamento. O detalhe da cena rotineira é o que a torna “natural” ou uma cena “estranha” no Brasil: ser um jovem negro ou um jovem branco. Nas imagens divulgadas, o policial fala energicamente que a ordem é legal e que este é o procedimento. Assim, comecemos pela afirmação da legalidade e dos protocolos policiais quanto à abordagem e revista pessoal. A busca pessoal, a conhecida revista, segundo o Artigo 244 do CPP, é legal quando em flagrante ou com fundada suspeita, isso é, com indícios de crimes. A questão central torna-se o motivo da abordagem com sequência de revista com arma apontada. 

Várias pesquisas realizadas no Brasil já debateram a seletividade durante a abordagem e revistas pessoais. Após o edificante e inspirador trabalho de Silvia Ramos ao analisar as abordagens da PMERJ, outros trabalhos acadêmicos encontraram resultados semelhantes em diferentes regiões do país e em diferentes momentos. A pesquisa realizada em 2009, conduzida pelo Núcleo de estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília, já apontava, entre outros fatores, para questões raciais e territoriais, assim como disciplina do corpo, das ações e das situações eram critérios para a seleção utilizados por policiais da PMDF. 

Em 2014 e em 2019, em várias pesquisas coordenadas pela professora Jacqueline Sinhoretto envolvendo acadêmicos da UFF, UFSCar, da Fundação João Pinheiro em Minas Gerais e da UnB, apontavam para a racialização das relações sociais também se expressa no campo da segurança pública, e, por consequência, nas abordagens policiais. As pesquisas de 2019 constataram que em Minas Gerais, por exemplo, pessoas negras têm 3 vezes mais chance de serem presas que pessoas brancas e 4 vezes mais chance de serem vítima da letalidade policial. Essa taxa de letalidade varia de 3 a 7 vezes em São Paulo. Os dados gerais da pesquisa apontam que há uma visão do potencial criminoso sendo um jovem, negro e pobre.

Todavia, estas diversas situações observadas e analisadas nas pesquisas, em diversas partes do Brasil nas últimas décadas demonstram que o campo de Segurança Pública segue a mesma lógica provocada pela desigualdade estrutural na sociedade brasileiras, pois como já destacava Arthur Trindade Costa, a análise do comportamento policial não pode ser dissociada da análise das estruturas políticas, econômicas, e sociais da sociedade. Entretanto, além das características desiguais desses poderes estruturais, há uma construção jurídica cultural racializada que ontologicamente constitui a formação do campo de controle formal no Brasil e, por consequência, das polícias. Um breve recorte histórico demonstra como que há interligação na lógica seletiva segregadora dos agentes de segurança pública era apoiada em normas que se dissiparam nas práticas cotidianas, saindo do papel e ficando nos atos. 

Como destaca Maíra Zapater sobre a herança legal e sobre as cicatrizes jurídicas, a criminalização de comportamentos de forma seletiva está presente em vários artigos do Código Criminal do Império de 1890, no Decreto nº 847, que regulamentava ações de cunho moral, continuou no Decreto-Lei nº 3.688/41 que traz em seu artigo 59 que “entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita [gripo meu]” seria passível de prisão. O decreto de dois anos depois da proibição legal da escravidão regulamentava ações de pessoas que não ocupam mais o trabalho nas lavouras e nas áreas urbanas, pois havia uma política de embranquecimento do país em curso com estímulo à imigração de europeus do final do Século XIX e início do Século XX. A mendicância também foi tipificada como ato ilegal, revogado somente em 2009. Da mesma forma que jogar Capoeira e Condutas de embriaguez foram tipificadas como ato passíveis de prisão. Flanar pela cidade, divertir-se ou reunir-se para rodas de samba também eram proibidos, pois seriam configurados como prova de vadiagem, como lembra Lira Neto no livro História do Samba. É este diapasão das condições de subsistência e de moralidade que orientava a permissão de quais grupos poderiam participar das atividades da cidade. Os atos tipificados como ilegais eram atos nitidamente das pessoas negras, sejam pelas suas características sócio culturais, sejam pelas condições econômicas, políticas e jurídicas.

Assim, tanto as ações de controle pelos agentes do Estado de 1890 quanto a de 28 de maio de 2021, assim como diversas outras analisadas nas duas décadas do século 21 tem um fio condutor que orienta e que outrora estavam legalmente fundamentadas e que hoje, mesmo na ilegalidade, extrapola os Protocolos Operacionais Padrões porque as estruturas sociais são tão semelhantes quanto a do Brasil Império, com as mesmas permissões e proibições aos mesmos grupos de terem direito ou não à cidade, à cidadania e, em muitos casos, à vida.

 

* 2º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB).

 

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Na mesma edição, leia também “O Enfrentamento ao Tráfico de Armas como Política Pública” e “A reincidência criminal“.

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O reconhecimento fotográfico em delegacias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/05/o-reconhecimento-fotografico-em-delegacias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/05/o-reconhecimento-fotografico-em-delegacias/#respond Fri, 05 Mar 2021 13:51:11 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/presos-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1688 Apesar da ausência de previsão legal para utilização como prova, recurso é muito empregado. Debate sobre possíveis erros judiciais precisa ser ampliado

Mauricio Garcia Saporito*

A pedido do Programa Fantástico, da TV Globo, o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege), com o indispensável apoio da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), realizou um estudo sobre a utilização de reconhecimentos fotográficos em sede policial. O objetivo era apontar possíveis falhas na utilização daquele meio de prova enquanto formador da culpa em processos criminais.

Durante os meses de novembro e dezembro de 2020, defensoras públicas e defensores públicos estaduais com atuação criminal encaminharam à diretoria de pesquisas da DPRJ casos que envolvessem necessariamente três requisitos: o reconhecimento pessoal em sede policial ter sido feito por fotografia; o reconhecimento não ter sido confirmado em juízo; a sentença ter sido de absolvição.

Cabe ressaltar que o recorte da pesquisa tinha que envolver absolvição, logo, em 100% dos processos analisados houve o reconhecimento e acusação formal de uma pessoa declarada inocente por sentença judicial.

Foram relacionados na pesquisa 28 processos com 32 acusados, já que em quatro processos haviam dois acusados. A lista dos processos abrangeu dez estados brasileiros, sendo 13 casos do Rio de Janeiro, três da Bahia; dois casos cada para os estados de Goiás, Minas Gerais, Santa Catarina e São Paulo; e um caso por estado para Mato Grosso, Paraíba, Rondônia e Tocantins. A distribuição dos processos aconteceu entre 2012 e 2020.

Quanto aos crimes imputados, a pesquisa encontrou dois homicídios consumados, um homicídio tentado e um furto. Os demais foram acusações pelo crime de roubo.

Digno de ser muito ressaltado foi a cor da pele das pessoas reconhecidas por fotografia e posteriormente absolvidas. Apenas 17% dos submetidos aos reconhecimentos fotográficos eram brancos. Todos os demais 83% eram de cor negra que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), inclui pretos e pardos.

Outro dado alarmante se refere ao uso da prisão preventiva. Em 19 casos a prisão cautelar foi decretada. O tempo de segregação variou muito, de 24 a 851 dias, o que significa que um dos acusados ficou preso por aproximadamente dois anos e três meses com base apenas em um reconhecimento pessoal por fotografia realizado durante a investigação policial.

Durante a análise, ganharam destaque três episódios que demonstraram como o reconhecimento, pessoal ou fotográfico, mesmo com todos os riscos inerentes às provas dependentes da memória, acaba sendo considerado suficiente para se levar alguém a julgamento.

No primeiro caso destacado, a vítima reconheceu uma pessoa que estava presa na data do crime. A autoridade policial responsável pela investigação sequer diligenciou junto ao sistema informativo da Secretaria de Administração Penitenciária para descobrir que aquela pessoa indiciada não poderia ter participado de nenhum fato criminoso fora do ambiente carcerário.

No segundo destaque,  a vítima teria reconhecido a fotografia de uma pessoa monitorada eletronicamente. Novamente o delegado de polícia poderia ter pedido o rastreamento da tornozeleira para comprovar a hipótese acusatória, o que não aconteceu.

Por fim, o estudo destacou o reconhecimento de uma pessoa que estava no exterior na data do crime apurado. Tudo comprovado nos autos. Não é crível que o delegado de polícia responsável pela investigação não pudesse ter acesso a esses dados, que poderiam ter sido facilmente entregues pela Polícia Federal.

A verdade é que, analisando todos os processos relacionados, podemos concluir, sem nenhum medo de errar, que apesar da ausência de previsão legal para a realização de reconhecimentos fotográficos como prova, ele ainda é muito empregado e, ressalte-se, sem nenhum critério. Sequer sabemos como essas fotos foram tiradas e como são apresentadas.

Outro ponto importantíssimo é que, realizado o reconhecimento, as autoridades policiais desistem de outras diligências necessárias à elucidação do crime, entendendo que materialidade e autoria estão devidamente comprovados.

A intenção do relatório não foi e nem é atribuir culpa a esse ou àquele ator do sistema de justiça penal, mas sim que seja ampliado o debate sobre a possibilidade de erro judicial e da limitação do que hoje é considerado prova no processo penal. Que estudos com tamanha profundidade sejam o ponto de partida para preenchermos a lacuna deixada pelo livre convencimento motivado, permitindo seu melhor controle em todas as fases da persecução penal.

 

*Defensor Público do Estado da Bahia, coordenador da Comissão Criminal Permanente do Condege (Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais).

 

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Na edição desta semana, leia também “Fundo Nacional de Segurança Pública tem gasto recorde em 2020” e “Violência doméstica e Covid: desafios para o acesso das mulheres à Justiça”.

 

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O controle da segurança privada no Brasil é fictício https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/27/o-controle-da-seguranca-privada-no-brasil-e-ficticio/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/27/o-controle-da-seguranca-privada-no-brasil-e-ficticio/#respond Fri, 27 Nov 2020 18:27:30 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/Rodrigo-Verpa-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1598 A Polícia Federal, a quem compete regular a atividade, não tem condições e nem pessoal suficiente para desempenhar esse papel. Também não pode multar ou criminalizar serviços irregulares, pois não há previsão legal para isso no país.

 

Cleber da Silva Lopes*

Em setembro de 2019, logo após a abjeta tortura de um jovem negro dentro de um supermercado de São Paulo, publiquei na seção Múltiplas Vozes do Boletim Fonte Segura um artigo sobre os abusos cometidos por profissionais de segurança privada. Na ocasião, atribui os problemas existentes a déficits de controle sobre o setor. Pouco mais de um ano depois, mais um caso de abuso infame contra um cidadão negro ocorre em outro supermercado, desta vez uma loja do Carrefour de Porto Alegre. Como nada mudou em relação ao controle da atividade de 2019 para cá, retomo o argumento central desenvolvido no artigo anterior.

Os mecanismos mais capazes de gerar serviços de segurança privada controlados estão localizados no interior das organizações de segurança, que estão em condições de saber e acompanhar o que seus funcionários fazem. Para que esse controle ocorra, essas organizações precisam estruturar sistemas internos comprometidos com a obtenção de serviços que sejam, ao mesmo tempo, eficientes para os clientes e respeitosos dos direitos humanos dos cidadãos.

Estudo que realizei na Região Metropolitana de Paulo no começo da década de 2010 mostrou que os clientes que tomam serviços no mercado são os principais atores capazes de afetar a maneira como empresas de segurança controlam seus funcionários. Quando os clientes demandam serviços de qualidade e respeitosos dos direitos humanos, o policiamento privado tende a ser executado com profissionalismo. Isso ocorre porque os clientes podem escolher os provedores de segurança que mais lhe agradam, substituindo aqueles cujos funcionários incorreram em desvios.

Mas os controles de mercado são falhos. Problemas ocorrem quando os tomadores de serviços querem reduzir custos, contratando empresas que não controlam adequadamente os seus funcionários; ou quando demandam ou toleram serviços de segurança privada agressivos ou pouco comprometidos com os direitos humanos. Nesses contextos, a tendência é que haja uma empresa de segurança disposta a entregar o que o contratante deseja.

As falhas nos controles de mercado descritas acima têm acometido o setor supermercadista brasileiro de maneira dramática. Para entender essas falhas, é preciso contextualizar a natureza das demandas por segurança privada nesse setor. Segundo a 20ª Avaliação de Perdas no Varejo Brasileiro de Supermercados (ABRAS), os supermercados brasileiros amargaram perdas da ordem de R$ 6,9 bilhões em 2019, o equivalente a 1,82% do faturamento bruto das empresas. O furto externo praticado por consumidores foi a segunda causa de perdas (17% do total), atrás apenas das perdas decorrentes de quebra operacional (39%). É nesse contexto que os serviços de segurança privada são demandados, sempre com o objetivo primário de aumentar o lucro líquido dos negócios. Diante dessas demandas, o compromisso com os direitos humanos, ao que parece, tem efetivamente ficado em segundo plano em muitos supermercados.

Para que o controle da segurança privada ocorra, é fundamental que tenhamos um ambiente regulatório no qual a sociedade e o Estado sejam capazes de aumentar os custos dos desvios de conduta tanto para prestadores quanto para tomadores de serviços, induzindo o controle do cliente e o autocontrole por parte das empresas. Esse ambiente regulatório também precisa ser igualmente capaz de gerar normas e incentivos para melhorar a qualidade dos serviços de segurança privada.

O vigor das reações da mídia e dos movimentos sociais ao assassinato de Beto Freitas são exemplos de como a sociedade pode controlar o setor, impondo danos reputacionais e econômicos a prestadores e tomadores de serviços. Mas é preciso não superestimar a importância desses mecanismos, que tendem a ser reativos e funcionar apenas diante de abusos dramáticos, persistentes ou que recaem sobre pessoas ou grupos em condições de realizar pressão.

O controle estatal via judiciário é outra forma de aumentar os custos dos desvios de conduta dentro do setor. Além da responsabilidade na esfera criminal que recairá sobre os autores do assassinato de Beto Freitas, a empresa de segurança e/ou o Carrefour provavelmente também serão responsabilizados na esfera civil, onde serão constrangidos a indenizar a família da vítima. Entretanto, estamos novamente aqui diante de um controle reativo, cujo sucesso depende de um processo judicial com desfecho favorável.

O controle estatal via regulação é o que está em melhor condição de induzir o controle no mercado de segurança privada. Entretanto, esse controle não tem funcionado a contento no Brasil. A Polícia Federal, que fiscaliza o setor, dispõe de poucos recursos para responsabilizar empresas cujos funcionários tenham cometidos abusos e para inibir aquelas que atuam clandestinamente, muitas das quais de propriedade de policiais ou parentes. Ela não pode multar ou criminalizar tomadores e prestadores de serviços de segurança irregular, pois não há previsão legal para isso. Mesmo que pudesse, não haveria recursos humanos para fiscalizar o amplo mercado clandestino. Para os casos de abusos cometidos por seguranças regulares, as regras existentes também não preveem nenhum tipo de sanção às empresas e/ou contratantes.

Para prevenir os abusos cometidos no setor de segurança privada, precisamos repensar a regulação estatal da segurança privada. Essa regulação precisa ser capaz de induzir os controles de mercado (autocontrole das empresas e controle dos clientes), corrigindo as falhas existentes. Exigir treinamentos mais extensos sobre o uso proporcional da força, códigos de conduta e o uso de armas menos letais em postos de serviço nos quais os seguranças estão em contato com os cidadãos são tópicos que precisam ser discutidos, assim como meios de controlar o mercado clandestino de segurança e a participação de policiais nele. Com a palavra o Senado, onde um novo marco regulatório para a segurança privada encontra-se atualmente em tramitação.

*Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS).

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Louisville e a fábula da democracia racial na segurança pública no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/24/louisville-e-a-fabula-da-democracia-racial-na-seguranca-publica-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/24/louisville-e-a-fabula-da-democracia-racial-na-seguranca-publica-no-brasil/#respond Thu, 24 Sep 2020 22:13:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/15913941535edabf6990fbe_1591394153_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1521 Mortes invisíveis, que não geram comoção, sendo dignas de luto apenas para suas famílias e seus entes queridos

Por Dennis Pacheco*

Protestos antirracistas tomaram as ruas de Louisville, Estados Unidos, com gritos de “No justice, no peace” (sem justiça, sem paz) em reação à decisão judicial de não dar prosseguimento à acusação dos policiais que mataram Breonna Taylor. A jovem enfermeira foi morta com 6 tiros dentro do próprio apartamento.

As manifestações seguem a trilha de inúmeras outras em oposição à violência das polícias norte-americanas e seu padrão de seletividade racial, em que 1.140 pessoas foram mortas em intervenções policiais em 2018, fato que as aproxima bastante do contexto brasileiro, onde a letalidade policial é ainda maior, com 6.220 vítimas no mesmo ano.

Dados do programa de abordagem a suspeitos do Departamento de Polícia de Nova Iorque (Stop, Question and Frisk), e da Police Contact Survey indicam que homens jovens, latinos e negros tendem a ser mais parados pelas polícias do que os brancos. O quadro se agrava na medida que se conclui que, conforme aumenta o grau de força utilizado pelas polícias, maior a presença de negros nas estatísticas.

Seguindo a mesma tendência, negros somos 56% da população brasileira, mas 75% dos mortos em intervenções policiais. Desproporção que invalida o argumento vazio de que somos mais mortos por sermos maioria, revelando a intensidade da seletividade na atividade policial.

Embora os modelos de arquitetura organizacional das Polícias dos dois países sejam muito diferentes, os alvos de suas ações são os mesmos: jovens negros e pobres, estigmatizados como criminosos e cujas mortes não configuram homicídio em termos jurídicos. Mortes invisíveis, que não geram comoção, sendo dignas de luto apenas para suas famílias e seus entes queridos. Não é à toa que o lema do movimento que centraliza as manifestações antirracistas nos EUA seja Vidas Negras Importam (Black Lives Matter).

Parte do que faz com que vidas negras não importem é o fato de, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil permaneça o desafio de responsabilizar policiais pelo crime de homicídio. Lá, mesmo casos que ganham notoriedade, acumulam provas e pressão pública em favor da condenação de policiais que fizeram uso excessivo da força, como no caso que levou à morte de George Floyd, asfixiado por um policial que ajoelhou em seu pescoço, raramente resultam em punição por homicídio. A exemplo disso, o único dos três policiais envolvidos na morte de Breonna Taylor que foi acusado, corre o risco de ser condenado não por tê-la assassinado, mas por ter colocado os vizinhos em risco ao atirar a esmo.

No Brasil, o excludente de ilicitude deveria ser usado somente para casos cuja investigação não concluiu o emprego de uso excessivo e ilegítimo da força e que concluíram pela legitimidade da ação policial. O que acontece, no entanto, é que a palavra dos policiais envolvidos é a única variável ouvida, seja na lavratura do boletim de ocorrência, seja no inquérito policial, seja na decisão do Ministério Público e do Judiciário. A narrativa da “fundada suspeita” como motivadora da abordagem desproporcional de negros, e da resistência à ação policial como motivadora do uso da força letal, também majoritariamente contra negros, não encontra contrapartidas na maior parte das vezes.

A ausência de controle da atividade policial evidencia que vidas negras também não importam por aqui. Se importassem, suas mortes seriam dignas de luto coletivo, de investigação, de punição do uso excessivo da força. Mortes decorrentes de intervenções policiais seriam esclarecidas de fato mediante investigações, e parte delas seria declarada homicídio, gerando denúncia por parte do Ministério Público e chegando até o tribunal do júri. Para se ter uma ideia da magnitude do problema, pesquisa da ouvidoria das polícias de São Paulo concluiu que 74% das mortes causadas pelas forças policiais do Estado possuíam indícios de uso excessivo da força.

Afirmar que vidas negras importam significa reconhecer o problema da vulnerabilidade racial à violência, diagnosticá-lo, conhecer seu endereço, saber quais batalhões e policiais possuem maior letalidade, quais bairros e segmentos populacionais estão mais vulneráveis, e agir com inteligência ao invés do achismo que rege a segurança pública há anos. É preciso retirar o cabresto da fábula da democracia racial na gestão da segurança pública no Brasil e encarar a realidade do racismo. Nossas vidas negras importam.

*Cientista em humanidades pela UFABC e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Após a morte de George Floyd, movimento “Defund the Police” quer o fim das polícias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/06/10/apos-a-morte-de-george-floyd-movimento-defund-the-police-quer-o-fim-das-policias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/06/10/apos-a-morte-de-george-floyd-movimento-defund-the-police-quer-o-fim-das-policias/#respond Wed, 10 Jun 2020 13:44:03 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/manifestações.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1445 Diante das acusações de racismo e violência, cresce nos EUA o movimento de cortar os orçamentos das polícias e transferir os recursos economizados para outras políticas sociais. Para entendê-l0, o Faces da Violência republica artigo de Jacqueline Sinhoretto, da UFSCar, originalmente elaborado para o boletim de análise Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Não só o edifício da unidade policial responsável pela morte de George Floyd foi destruído pelo fogo. O equivalente à câmara municipal de Minneapolis, nos EUA, acaba de aprovar o desmantelamento da polícia. A organização policial dessa cidade acabou.

O orçamento destinado à polícia será, em parte, aplicado no suporte social à comunidade negra para minimizar os efeitos da Covid19, em termos sanitários e econômicos. Outra parte será empregado na reconstrução da polícia em bases comunitárias.

É um novo capítulo da história americana em que os termos dismantle e defund entraram no vocabulário das relações entre polícia e sociedade. Jornais com o New York Times e The Guardian destacam a questão, informam que Los Angeles reduziu o financiamento da polícia e outras cidades estudam fazê-lo[1].

Desde 1980 os investimentos em corpos policiais e tecnologias de policiamento multiplicou-se. As reformas do período visavam a redução de crimes violentos nas cidades americanas. Várias vertentes de reformas concorreram no campo policial, de um lado a tecnificação, com uso de de análise de dados, planificação, sistemas de gestão, fluxos de tomada de decisão, criação de protocolos e reformas na educação policial. De outro, modelos comunitários de policiamento, participação social, transparência, foco nos diferentes públicos e integração com as políticas de assistência social e prevenção. Uma terceira vertente apoiou-se em políticas de tolerância zero, encarceramento massivo, “guerra às drogas”. A militarização das polícias se tornou também crescente, com o uso mais frequente de armamento pesado. Os políticos de direita supervalorizaram a terceira vertente, e a importaram para a América Latina como modelo de polícia que funciona.

Estudiosos da criminologia demonstraram que o declínio das políticas sociais coincidiu com o crescimento das políticas de controle do crime. Menos bem-estar, mais prisão e polícia. O enxugamento do Estado só teve uma exceção. Se a polícia produz mais medo do que segurança, se ela mata, se ela discrimina, se as prisões não ressocializam e não cumprem os direitos civis, isso não se reverteu em questionamento dos métodos, dos objetivos e dos recursos destinados à prisão e à polícia.

Investimentos milionários continuaram a ser revertidos, enquanto o encarceramento em massa passou a ser analisado como um complexo industrial da punição: sua função de lucro e geração de empregos era mais importante do que sua capacidade de reintegrar socialmente os egressos.

Os dados do encarceramento, amplamente analisados, demonstraram seu caráter discriminatório e seletivo. As prisões americanas segregam negros e latinos, sendo a “guerra às drogas” o grande motor do controle social racista. Enquanto isso, a polícia afirmava a efetividade da filtragem racial para o controle do crime: ao mapear as áreas problemáticas, são as comunidades negras as que têm mais problemas, portanto é lá que o policiamento deve se concentrar e o número de abordagens de pessoas negras deve crescer.

Pouco a pouco o policiamento comunitário foi esquecido como base da reforma. Cada vez mais a tecnificação do trabalho policial e a tolerância zero levaram a concentrar a repressão nos bairros negros.

No século 21, a violência declinou nas cidades norte-americanas. Mas a estrutura de repressão baseada na ‘discriminação estatística’ das comunidades negras e latinas não parou de produzir mortes. Entre os países ricos, os EUA têm de longe o maior número de pessoas mortas pela polícia. Os casos se sucedem produzindo resistência. Em Nova Iorque a justiça chegou a proibir a abordagem policial por causa da filtragem racial e dos efeitos da discriminação para as pessoas negras. O movimento #BlackLivesMatter se fortalece ao lutar contra as mortes dos cidadãos negros pela polícia.

O protesto por justiça para Floyd já dura duas semanas. Ganhou apoio para desmantelar e reduzir o financiamento da polícia porque é grande o descontentamento com os resultados do alto investimento. A polícia cresceu demais, os modelos de policiamento que predominaram no campo policial produzem desigualdade racial e brutalidade policial. Hoje a violência da polícia preocupa mais do que a violência do crime.

Vários estados regularizaram o uso e a comercialização da maconha, tornando obsoleto o caro e brutal aparato de “guerra às drogas”. A sociedade evoluiu no tema e as polícias perderam espaço. São crescentes os apelos para a desmilitarização das polícias e aumento de transparência e controle dos abusos.

O punitivismo, acoplado à injustiça racial, chegou ao limite durante a crise da Covid19, expondo os vínculos políticos do aparato tecnológico do policiamento, supostamente neutro, com a opressão racista. Em Minneapolis, a decisão foi dissolver a organização policial dado o seu alto grau de comprometimento profissional e organizacional com o modelo que produz brutalidade policial e desigualdade racial. Uma nota de 20 dólares preocupa a polícia mais do que a proteção da vida quando essa anima um corpo negro. Os protocolos de operação induzem ao uso desproporcional da força, a educação policial e as técnicas de imobilização permitem que a voz que diz não conseguir respirar seja ignorada até seu completo silenciamento.

Pede-se agora menos polícia, mais bem-estar. Pede-se o recuo do protagonismo absoluto da polícia na produção da segurança pública e o repensar profundo das bases que orientam o policiamento. Os sistemas integrados de proteção social são o horizonte da sociedade civil que protesta, exigindo da polícia que consuma menos dinheiro e que repense sua razão de ser. Os recursos devem ser destinados às políticas de suporte social das comunidades negras, políticas redistributivas, na construção da reconciliação e da democracia americana em direção a uma sociedade menos violenta. São os novos ventos do norte a insuflar uma ruptura nas concepções e nos saberes sobre “justiça” e “vida segura”.

[1] Para conhecer mais: https://www.nytimes.com/2020/06/05/us/defund-police-floyd-protests.html, https://www.theguardian.com/us-news/2020/jun/04/defund-the-police-us-george-floyd-budgets, https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/06/07/policia-de-minneapolis-sera-desmantelada-e-reconstruida-camara-municipal.htm

 

Jacqueline Sinhoretto, socióloga, professora da Universidade Federal de São Carlos, coordenadora do GEVAC UFSCar.

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