Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 As polícias não podem decidir sobre quando e como devem respeitar decisões judiciais e as leis https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/as-policias-nao-podem-decidir-sobre-quando-e-como-devem-respeitar-decisoes-judiciais-e-as-leis/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/as-policias-nao-podem-decidir-sobre-quando-e-como-devem-respeitar-decisoes-judiciais-e-as-leis/#respond Tue, 23 Nov 2021 18:47:50 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/favela-RJ-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1850 O STF tem a oportunidade de, na ADPF 635, atualizar a jurisprudência que disciplina a segurança pública brasileira e baliza doutrinas de atuação policial. As polícias não podem decidir sobre quando e como devem respeitar decisões judiciais e as leis

 

Esta semana o STF retoma o julgamento da ADPF 635/2020, que vetou operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, exceto em casos emergenciais e condicionados à prévia notificação ao Ministério Público. São vários os aspectos a serem considerados e discutidos, ainda mais diante de operações como a no Jacarezinho, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em maio deste ano, e agora a no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, pela PMERJ.

Nessas horas, o debate parece ideológico e revela embates de diferentes valores e moralidades. Todavia, precisamos pensar alguns aspectos jurídico constitucionais prévios, na ideia de sugerir ao pleno do STF uma reflexão mais ampla sobre o direito à segurança. Em minhas aulas na FGV, desde 2014, tenho insistido no fato de segurança ser um direito fundamental e, portanto, que  justiça social só se faz garantindo-o em sua plenitude. Vivemos em um Estado de Direito e, nele, instituições públicas são sujeitas a freios e contrapesos, não há poder absoluto.

Há muitas confusões conceituais no cotidiano da segurança pública brasileira, até por ela ser mais um campo organizacional e não um conceito fechado, delimitado. Porém, vale reler o que diz nossa CF:

Segundo o Caput do Artigo 144 da CF, que regula como ela será assegurada para a população, “segurança pública, dever do Estado, DIREITO e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Esse é o artigo mais comumente lembrado quando falamos do tema, mas quase sempre para dizer qual corporação/instituição pode ou não atuar no campo.

Porém, neste mesmo caput, o Artigo 144 faz relação a um fato central, ou seja, explicita que segurança é um direito e, enquanto tal, está inscrito no preâmbulo da Constituição Federal e nos Artigos 5o e 6o, que tratam dos direitos fundamentais. Diz o Preâmbulo:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”

Já o artigo 5º, por sua, vez, diz, em seu caput, que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. Termos esses que se traduzem em 78 itens ou premissas fundamentais que precisam ser observadas na organização do Estado e na sua forma de agir.

Entre eles, vários associados à ação em comunidades, como o III, que diz que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;  o XLIX, que assegura aos presos o respeito à integridade física e moral; ou o XLVII, que reforça que não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada.

Na Constituição e/ou na legislação infraconstitucional, contudo, não há uma definição clara sobre o que significa “ordem pública”, deixando para as polícias a interpretação operacional do que significa mantê-la. Isso aumenta a discricionariedade e reduz controles. Aqui uma evidência da importância do julgamento da ADPF 635, pois ela pode ter um impacto prático muito maior do que o inicialmente previsto. Ela pode dar balizas para a modernização jurisprudencial da legislação, ainda sustentada por normas anteriores a 1988.

Por exemplo, o “poder de polícia” é regulado apenas no Código Tributário Nacional, de 1966, em seu artigo 78, onde está definido que:

“Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com OBSERVÂNCIA DO PROCESSO LEGAL e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem ABUSO OU DESVIO DE PODER”

A ADPF é importante, ainda, pois a própria Constituição, em seu Artigo 144, parágrafo 7º, prevê que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a EFICIÊNCIA de suas atividades“. Oras, não preciso ser jurista para interpretar que “EFICIÊNCIA”, aqui, é garantir o que está previsto no preâmbulo e no capítulo dos direitos fundamentais e que, portanto, as polícias não podem tudo, até porque não faltam leis que disciplinam a ação do Estado, a exemplo do Código de Processo Penal, a Lei que cria o Sistema Único de Segurança, a  Improbidade Administrativa, entre outras.

O STF tem a oportunidade de, na ADPF 635, atualizar a jurisprudência de modo a disciplinar tais tópicos e modernizar doutrinas de atuação policial frente ao que a CF prevê. O CNMP, por sua vez, dado que o Ministério Público detém a prerrogativa de controle externo da atividade policial não precisaria aguardar o STF e poderia, ele próprio, ampliar a ação dos Ministérios Públicos para além do controle de cada caso; do controle de eventuais desvios individuais de conduta. É preciso tratar segurança como um direito coletivo e difuso e cobrar os responsáveis por sua garantia para que ele seja implementado de acordo com a premissa de ser um direito fundamental inalienável e condição para o exercício da cidadania.

O Brasil precisa atualizar sua legislação e cobrar os órgãos para se ajustarem ao ordenamento constitucional. Isso significa repensar leis gerais ou orgânicas, normas operacionais e mecanismos de governança e controle. As polícias não podem ter liberdade para decidirem sobre quando vão respeitar decisões da Justiça. Uma segurança pública de fato eficiente pressupõe respeito incondicional às regras do jogo e, no Estado de Direito, quem dá a última palavra é o Judiciário. Não podemos aceitar nada além disso.

 

 

Para saber mais:

Segurança Pública no Brasil: história de uma construção inacabada. Marco Aurélio Ruediger e Renato Sérgio de Lima (orgs). Editora da FGV.

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Os riscos da institucionalização da Operação Vingança https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/os-riscos-da-institucionalizacao-da-operacao-vinganca/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/os-riscos-da-institucionalizacao-da-operacao-vinganca/#respond Tue, 23 Nov 2021 13:57:18 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/foto-salgueiro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1845 Moradores, familiares e ativistas têm classificado o caso de Salgueiro como uma chacina cometida por policiais durante uma “operação vingança” pela morte de um sargento PM.

David Marques*

 

Entre a madrugada de domingo e a manhã de segunda-feira (21/11) 8 corpos foram retirados de uma área de mangue no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. As notícias sobre o caso dão conta de que os corpos apresentavam com sinais de tortura. Entre os sete mortos identificados, dois não possuíam antecedentes criminais.

No sábado, o sargento PM Leandro Rumbelsperger da Silva, de 40 anos, havia sido morto por criminosos em um ataque a uma base da PM. A operação foi então desencadeada, com participação do BOPE.

O caso se dá no contexto da vigência da chamada ADPF das Favelas, que restringiu e condicionou a realização de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19 à previa autorização judicial. O MP-RJ diz ter sido informado da operação. Vale lembrar, no entanto, que um dos casos citados na decisão do ministro Edson Fachin, do STF, nesta ADPF foi o de João Pedro, adolescente de 14 anos morto durante operação policial no mesmo Complexo do Salgueiro, em junho de 2020. Além disso, cabe mencionar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro em 2017 no caso da Favela Nova Brasília, no qual 26 pessoas foram mortas e 3 mulheres foram vítimas de violência sexual durante operações policiais entre 1995 e 96.

Moradores, familiares e ativistas têm classificado o caso de Salgueiro como uma chacina cometida por policiais durante uma “operação vingança” pela morte do sargento PM.

O Projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, buscou estudar as chacinas no Brasil – casos com três ou mais vítimas fatais na mesma ocorrência – a partir de notícias da imprensa. Foram sistematizados 408 casos entre 2015 e 2019. Destes, em 97 houve suspeita ou certeza da participação de policiais em sua execução (23,8%). Estes casos foram identificados em 16 estados, com destaque para RJ, PA e SP, nos quais em mais de 43% do total de casos identificados houve participação de policiais. Segundo este levantamento, somados, os casos nos quais há suspeita ou certeza de participação de policiais ou de outros agentes ou ex-agentes estatais (categorizados como atuação policial, operações policiais, grupos de extermínio ou milícia) são a segunda motivação mais frequente de chacinas no país.

Na tese recentemente defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, estudei em maior detalhe a participação de policiais em chacinas, com foco em um caso ocorrido em Osasco e Barueri, região metropolitana de São Paulo, em 2015. O estudo demonstrou que as chacinas com participação de policiais podem ser divididas em três tipos principais:

  1. Chacina cometida por policiais em serviço, em ações policiais de rotina ou em operações policiais planejadas, cujas mortes podem ser intencionalmente lícitas ou intencionalmente abusivas (podendo as abusivas serem ainda dissimuladas de legítimas);
  2. Chacina cometida por policiais fora de serviço, relacionadas com o oferecimento de serviços de segurança privada;
  3. Chacina cometida por policiais fora de serviço com o objetivo de extorquir traficantes de drogas, demonstrar poder, exercer controle e auferir benefícios financeiros com as dinâmicas criminais locais.

Na pesquisa, a realização vingança pela morte de outro agente de segurança pública foi mais frequentemente associada às ações letais de policiais em serviço, as chamadas “resistências seguidas de morte” e por meio de operações policiais planejadas. Estas mortes geralmente são cometidas por policiais que querem ver seus nomes associados a morte de pessoas que consideram criminosos, dentro de uma lógica de limpeza social, de “fazer justiça”.

O caso do Salgueiro parece corresponder em grande medida à análise acima, no que é chamado pelos moradores de “operação vingança”. Embora não se perca de vista a séria crise de segurança pública enfrentada pelo Rio de Janeiro nos últimos anos, é preciso questionar primeiramente o modelo de policiamento baseado no enfrentamento militarizado. O princípio da experiência da política de pacificação no Rio, na segunda metade dos anos 2000, mostrou que é possível fazer segurança de um modo diferente, e com resultados melhores, apostando em uma polícia que permaneça nas comunidades e nos territórios, se aproximando de sua população, e não apenas passe por eles. Ao fracasso da política de segurança segue-se o fortalecimento do crime organizado e das milícias, vastamente documentado em estudos e notícias. O resultado desse processo continua sendo a alta produção de letalidade, com suas mais diferentes vítimas, incluindo crianças, como João Pedro, e o Sargento Leandro.

Pesquisa do FBSP mostrou que de uma amostra de 316 casos de mortes decorrentes de intervenção policial ocorridas no Rio e em São Paulo em 2016, 90% foram objeto de pedido de arquivamento por parte do Ministério Público. Se o controle da atividade policial não é exercido de forma constante, incluindo os casos de mortes decorrentes de intervenção policial em serviço, ele torna-se virtualmente impraticável nos casos mais extremos e com isso temos a deterioração das instituições e do sistema democrático de segurança e justiça, que se torna refém do arbítrio.

 

*David Marques é doutor em sociologia e coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Demonização dos povos tradicionais no caso Lázaro não surpreende https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/#respond Fri, 02 Jul 2021 19:51:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terreiros-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1810 Em nome da luta contra o mal, mesmo com recursos tecnológicos à disposição, a polícia seguiu invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais

Ana Paula Mendes de Miranda*, Rosiane Rodrigues de Almeida** e Leonardo Vieira Silva***

A pressa em rotular Lázaro Barbosa de Souza fez com que ele fosse apresentado de muitas formas. Uma dessas classificações resultou em violações de direitos dos povos tradicionais por parte das polícias. Ao retratá-lo como um “fanático religioso”, as forças de segurança se tornaram os cruzados contemporâneos. As operações se transformaram em ações cristãs de “libertação do mal”, numa espécie de “batalha religiosa” acompanhada em tempo real pelas redes sociais.

Tudo começou com narrativas oficiais. O “boato” de que Lázaro estaria possuído por um “demônio” ou “espírito” foi veiculada pelo tenente Gérson de Paula, da PM de Goiás, através do site Metrópoles, no dia 15 de junho. O policial teria afirmado que o criminoso andaria com um “livro místico” que lhe garantiria “proteção espiritual”, razão pela qual “só poderia ser pego com auxílio de cães ou cavalos”. Na sequência, a entrevista do major Rio Branco, subchefe do Centro de Comunicação Social da Polícia Militar do Distrito Federal, ao UOL, que, ao analisar as dificuldades de prender o criminoso, afirmou: “se ele [Lázaro] é a força satânica, as forças de segurança são os anjos de Deus”.

A imprensa mordeu a isca e reconduziu a cobertura, deixando de lado o “perfil psicológico” e investindo na suposta prática demoníaca, mesmo com a ex-mulher e um amigo do suspeito afirmando que Lázaro era evangélico. O G1 reproduziu fotos, que teriam sido divulgadas pela polícia civil, de alguns assentamentos de Exu e pentagramas. Na reportagem, o delegado Raphael Barboza afirmou que os objetos foram encontrados na “casa” de Lázaro, sendo “indicativos de práticas de bruxaria e rituais”. Impressiona que, em pleno século XXI, o jornalismo brasileiro não saiba lidar com a diversidade religiosa. Mas o problema não parou aí.

A ação se voltou para investigar as suspeitas de acobertamento de Lázaro pelos terreiros da região. Diferentes grupos de policiais passaram a invadir, sem mandado judicial, cerca de 12 terreiros. Vídeos disponíveis nas redes sociais demonstram que antes do “combate” aos terreiros, os policiais oravam.

A “neoinquisição” utilizou-se de técnicas tradicionais de interrogatório e pressão dirigida aos suspeitos – os povos tradicionais de matrizes africanas. Em nome da luta contra o mal, com os meios tecnológicos mais modernos, seguiram invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais.

As invasões, agressões físicas e verbais só cessaram quando as lideranças religiosas se mobilizaram, por meio das redes sociais, denunciando que as fotos não eram da “casa” de Lázaro, mas do babalorixá André de Oxum, que, após uma peregrinação, conseguiu registrar ocorrência policial sobre os abusos sofridos. Os afrorreligiosos buscaram os meios legais e parceiros que os apoiassem nas suas reivindicações: mandado de segurança para proteção das casas; apuração de responsabilidades das forças policiais pelas agressões; reparação dos danos/agressões; retratação dos meios de comunicação, e garantia do Estado para o direito à liberdade e integridade dos territórios tradicionais.

A pressão serviu ao menos para que o G1 e o UOL se retratassem, pedindo desculpas pelos “erros no processo de produção” das reportagens. O Metrópoles nada fez até o momento da redação deste texto. As instituições policiais seguiram caladas diante da violação que produziram.

Há mais de 30 anos se discute no Brasil que as instituições de segurança pública não têm o direito de dispor de forma ilimitada do uso da força. Há que se respeitar os limites legais que estabelecem que o mandato de uso da força, conferido aos agentes de segurança, não pode violar os direitos fundamentais.

Analisando os relatos e reportagens fica evidente que o início das agressões se deu pelas forças do Estado, difundindo a ideia de que se tratava de uma missão religiosa de libertação do mal. O que vimos é o desrespeito aos preceitos fundamentais basilares, com a invasão ilegal dos terreiros e a espetacularização midiática das operações. O episódio lembra “A Quebra de Xangô”, ocorrida em Alagoas, em 1912, quando terreiros foram invadidos e destruídos com a mesma intenção.

Inaceitável que as operações policiais funcionem como dispositivo publicitário de produção de medo e violação de direitos. Quem ganha com a encenação e espetacularização da insegurança? Trata-se de um fenômeno antigo que explora a violência como mercadoria – notícia – e transforma o público em mero espectador.

Mais uma vez negou-se a humanidade aos povos afroameríndios, para em seguida negar-lhes os direitos. A demonização dos terreiros pelas igrejas cristãs, pela mídia, pelas agências estatais, vem da colonização. Ela serve para generalizar o medo, para organizar moralmente a sociedade em torno de um modelo excludente da diversidade, que trata o mundo de modo dual (bem versus mal), no qual se inventam os “demônios” para que sejam sempre os culpados. Não se trata apenas de uma questão religiosa, mas sim de uma ética, um modo de pensar, sentir e agir que orienta práticas institucionais. Neste caso a demonização serviu para ocultar os interesses financeiros de um fazendeiro, que teria escondido o criminoso. Ele não permitiu a entrada das polícias em sua fazenda, mas não houve uma invasão tal como nos terreiros, pois ele foi preso mediante outro tipo de ação. Nada de novo na política e na polícia brasileiras.

 

*Professora de Antropologia (UFF); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF); Bolsista de Produtividade do CNPQ 2.

**Bolsista de Pós-Doutorado em Antropologia (FAPERJ); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF).

***Doutorando em Antropologia (UFF); Pesquisador do INCT-INEAC (UFF)

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Na edição desta semana, leia também “Vinte anos da criminalização do assédio sexual” e “Casos DG e Floyd, duas mortes e a mesma causa: a letalidade policial“.

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Morte de Ecko fortalece a expansão política miliciana https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/morte-de-ecko-fortalece-a-expansao-politica-miliciana/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/morte-de-ecko-fortalece-a-expansao-politica-miliciana/#respond Fri, 25 Jun 2021 15:27:01 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/ecko-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1802 Por trás da morte midiática do homem mais procurado pela polícia do Brasil está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento

José Cláudio Souza Alves*

O assassinato de Wellington da Silva Braga, o Ecko, em uma operação da Polícia Civil, no dia 12 de junho de 2021, representa mais um capítulo de uma guinada política da atuação policial pelo governo do estado do Rio de Janeiro em direção ao fortalecimento da estrutura miliciana que vem se expandindo de forma acelerada nos últimos anos. Por trás da morte midiática daquele que seria o homem mais procurado pela polícia do Brasil, e o líder da maior milícia do estado, está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento, como afirmado pelas autoridades policiais e pela mídia. Para entender isso, é preciso relacionar essa morte a uma sequência de eventos que se iniciaram em outubro de 2020.

Naquele momento, a um mês das eleições municipais, uma operação conjunta da Polícia Civil e Polícia Rodoviária Federal assassinou 17 pessoas, sob a justificativa de serem “narcomilicianos”. Esse termo passava a dar a tônica da atuação policial. Com ele, desvincula-se a atuação miliciana da ligação com os agentes de segurança pública, dentro do Estado, atribuindo-a às práticas de traficantes. A consequência seria a liberação para matar tais indivíduos, já que não passavam de bandidos. O marketing da ação policial “antimilícia”, ocultando o engajamento crescente dos policiais ao empreendimento miliciano, soma-se à lógica do “bandido bom é bandido morto”, tão cara à extrema direita, naquele momento, em plena campanha eleitoral.

O segundo evento foi a implantação de um destacamento do 39º Batalhão da Polícia Militar no Complexo do Roseiral, na cidade de Belford Roxo, em janeiro de 2021, a partir das articulações entre o prefeito reeleito, Wagner dos Santos Carneiro, e o governador Cláudio Castro. As mais de 20 mortes produzidas por operações policiais nessa área vitimando membros do Comando Vermelho (CV) se incluem na geopolítica de expansão das milícias, que há décadas dominam os bairros do São Bento e Pilar, na cidade vizinha de Duque de Caxias, seguindo o eixo da Avenida Leonel Brizola.

O terceiro momento surge na operação da Polícia Civil que assassinou 28 pessoas em uma operação na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Tal desproporcionalidade de mortes, quando comparadas ao histórico mais recente das operações na capital, relaciona-se tanto ao confronto com o STF e a ADPF que restringe operações policiais nas favelas, em decorrência dos efeitos da pandemia de Covid-19, como à disputa geopolítica miliciana que vem isolando o Jacarezinho a partir dos conflitos com o CV em três favelas próximas: Arará, Mandela 2 e Bandeira 2, as duas últimas, do Complexo de Manguinhos.

A morte de Ecko, a aproximadamente um mês da chacina do Jacarezinho, dá prosseguimento ao projeto em curso. A aliança entre milícia e Terceiro Comando Puro (TCP), tendo o aparato policial como fiador, perpetua-se, a despeito dos assassinatos de “narcomilicianos”, ligados ao TCP, presentes na Liga da Justiça ou ex-bonde do Ecko, numa espécie de “preço a ser pago” pela manutenção dos negócios e marketing “antimilícia” que tenta ocultar a expansão miliciana.

Há, igualmente, uma intensificação do controle territorial, econômico e político eleitoral feito pela milícia em cima das áreas do CV. Projeta-se um alinhamento midiático com o discurso do extermínio, praticado pela política de segurança pública, com destaque para as redes de televisão, notadamente o SBT, com sua penetração popular. Essa correlação de acontecimentos deixa nítida a estratégia política voltada para as eleições de 2022, nas quais os candidatos ao governo do estado, Câmara estadual e federal, Senado e Presidência da República, com projetos de extrema direita, visam aprofundar seus ganhos a partir das disputas entre si, engalfinhados para ocupar o palanque bolsonarista.

O cenário de aprofundamento do fosso social e crescimento do mundo do crime, como alternativa real frente à crise multidimensional que se estabelece, projeta a área de segurança pública como grande palco de operações psicológicas, sociais, midiáticas e assassinas cujo objetivo é consolidar uma hegemonia inconteste da extrema direita sob a batuta bolsonarista. A morte de Ecko, apenas mais um soldado transformado em chefão para justificar a lógica do extermínio como solução, tem, igualmente, uma outra dimensão, que não se pode desprezar. Ela abre um cenário de disputas, internas e externas à milícia, quanto à liderança e condução do legado miliciano na Zona Oeste e Baixada Fluminense que juntas congregam quase 50% do eleitorado do estado.

Danilo Dias Lima, o Tandera, emerge como novo “Lampião” a ser degolado, mas provoca instabilidade na disputa interna à milícia ao ser alçado, pela morte de Ecko, à categoria de novo “chefão” que enfrenta a resistência dos herdeiros familiares de Ecko, como é o caso de Luís Antônio da Silva Braga, seu irmão. Essa instabilidade da disputa interna miliciana se junta, por sua vez, ao risco da retomada, pelo CV, de áreas perdidas para a milícia, produzindo uma intensificação do terror nas comunidades em disputa, que são muitas. Esse agigantamento da onda de instabilidade e medo reforça o pano de fundo para a manutenção do extermínio como prática da segurança pública, retroalimentando mais operações e chacinas enquanto cortina de fumaça que oculta a expansão miliciana como projeto de controle de amplo espectro e, principalmente, político eleitoral.

Todos esses eventos projetam a milícia como grande palanque para 2022. Quem tiver mais milicianos ao seu lado, com controle territorial, econômico e político de áreas, sai na vantagem. Quem mais matar os “narcomilicianos”, troféus criados para as prateleiras da extrema direita, também ganha pontos. Quem soma as duas estratégias tem mais pontos ainda. Desse modo, o a região metropolitana do Rio de Janeiro mantém o seu papel de grande laboratório, repercutindo para o resto do país, dentro do projeto bolsonarista hegemônico, as novas etapas da “milicialização” da segurança pública.

 

*Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro “Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”.

 

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Na edição desta semana, leia também “O que nos ensina o Big Brother Policial que envolve a caçada a Lázaro Barbosa” e “Segurança Pública 4.0 : tecnologia e inovação no combate à criminalidade”.

 

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A Polícia Federal resiste? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/a-policia-federal-resiste/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/a-policia-federal-resiste/#respond Fri, 28 May 2021 14:02:31 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Salles-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1783 Ao manter sua expertise na manutenção da qualidade da investigação e ao demonstrar, via operação, que continua fazendo seu trabalho, a PF emite sinais de resistência

Andréa Lucas Fagundes*

Nos últimos tempos, a Polícia Federal tem estado no centro de disputas que envolvem diretamente o campo político. Para relembrar, os casos mais ilustrativos:

a) caso Bivar (2019), ocasião em que fizemos para o Fonte Segura uma breve revisão da PF e seu possível aparelhamento político;

b) a exoneração do então Diretor Geral, Mauricio Valeixo, alvo de acontecimentos políticos que implicaram a saída do então Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro, Sergio Moro;

c) a nomeação relâmpago do delegado Alexandre Ramagem, que não chegou a tomar posse do cargo;

d) episódio envolvendo a família Bolsonaro (esquema das rachadinhas), que coloca em xeque a independência de investigação da Polícia Federal com acusações de vazamento de informações por um delegado da PF;

e) a mudança ocorrida recentemente no Ministério da Justiça e Segurança Pública, em que assume a pasta Anderson Torres, delegado de Polícia Federal que há alguns anos vem exercendo atividades políticas e automaticamente troca o comando da Polícia Federal, hoje dirigida por Paulo Gustavo Maiurino, também delegado com perfil de articulação política;

f) o afastamento do então Superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva, após ter enviado ao STF pedido de investigação contra Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente;

g) nos últimos dias, a deflagração da operação Akuanduba, que tem entre seus investigados o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, Eduardo Bim, com autorização do STF, e;

h) na última sexta-feira, a notícia de proposição ao STF, pelo Diretor Geral Paulo Maiurino, de um documento propondo reestruturação interna do órgão e “implementação de mecanismos de supervisão administrativa e estruturação organizacional, nos moldes dos adotados pela PGR”, após a solicitação ao STF, pela Polícia Federal, de autorização para investigar o ministro Dias Toffoli.

Contudo, observa-se uma peculiaridade nos dois últimos casos, pois, ao contrário dos demais, a operação Akuanduba não se configura como uma ação do Executivo com tom de interferência política na instituição e sim a atuação da Polícia Federal realizando operação que tem como investigado um ministro de Estado, seguida da notícia de uma tentativa do Diretor Geral de controlar a autonomia dos delegados após pedido da PF para investigar ministro do STF. Cogita-se, então, a hipótese de uma possível resistência institucional, ou de ao menos uma parcela da instituição, à crescente interferência política na Polícia Federal. O que nos leva a revisitar alguns argumentos que vêm sendo apresentados nos últimos anos sobre o desenvolvimento institucional da PF, configurando o que acadêmicos e os próprios policiais federais consideram a independência administrativa e investigativa da Polícia Federal, frequentemente “testada” ultimamente.

Nos últimos 20 anos a instituição passou por significativo processo de mudança e desenvolvimento que envolveu reestruturação e modernização organizacional,  renovação e qualificação de seu quadro, fortalecimento da imagem institucional e especialização, culminando no refinamento da investigação via um processo que fortaleceu a capacidade de investigação e a qualidade da prova. Avanços que ocorreram mesmo enfrentando desafios como a disponibilidade orçamentária, que teve incremento na primeira metade dos anos 2000, mas que na última década e até os dias atuais passou a enfrentar cortes e restrições impostas pelo Poder Executivo.

Tal reestruturação interna colocou a PF em outro patamar institucional, tanto pelos resultados apresentados nas operações, como pela articulação com demais instituições do sistema de controle e pela imagem e confiança junto à sociedade brasileira. Entretanto, a independência administrativa e investigativa atingida parece não garantir bloqueio contra eventual ingerência do Poder Executivo, por sua subordinação ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), condição necessária em democracias.

Tais características institucionais e a insistente interferência do Executivo têm resultado em tensas relações entre a PF e o governo Bolsonaro, que parecem refletir a resistência de quadros do órgão, que ao longo dos anos 2000 e até o primeiro ano do governo atual, teve em sua cúpula lideranças com fortes características de atuação técnica, defensores da autonomia de investigação, que influenciaram a formação de novas gerações. Perfil que, muito provavelmente, opõe a resistência interna à gestão atual – representada pelo perfil político -, por meio da utilização de sua “maior/melhor arma”: a capacidade investigativa e qualidade da prova. Até aqui parece-nos que a instituição vem resistindo. Seja ao manter sua expertise na manutenção da qualidade da investigação e da prova, seja por demonstrações constantes, via operações, de que a PF continua fazendo seu trabalho mesmo contra grupos ligados ao presidente da República.

Contudo, os últimos acontecimentos, em especial após as mudanças no Ministério da Justiça e Segurança Pública e a entrada do Diretor Geral, Paulo Maiurino, exigem atenção. Primeiro o DG afasta um superintendente regional que opôs resistência pública e solicitou pedido de investigação envolvendo ministro e, em seguida, propõe reestruturação interna do órgão que pode tirar a autonomia dos delegados em investigações de autoridades com foro especial.

Sabe-se das clássicas disputas entre classes na PF, principalmente entre delegados e agentes. Entretanto, delegados sempre foram ferrenhos defensores da autonomia investigativa, sua principal bandeira e forte argumento de “blindagem” institucional. Movimentos como este podem acirrar disputas internas que pareciam latentes, como uma divisão entre delegados: de um lado o perfil técnico, de outro o perfil político. As manifestações de representações de classe e reações internas merecem acompanhamento e atenção. Cabe observar e verificar se a trajetória de desenvolvimento institucional da Polícia Federal, de fato, resistirá às novas diretrizes.

 

*Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas na UFRGS. Mestre em Sociologia pela UFRGS.

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Na edição desta semana, leia também “Medidas estratégicas reduzem a letalidade da Polícia Militar de São Paulo” e “Dia internacional de Combate à Homofobia: o que celebrar?

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Covid-19 e morte de policiais: crônica de uma tragédia anunciada https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/covid-19-e-morte-de-policiais-cronica-de-uma-tragedia-anunciada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/covid-19-e-morte-de-policiais-cronica-de-uma-tragedia-anunciada/#respond Thu, 29 Apr 2021 22:06:14 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/alcadipani-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1734 Os óbitos de policiais na pandemia deixam claro que a prevenção e o cuidado com a vida desses profissionais não passam de discurso que não se converte em atitudes práticas

Rafael Alcadipani*

Logo no início da pandemia de Covid-19, uma parceria de pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, da qual fiz parte, realizou um estudo mostrando que quase 70% dos policiais no Brasil tinham medo de serem contaminados e de morrerem da doença, bem como de levá-la para suas famílias. O estudo já indicava que metade dos policiais tinham um colega ou parente com suspeita de estarem com o vírus. Apenas 30% dos policiais se sentiam preparados para trabalhar durante a pandemia e nos estados do país pouco mais de 30% relatavam que haviam recebido os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para se protegerem da doença durante o turno de trabalho.

Ou seja, o estudo já apontava que os policiais não se sentiam preparados e não estavam recebendo nem treinamento muito menos equipamento de proteção adequados para lidar com a pandemia. Embora houvesse diferenças entre o preparo de instituições nos diferentes estados da federação, era nítida e clara a urgência de que medidas fossem tomadas para evitar uma alta vitimização de policiais no Brasil.

Embora tenha ganhado repercussão da imprensa e estivesse disponível ao público interessado, como é típico de nosso país, o estudo não despertou grande interesse dos gestores de segurança pública brasileiros e, ao que tudo indica, seus achados não sensibilizaram as secretarias de segurança dos estados – muito menos o Governo Federal – a adotar uma política nacional de prevenção a morte de policiais por Covid-19.

Os números recentes do Monitor da Violência mostram que a Covid-19 afetou bruscamente as instituições policiais. O número de policiais mortos pela doença é mais do que o dobro do que o de policiais que foram assassinados nas ruas em 2020 – 465 profissionais atingidos pela pandemia contra 198 assassinados em serviço ou na folga. Além disso, um a cada quatro policiais brasileiros foi afastado do seu trabalho devido a doença e seus riscos. Rio de Janeiro, Amazonas e Pará foram os Estados onde mais policiais foram vitimados pela pandemia. Uma vez que o alerta havia sido dado, são mortes que poderiam ter sido evitadas.

A morte de tantos policiais pela Covid-19 escancara o grave problema de gestão da Segurança Pública em nosso país. Boa parte das decisões são tomadas sem o recurso a estudos ou pesquisas. Ou seja, raramente decisões neste campo são tomadas tendo por base a ciência, tema tão em voga durante esta pandemia. Em geral, usa-se o bom senso de quem está na ponta da linha e acha que sabe por ter estado tantos anos realizando a função de segurança pública. Esquecem-se que é possível passar uma vida inteira trabalhando errado.

Além disso, as mortes de policiais durante a pandemia deixam claro que a prevenção e o cuidado com a vida do policial são um mero discurso que não se converte em atitudes práticas. Qual o motivo do Governo Federal não ter articulado uma política nacional de proteção aos policiais para a pandemia? Quais foram as ações concretas tomadas pelos Secretários de Segurança dos Estados para proteger os policiais além da distribuição formal de algumas máscaras e álcool gel? É preciso ainda destacar que as culturas organizacionais das polícias valorizam a virilidade e o tomar risco. Isso faz com que a prevenção com a própria saúde e o mero uso de máscaras sejam malvistos em muitos círculos de policiais. Isso se torna ainda mais nocivo quando as lideranças não assumem a sua responsabilidade de cobrar o uso de máscaras por parte dos policiais.

Embora alguns estados tenham vacinado seus policiais, no atual cenário isso não é garantia de nada. Novas cepas podem surgir diminuindo a eficácia das vacinas e o próprio valor da eficácia real dos diferentes imunizantes é ainda objeto de estudo. A prevenção da Covid-19 passa necessariamente pelo distanciamento social e pelo uso de máscaras de boa qualidade. Raramente, porém, policiais estão usando as máscaras N95. As mortes que aconteceram até o momento são a crônica de uma tragédia anunciada. E se nada for feito de efetivo para preservar a vida dos policiais, a tragédia irá ganhar cores cada vez mais dramáticas.

 

*Professor Titular da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Tiroteio em massa nos EUA” e “Policias civis, em busca de identidade“.

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Militarização da Segurança Pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/#respond Thu, 18 Mar 2021 19:57:45 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/bolsonarofaces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1696 Polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de Bolsonaro, enquanto os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e obtiveram conquistas políticas

Renato Sérgio de Lima*

Circulou, na semana que passou, um áudio atribuído a um Policial Rodoviário Federal que acusa o Governo de Jair Bolsonaro de levar adiante um “Lockdown Policial” cujo objetivo, na prática, seria o enfraquecimento das polícias civis, federal, rodoviária federal, penal federal e penais estaduais. Até por isso, para o autor do áudio, há em curso um adiantado plano de militarização da segurança pública no Brasil e de destruição das forças civis de segurança.

Para sustentar a sua hipótese, o autor do áudio argumenta que o governo tem privilegiado as carreiras militares federal e estaduais em detrimento das demais forças policiais. Ele cita a Reforma da Previdência, que teria imposto regras de transição mais severas para as polícias de natureza civil; a Lei Complementar 173, que proíbe reajustes salariais durante a epidemia de Covid-19; e a PEC 186, que adota medidas permanentes e emergenciais de controle do crescimento das despesas obrigatórias e de reequilíbrio fiscal. Ele também menciona a proposta de Reforma Administrativa como um ponto de alerta.

A meu ver, o áudio toca em pontos relevantes da ação do governo no campo da segurança pública e, concordo, há uma clara predileção pelas forças militares federal e estaduais. Mas creio que o cenário seja um pouco mais complexo. Ao que tudo indica, estamos presenciando um movimento de reconfiguração do associativismo policial e um rearranjo entre as lideranças da área. O governo Bolsonaro estaria atuando para eliminar dissonâncias entre sua principal base eleitoral e usa as pautas policiais para se contrapor às demandas liberais de Paulo Guedes pela manutenção do teto fiscal sem, no entanto, romper com o “mercado”.

Assim, entendo que não há o rompimento propriamente dito que foi anunciado pela imprensa na semana passada. É fato que as polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de poder de Jair Bolsonaro, não obstante existir um nível grande de convergência ideológica mesmo entre elas. É um sutil paradoxo que precisa ser compreendido pelos analistas da área para que não sejamos abduzidos pelo jogo de marcação.

Se partirmos do reconhecimento desse paradoxo, veremos que há um contraponto de sobrevivência das lideranças sindicais civis tradicionais dado que os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e conseguiram algumas conquistas políticas – por mais que, em termos de carreiras, também não tenham avançado em nada substantivo. Ou as lideranças civis se reposicionam ou são engolidas e superadas por novos atores mais alinhados às expectativas das bases policiais.

Não à toa, de modo sagaz, as críticas mais pesadas partiram de entidades relativamente novas no jogo associativista, que são a UPB e a OPB (Ordem das Polícias do Brasil). Se o rompimento fosse real, as próprias associações individuais estariam assumindo o protagonismo, mas efetivamente elas estão funcionando como anteparo de mitigação e negociação; elas aproveitam a repercussão e reabrem canais de negociação.

Isso não significa que não existam insatisfações crescentes e/ou reclamações pertinentes sobre o abandono de demandas corporativistas. Um exemplo é a explicitação, por parte da Associação de Delegados da Polícia Federal, de não ter nenhum canal de diálogo com o Ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública. No entanto, o embate parece ser mais sobre capital político e prestígio de ser ouvido do que sobre o endereçamento de demandas históricas de reforma da arquitetura da segurança pública.

Agora, no que diz respeito às polícias militares, que respondem por mais de 60% dos efetivos policiais do país e seus integrantes são os que mais têm aderido ao projeto de poder do atual presidente, adotaram uma tática diferente. Nesse caso, a opção foi por fortalecer as demandas das corporações, representadas pelos seus Comandantes Gerais, que negociam diretamente com o governo um reequilíbrio de forças e um projeto de autonomização vendido como de blindagem aos usos políticos.

As demandas associativistas estão em segundo plano e o que vale é a lógica militar clássica. O maior exemplo é o Projeto de Lei Orgânica das PM, que data de 2001, mas que na última segunda (16), teve um novo relator designado, o deputado do Capitão Augusto (PL/SP) que deve apresentar o substitutivo que está sendo negociado com o governo o mais rápido possível. Vale lembrar que o nome do Capitão Augusto já circulava como o relator ideal desde o início de 2020 e fazia parte de um pré-acordo com o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

Seja como for, o conteúdo do PL é extremamente concentrador de poderes nos oficiais das Polícias Militares e pouco avança sobre condições de vida e trabalho dos policiais militares. O foco das minutas de substitutivos que estão circulando está muito mais dedicado ao desenho de estratégias de autonomização das corporações dos governos estaduais e dos mecanismos de controle civil.

Por tudo isso, a novidade das pressões em torno do “rompimento” dos policiais com o governo não está no seu valor de face, ou seja, num fato indiscutível. O que estamos vendo é um movimento de pressão que visa reconfigurar o campo para que os policiais passem a fazer uma defesa inquestionável do governo ou, caso contrário, para que lideranças civis que atuam na chave sindical de modo mais isento e crítico sejam substituídas por novos e mais alinhados nomes. Esses já aparecem como os salvadores das categorias e devem rivalizar com nomes que há muito ocupam posições nas associações.

 

*Sociólogo e Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Lava Jato: ação estratégica em análise pelo STF” e “O Rei da Inglaterra não pode entrar na cabana do miserável”

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A saúde mental dos profissionais de segurança pública não faz quarentena https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/18/a-saude-mental-dos-profissionais-de-seguranca-publica-nao-faz-quarentena/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/18/a-saude-mental-dos-profissionais-de-seguranca-publica-nao-faz-quarentena/#respond Thu, 18 Feb 2021 21:45:25 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/policias-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1672 Desde o início da pandemia, profissionais da segurança pública continuam nas ruas trabalhando e sendo expostos ao vírus. Pensar em estratégias e políticas de saúde mental é essencial para esses agentes. 

Dayse Miranda*

Fernanda Cruz**

Desde março de 2020, temos assistido a uma série de descontinuidades nos serviços em detrimento de restrições sanitárias. Praticar o isolamento e o distanciamento social são as principais medidas preventivas para o COVID-19. No entanto, sob essa justificativa, alguns serviços fundamentais de assistência à saúde mental dos profissionais de segurança pública estão ameaçados.

Considerados como trabalhadores essenciais desde o início da pandemia, os profissionais de segurança pública permanecem nas ruas, expostos ao vírus e convivendo com o medo de se contaminar e contaminar aos seus familiares. Neste contexto, o suporte emocional se faz essencial para esses agentes. 

Sabemos que o descaso com a saúde mental dos profissionais de segurança pública não teve início com a pandemia. A Saúde Mental é um tema polêmico e pouco compreendido na Segurança Pública no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, o suicídio é um problema de saúde pública. Entretanto, as organizações de segurança pública brasileiras tendem a considerá-lo como um problema de saúde do sujeito em sofrimento psíquico. 

Um reflexo dessa visão é que as instituições não se preparam para lidar com o problema de uma forma coletiva. Os serviços assistenciais- quando existem- enfrentam uma série de desafios, desde a carência de profissionais até a resistências internas para manter seu funcionamento. A lógica dominante ainda é a de que um bom policial não precisa deste tipo de serviço e de que muitos policiais fingem adoecimento para se esquivarem do trabalho policial. 

O estudo que realizamos em 2014 nas 27 unidades federativas nos ensinou que o cuidado com a saúde mental dos agentes de segurança pública não faz parte do planejamento estratégico das polícias militares. A inexistência de vontade política fica evidente quando recapitulamos a agenda das políticas estaduais de segurança pública desde a institucionalização do primeiro Plano Nacional de Segurança Pública no país em 2000. 

É evidente que identificamos avanços nos últimos anos. Muitos deles tratam-se de iniciativas de policiais que passaram a buscar diversas fontes de conhecimento para mudarem a realidade de suas próprias instituições. No Distrito Federal, por exemplo, o Programa de Valorização da Vida foi instituído em 2018, por meio de articulação entre a Capelania e o Centro de Atendimento Psicossocial. O objetivo da iniciativa era fornecer uma perspectiva interdisciplinar comprometida com o cuidado integral e preventivo da saúde.

Apesar dos avanços, identificamos que quando não acontece o comprometimento coletivo dos gestores com a promoção da saúde mental dos agentes, as ações de intervenção e prevenção são rapidamente enfraquecidas ou descontinuadas. No entanto, essa escolha tem gerado uma série de revezes. Em primeiro lugar, para os próprios policiais, que não encontram o amparo necessário em suas instituições.

Em segundo lugar, para as famílias desses agentes, que muitas vezes representam o espaço onde policiais extravasam suas tensões e frustrações. Em terceiro lugar, para a própria instituição policial, que passa a conviver com um ambiente de trabalho marcado por perdas, desde casos de afastamento por saúde mental e até casos de suicídio entre os seus agentes. Por fim, para a sociedade, afinal é ela que demandará os serviços deste policial. 

Existe um longo caminho a ser percorrido para melhorar a atenção a saúde dispensada a esses profissionais. A existência de espaços de escuta e atendimento qualificado sem dúvida é um ponto fundamental. Entretanto, há questões organizacionais que precisam ser revisadas, entre elas estão: longas jornadas de trabalho, condições inadequadas de trabalho, punições arbitrárias, o convívio com humilhações verbais, carência de recursos humanos e materiais, entre outros. 

Quaisquer que sejam as ações de promoção da saúde desses profissionais, é preciso que elas tenham capilaridade e perenidade. Em momentos de crise, o cuidado com a saúde emocional do profissional de segurança pública é fundamental, por isso reforçamos que a saúde mental deve fazer parte da agenda de prioridades das políticas de segurança pública desde país. Do contrário, todos sairão perdendo.

*Socióloga, doutora em Ciência Política pela USP e coordenadora da área de ensino e pesquisa do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES).

**  Pesquisadora de pós-doutorado do NEV/USP e pesquisadora associada do IPPES.

 

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Na edição desta semana, leia também “Bolsonaro arma os amigos” e “Os conselhos tutelares na prevenção à violência contra crianças e adolescentes”.

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Os rumos da segurança pública na era Bolsonaro https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/08/os-rumos-da-seguranca-publica-na-era-bolsonaro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/07/08/os-rumos-da-seguranca-publica-na-era-bolsonaro/#respond Wed, 08 Jul 2020 18:16:59 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/manifestações.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1458 Ao longo dos últimos meses o tema segurança teve, como era esperado, forte destaque no debate público. Porém, mesmo em evidência, a área ganhou esse destaque mais pelas questões político-institucionais a elas associadas do que em função de uma discussão sobre redução da violência, do medo e do crime. Para entender as razões dessa dissonância, este texto aproveita reflexão feita para o Boletim Fonte Segura, mantido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para fazer um retrato panorâmico de alguns dos principais temas da agenda da área.

E o resultado é bastante preocupante e fonte de inquietudes, na medida em que percebemos que evidências foram mobilizadas e vários alertas foram emitidos mas poucas mudanças efetivas ocorreram. A começar pelo fato de o país não conseguir superar um cenário que tem se repetido nos últimos 30 anos, ou seja, um cenário que faz com que as políticas de segurança pública sejam formuladas e implementadas como que inseridas em um eterno pêndulo entre aqueles que acreditam segurança é efeito de macrocausas sociais e econômicas e os que preferem reduzir todos os problemas da área à eficácia do direito penal e do processual penal. Não construímos uma ética pública capaz de interditar a violência e guiar o país em direção a um modelo mais eficiente de controle do crime e garantia de cidadania.

Só mais recentemente começamos a falar de governança da segurança; de mudanças de gestão e de regras do jogo que pudessem criar condições para um ambiente de prevenção da violência, redução do medo e repressão qualificada do crime. Afinal, o Brasil possui um modelo de organização da segurança pública que gera, como tenho chamado atenção em outros artigos, diversos ruídos federativos e republicanos. Temos quase 1400 organizações públicas cujas atividades impactam diretamente na qualidade da segurança pública e não temos mecanismos robustos de coordenação de esforços entre órgãos de Estado, Poderes e esferas de governo. Ao contrário do SUS, na Saúde, a União não tem atribuição legal para coordenar o sistema de segurança como um todo.

Isso faz com que as Polícias Militares, por exemplo, atendam cerca de 150 milhões de ocorrências todos os anos no país e, em um looping sem fim, tenham que encaminhar para as Polícias Civis, Ministério Público e Poder Judiciário algo como 10 milhões desses atendimentos a cada ano. Temos números gigantescos e quase nenhuma articulação sobre como lidar com tal magnitude de casos, sendo quase tudo tratado da mesma forma – de um furto de um shampoo ao roubo de um carro forte, passando pela detenção de pessoas com pequenas quantidades de drogas. É quase impossível não saturar o sistema de justiça criminal, ainda mais quando cada instituição ou Poder define qual suas metas e planos de ação.

E, mesmo quando metas e planos existem, eles ficam dependentes de prioridades e lideranças políticas e/ou são fruto de articulação de organismos internacionais como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), que buscam influenciar o rumo e o sentido de políticas públicas como contrapartida à liberação de operações de empréstimos e assistência técnica oferecida por eles. Documento  obtido pela CNN Brasil, da Secretaria de Assuntos Econômicos Internacionais – SAIN, do Ministério da Economia, revela, por exemplo, negociação com a União em torno de 180 milhões de dólares para o financiamento de “Programa Federativo para Segurança Pública Inteligente”, com USD 45 mi desse valor destinado à “qualificação da gestão e da governança da segurança pública”; outros USD 45 mi para “implementação de programas de prevenção social e situacional da violência”; USD 72 milhões para a “modernização das organizações policiais”; e, por fim, USD 18 milhões para a “qualificação do sistema prisional e dos programas de ressocialização”.

O problema é que, em geral, tais projetos não mudam culturas organizacionais gestadas antes da Constituição de 1988, não obstante eles seguirem recomendações e boas práticas internacionais, conforme indica estudo elaborado pelo FBSP a pedido do Governo do Ceará quando da construção do Programa Ceará Pacífico (ver aqui), em 2018. Em não poucos casos, diante da possibilidade de novos recursos oferecida pelos Organismos Internacionais, gestores estaduais e federais agregam projetos de seus interesses já em curso à proposta conceitual formulada pelos bancos, sem necessariamente os componentes de cada projeto guardarem relação entre si e a unidade contratante ter mandato para implementar todas as atividades previstas. Essa é a forma burocrática que as Unidades da Federação, que com exceção de São Paulo, dependem de recursos federais de transferências voluntárias para fazerem investimentos em equipamentos e processos na segurança, aceitam interferências externas sem, contudo, mudar suas práticas. Ao fim e ao cabo, as operações de crédito internacional repetem as tentativas dos diversos planos nacionais de segurança pública durante os Governos Collor, FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro de vincular a liberação de recursos condicionando-os à aceitação de ações e programas específicos, mas possuem baixa capacidade de incidência e mudança.

Não há garantia de que os programas propostos terão a mesma eficácia e efetividade daqueles que os inspiraram no mundo mas, em contexto de restrição orçamentária, os recursos dos organismos internacionais mitigam a crise fiscal e a não observância, por parte do Governo Federal, das novas regras do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), que torna obrigatório o repasse de recursos das loterias para as Unidades da Federação. Importante destacar que o Governo Bolsonaro está tentando, na prática, bloquear o repasse de recursos de novas fontes de receita oriundas das loterias para oferecer às Unidades da Federação o aval à contratação de empréstimos internacionais, o que chama ainda mais atenção pela narrativa “antiglobalista” que o atual governo assume para si. Esse é um movimento temerário para as finanças públicas estaduais, pois troca recursos financeiros livres de encargos estimados, quando da promulgação do SUSP, em R$ 800 milhões em 2018; R$ 1,7 bilhão em 2019; e R$ 4,3 bilhões em 2022 por empréstimos que precisarão ser pagos. A contratação de operações de empréstimos internacionais seria um fator de maior transparência, qualidade do gasto e governança se viesse acompanhada pela execução dos recursos já disponíveis e mais baratos.

O mesmo governo que negocia, por intermédio do Ministério da Economia, a contratação de empréstimos internacionais para a segurança pública nos estados e DF é o Governo que, no Ministério da Justiça e Segurança Pública, deixa de executar a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social prevista no SUSP, em especial, como já analisado na edição 41 do Fonte Segura, a estruturação dos programas de Valorização Profissional dos Policiais e do SINAPED, sistema de avaliação e monitoramento que tem como função padronizar métricas e indicadores comuns a todos os integrantes do Sistema Único de Segurança Pública. O fato é que, apesar das reformas recentes com a criação do Sistema Único de Segurança Pública (2018) e a alteração da lei do Fundo Nacional de Segurança Pública com previsão dos recursos das loterias, gastos e ações no setor por parte do governo federal continuam inexpressivas (ver balanço da atuação de Sergio Moro à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública aqui).

Como pano de fundo, há dissonância entre a legislação infraconstitucional e os comandos da Carta Magna, sendo que praticamente toda a legislação que ainda hoje regula a segurança é anterior à Constituição de 1988 e os legisladores não regulamentaram o significado prático do ser e fazer polícia no contexto democrático; no contexto da ordem social inaugurada em 1988. As Polícias Judiciárias (Civil, Federal, Militar para crimes militares) se baseiam no instituto de inquérito policial, criado em 1871, e nos Códigos Penal e Processual Penal (Civil e Militar), da primeira metade do Século XX. As prisões são geridas com base em legislação de 1994 e as Polícias Militares ainda funcionam de acordo com os pressupostos do decreto Lei 317, de 13 de março de 1967, mantidos quase que intactos pelo R200 (Decreto  88.777, de 1983), que ainda está em vigor e que fala de “segurança interna” e não de “segurança pública”– legislação que, a priori, vai contra a Constituição na medida em que o seu Artigo 144  diz que as PM são gerenciadas pelos Governadores, enquanto o Artigo 3º. Do Decreto 88.777/83 diz que elas são “coordenadas” pelo Exército.

O resultado prático desta situação é que, ao ter dois chefes, as polícias militares foram se tornando excessivamente autônomas e hoje decidem quase sem questionamentos quem obedecer e quais seus padrões operacionais e o escopo de suas ações. E, considerando que o padrão de policiamento valorizado social e politicamente, independentemente de a polícia ser Civil ou Militar, é aquele que aceita a ideia de inimigo interno e que “bandido bom é bandido morto”, não é de se surpreender que tenhamos tantas mortes decorrentes de intervenção policiais. A investigação e o trabalho de inteligência cedem espaço para o enfrentamento bélico na percepção de como o controle do crime deve ser feito no Brasil, estimulando que as PM, que são as fiadoras da ordem pública, adotem padrões de uso da força que seriam inaceitáveis em democracias consolidadas no mundo.

A questão não é apenas a do abuso individual do policial mas de valorização do combate ao inimigo, mesmo que outros padrões de policiamento pudessem gerar melhores resultados na redução da violência e controle do crime. Esse fato justifica que tenhamos cerca de 6 mil mortes decorrentes de intervenção policial por ano no Brasil, número que, em termos comparativos, é 6 (seis) vezes superior ao dos Estados Unidos. Além disso, o clima de enfrentamento constante e as péssimas condições de trabalho dos policiais brasileiros estão entre os fatores que fizeram com que o número de policiais que cometeram suicídio no Brasil em 2018 (104 casos) fosse maior do que a quantidade que morreu em decorrência de confronto em serviço nas ruas (87).

Mas a responsabilidade não é exclusiva das Polícias Militares. Quando vemos os discursos políticos, por exemplo, de Jair Bolsonaro, Wilson Witzel e Joao Doria, quando de suas eleições, percebemos o estímulo à estratégia “mirar na cabecinha” e de ampliação de unidades especiais de polícia (que a mídia trata incorretamente como “tropas de elite”, o que faz com que os policiais que não fazem parte desta unidade pensem que elas são a referência do ser policial e adotem os mesmos padrões e subculturas) que funcionem no padrão “Rota” e que tirou policiais da Força Tática e do Patrulhamento Territorial por imposição do governador.  Não surpreende o crescimento dos casos de violência policial quando os governantes, por razões eleitorais, defendem polícias mais duras contra o crime.

O Ministério Público, por sua vez, que tem a prerrogativa constitucional do controle externo da atividades policial, tem enorme dificuldade em fiscalizar as Polícias para além do controle concentrado de cada inquérito policial instaurado e, em geral, foca na legalidade da ação individual de cada policial. Não há controle em matéria de tutela coletiva de padrões e procedimentos institucionais das polícias, mesmo após a Resolução CNMP nº 201/2019, que alterou as Resoluções nº 129/2015 e nº 181/2017, ambas do CNMP, com o objetivo de adequá-las às disposições do Direito Internacional dos Direitos Humanos, especialmente à decisão do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Enquanto isso, as Polícias Civis, acabam dependentes do volume de casos de flagrantes enviado pelas Polícias Militares e têm dificuldades para investigar e esclarecer a autoria de crimes, com especial ênfase a de homicídios de autoria desconhecida que demandam a observância de práticas comuns às polícias (isolamento do local do crime, colheita de evidências, custódia de provas técnicas, entre outros). Sem parâmetros comuns ou controle de tutela coletiva por parte do MP, tais crimes têm suas investigações afetadas pela baixa articulação interinstitucional na ponta da linha e pela falta de um projeto institucional para as polícias civis, que como consequência vão sendo sucateadas e relegadas pelos governantes. E o mais grave, o movimento da criminalidade fica, em muitos estados, mais suscetível à cena do crime organizado do que às políticas públicas de segurança. Governos costumam reivindicar méritos pela redução de tais crimes (quem não se lembra dos diversos tuítes de Sergio Moro vangloriando-se da queda dos crimes em 2019 sem, no entanto, apontar o que foi feito e/ou o seu silêncio após a retomada do crescimento dos índices), mas, quando eles sobem, como nos últimos 6 meses (Gráfico 1), as polícias são cobradas sem, no entanto, avançarmos na mitigação dos dilemas de governança impostos pelo pacto federativo e republicano vigente no país.

 

Elaboração do autor

Ao mesmo tempo, diante das pressões e das fragilidades institucionais, uma das expressões mais cruéis e invisibilizadas do racismo brasileiro se manifesta nos números da violência: 75% das vítimas da violenta letal no Brasil são negras. Jovens negros morrem mais do que jovens brancos; policiais negros, embora constituam 37% do efetivo das polícias são 51,7% dos policiais assassinados; mulheres negras morrem mais assassinadas e sofrem mais assédio do que as brancas. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Da mesma forma, faz 3 anos que estamos observando o crescimento dos crimes sexuais, agressões e feminicídios. E, com a Pandemia de Covid-19, há um agravamento da violência doméstica e crescimento ainda maior dos feminicídios. E esse crescimento não se reflete nos registros de ocorrências nas delegacias de Polícia, já que o isolamento social dificulta o deslocamento das vítimas, e coloca a necessidade de criação de novos canais de denúncia e acolhimento para mulheres em situação de violência.

E, para tornar o quadro ainda mais complexo, não há um índice nacional de esclarecimentos de homicídios que balize o planejamento integrado de ações. Levantamento realizado em 2018 pelo Monitor da Violência, parceria entre o Portal G1 com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência indicou que apenas 24,7% dos homicídios, em média, são esclarecidos e encaminhados para o Ministério Público no país, com Unidades da Federação apresentando percentuais ainda mais baixos e indicativos da completa falência da ideia de responsabilização de autores de crimes e violências, conforme gráfico 1. As instituições de segurança pública ficam pressionadas pelo congestionamento de casos na etapa inicial do trabalho policial, quase sempre fruto dos flagrantes em torno de crimes relacionados às drogas, uma vez que a legislação sobre o assunto (lei 11.343/2006), acabou por agravar o quadro de inequidades e falta de métricas que governa a segurança brasileira.

Elaboração do autor

E por falar em lei de drogas, um dos seus mais visíveis efeitos é a explosão da população prisional do país, que em 2019, segundo do DEPEN/MJSP, contava com cerca de 760 mil presos (em mais uma evidência da baixa coordenação e governança da área aqui também não há consenso entre os Poderes Executivo e Judiciário e o Ministério Público, com cada um apresentando um número diferente de presos). Cerca de 1/3 desses presos encontram-se em situação provisória, que é quando ainda não foram julgados ou quando aguardam a decisão sobre eventuais recursos interpostos.  Na impossibilidade de garantir condições mínimas de subsistência aos presos, o Estado, como um efeito colateral perverso da política criminal e penitenciária, acabou por fortalecer as mais de 70 facções de base prisional existentes no país, sendo as mais conhecidas o PCC e o Comando Vermelho, que entraram em guerra em 2016 e fizeram disparar as taxas de mortes violentas em vários estados. Este conflito assume contornos diferentes em cada UF, a depender das parcerias com facções locais, mas provoca um quadro de insegurança e incerteza muito grande.

Mais recentemente, as transferências de lideranças paulistas do PCC realizadas em 2019 e prisão de Fuminho, um dos maiores atacadistas de drogas da América do Sul, em 2020, pela Polícia Federal, parecem indicar uma mudança geracional dentro do PCC e que pode alterar a equação de forças entre as facções de base prisional. Facções estas que tiveram seus negócios afetados pela pandemia e precisaram encontrar novas fontes de financiamento e “capital de giro” para manterem seus pontos de venda de drogas (o tráfico internacional, em um exemplo, foi afetado pela diminuição de voos e pela redução da chegada e saída de mercadorias nos principais portos do país, chegando a faltar maconha para atender algumas grandes cidades como São Paulo).

No plano conjuntural, o sistema prisional brasileiro também tem sido pressionado pela pandemia de Covid-19. Dados do Prision Insider e do Global Prison Trends 2020 revelam que o Brasil encarcera cerca de 7% dos presos do mundo, enquanto registra aproximadamente 5% dos casos de Covid-19 e 4,2% das mortes de presos do planeta. Estes números fazem com que o país tenha o segundo sistema prisional mais afetado pela Covid-19 entre todos os países analisados. O Brasil só perde para os EUA, que respondem por 20,9% da população prisional mundial porém registram 74,4% dos casos de Covid-19 entre presos e 44,3% das mortes de presos do mundo.

Mas o que em tese seria uma notícia positiva pelo fato do país ter, proporcionalmente, taxas de contágio e mortalidade por Covid-19 dentro das prisões inferiores em relação à sua proporção de presos do mundo, tem-se perdido energias de prevenção e controle no debate político, aumentando riscos de rebeliões e reforçando o diagnóstico da baixa integração e articulação entre os diferentes atores e instituições cujas ações impactam diretamente a segurança pública. Ao longo da pandemia, o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN tentou implantar um modelo que, no começo da década de 2000, no Espírito Santo, ficou conhecido como “prisões de lata” e cujos efeitos deletérios são muito maiores do que os benefícios anunciados de separação e isolamento de presos. Da mesma forma, a sensação que o Judiciário estava abrindo as celas das prisões e libertando criminosos perigosos com a aprovação da Recomendação nº 62/2020, do CNJ. Porém, dados compilados pelo próprio CNJ indicaram que a taxa média nacional estimada de pessoas que voltaram a ser presas após deixarem os presídios em razão da pandemia do novo coronavírus e cometerem novos delitos foi inferior a 2,5%.

Em paralelo, o crescimento do poder das Milícias, sobretudo no Rio de Janeiro e no Pará, preocupa pelo fato de elas sinalizarem para a ideia de controle político dos territórios e das populações que neles residem ao mesmo tempo de serem compostas por muitos integrantes e ex-integrantes de forças policiais. Sem controle, as milícias representam um novo e perigoso patamar de violência política e que pouco tem merecido a atenção de autoridades do Poder Executivo e das Polícias. O temor é que, com o noticiário político expondo as ligações dos ex-policiais Fabricio Queiroz e Adriano da Nóbrega, morto pela Polícia da Bahia em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas para a população e acusado de ser o líder de uma das principais milícias do Rio de Janeiro, o “Escritório do Crime”, com a família do presidente Jair Bolsonaro, novas denúncias possam desestabilizar o cenário político-institucional do país.

E por falar em política, outro fator que pressiona os números da segurança pública é a excessiva politização das forças policiais do país. Ao contrário dos integrantes do Ministério Público ou do Poder Judiciário que, caso queiram se candidatar, precisam abrir mão de suas carreiras nestas instituições, a legislação brasileira tem brechas que fizeram com que, entre 2010 e 2018, 7.168 PM disputassem eleições em todo o Brasil sem a necessidade de saírem de suas carreiras – um em cada 58 policiais nas ruas tem ambições políticas —levando em conta que, ao final de 2018, as PMs tinham um efetivo de 417.451 homens e mulheres na ativa). Só se eleitos é que eles precisam se afastar. Do contrário, voltam para as corporações. O problema é que uma vez na política, dificilmente uma pessoa volta disposta a acatar ordens sem maiores questionamentos. Polícia e Política são duas esferas fundamentais da vida pública de uma nação democrática, mas elas não podem ser confundidas ou uma se apropriar da outra para a consecução de seus objetivos.

Um exemplo que demonstra o grau de politização das polícias e os riscos postos por ele é o motim da Polícia Militar do Ceará, em fevereiro, quando em meio a uma negociação salarial, uma entidade liderada por um apoiador do governo Bolsonaro colocou-se contra o acordo acertado entre as demais associações e o governo estadual, do PT, e fez com que, naquele período, cenas de terror e violência tomassem conta daquele estado. E, naquele mês, o Ceará registrou o recorde de 456 homicídios, que ajudou a reverter a tendência de queda nos índices deste crime que estavam sendo observadas entre 2018 e 2019. O levante só terminou após o envio, relutante, de tropas federais pelo Governo Federal e a aprovação, pela Assembleia Legislativa do Ceará, de projeto de lei do governador que proíbe anistias a policiais amotinados.

Demandas legítimas por melhores condições de vida, trabalho e salário dos policiais foram sendo apropriadas por projetos políticos partidários. Porém, em uma evidência de que tais processos sociais não são unidirecionais ou absolutos, o Governo Bolsonaro, que conta com a adesão de parcelas significativas de integrantes das polícias, tem avançado muito pouco na implementação de medidas concretas que favoreçam o todo das corporações policiais e tem preferido evitar concorrências internas ao bolsonarismo, como no caso do desconvite ao Coronel PM Araújo Gomes, que presidia o Conselho Nacional de Comandantes Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, para assumir a SENASP. A Secretaria Nacional de Segurança Pública foi dividida e o Cel Araújo Gomes foi preterido em favor de um outro oficial PM mais ligado ao núcleo de confiança do presidente e com muito menos exposição e ascendência juntos às Polícias Militares estaduais. Isso permite ao Governo manter o controle da narrativa de apoio aos policiais e foi, na minha avaliação, uma forma de evitar o fortalecimento de lideranças que não do presidente, como os ex-ministros Sergio Mouro e Luiz Henrique Mandetta.

 

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Após a morte de George Floyd, movimento “Defund the Police” quer o fim das polícias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/06/10/apos-a-morte-de-george-floyd-movimento-defund-the-police-quer-o-fim-das-policias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/06/10/apos-a-morte-de-george-floyd-movimento-defund-the-police-quer-o-fim-das-policias/#respond Wed, 10 Jun 2020 13:44:03 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/06/manifestações.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1445 Diante das acusações de racismo e violência, cresce nos EUA o movimento de cortar os orçamentos das polícias e transferir os recursos economizados para outras políticas sociais. Para entendê-l0, o Faces da Violência republica artigo de Jacqueline Sinhoretto, da UFSCar, originalmente elaborado para o boletim de análise Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Não só o edifício da unidade policial responsável pela morte de George Floyd foi destruído pelo fogo. O equivalente à câmara municipal de Minneapolis, nos EUA, acaba de aprovar o desmantelamento da polícia. A organização policial dessa cidade acabou.

O orçamento destinado à polícia será, em parte, aplicado no suporte social à comunidade negra para minimizar os efeitos da Covid19, em termos sanitários e econômicos. Outra parte será empregado na reconstrução da polícia em bases comunitárias.

É um novo capítulo da história americana em que os termos dismantle e defund entraram no vocabulário das relações entre polícia e sociedade. Jornais com o New York Times e The Guardian destacam a questão, informam que Los Angeles reduziu o financiamento da polícia e outras cidades estudam fazê-lo[1].

Desde 1980 os investimentos em corpos policiais e tecnologias de policiamento multiplicou-se. As reformas do período visavam a redução de crimes violentos nas cidades americanas. Várias vertentes de reformas concorreram no campo policial, de um lado a tecnificação, com uso de de análise de dados, planificação, sistemas de gestão, fluxos de tomada de decisão, criação de protocolos e reformas na educação policial. De outro, modelos comunitários de policiamento, participação social, transparência, foco nos diferentes públicos e integração com as políticas de assistência social e prevenção. Uma terceira vertente apoiou-se em políticas de tolerância zero, encarceramento massivo, “guerra às drogas”. A militarização das polícias se tornou também crescente, com o uso mais frequente de armamento pesado. Os políticos de direita supervalorizaram a terceira vertente, e a importaram para a América Latina como modelo de polícia que funciona.

Estudiosos da criminologia demonstraram que o declínio das políticas sociais coincidiu com o crescimento das políticas de controle do crime. Menos bem-estar, mais prisão e polícia. O enxugamento do Estado só teve uma exceção. Se a polícia produz mais medo do que segurança, se ela mata, se ela discrimina, se as prisões não ressocializam e não cumprem os direitos civis, isso não se reverteu em questionamento dos métodos, dos objetivos e dos recursos destinados à prisão e à polícia.

Investimentos milionários continuaram a ser revertidos, enquanto o encarceramento em massa passou a ser analisado como um complexo industrial da punição: sua função de lucro e geração de empregos era mais importante do que sua capacidade de reintegrar socialmente os egressos.

Os dados do encarceramento, amplamente analisados, demonstraram seu caráter discriminatório e seletivo. As prisões americanas segregam negros e latinos, sendo a “guerra às drogas” o grande motor do controle social racista. Enquanto isso, a polícia afirmava a efetividade da filtragem racial para o controle do crime: ao mapear as áreas problemáticas, são as comunidades negras as que têm mais problemas, portanto é lá que o policiamento deve se concentrar e o número de abordagens de pessoas negras deve crescer.

Pouco a pouco o policiamento comunitário foi esquecido como base da reforma. Cada vez mais a tecnificação do trabalho policial e a tolerância zero levaram a concentrar a repressão nos bairros negros.

No século 21, a violência declinou nas cidades norte-americanas. Mas a estrutura de repressão baseada na ‘discriminação estatística’ das comunidades negras e latinas não parou de produzir mortes. Entre os países ricos, os EUA têm de longe o maior número de pessoas mortas pela polícia. Os casos se sucedem produzindo resistência. Em Nova Iorque a justiça chegou a proibir a abordagem policial por causa da filtragem racial e dos efeitos da discriminação para as pessoas negras. O movimento #BlackLivesMatter se fortalece ao lutar contra as mortes dos cidadãos negros pela polícia.

O protesto por justiça para Floyd já dura duas semanas. Ganhou apoio para desmantelar e reduzir o financiamento da polícia porque é grande o descontentamento com os resultados do alto investimento. A polícia cresceu demais, os modelos de policiamento que predominaram no campo policial produzem desigualdade racial e brutalidade policial. Hoje a violência da polícia preocupa mais do que a violência do crime.

Vários estados regularizaram o uso e a comercialização da maconha, tornando obsoleto o caro e brutal aparato de “guerra às drogas”. A sociedade evoluiu no tema e as polícias perderam espaço. São crescentes os apelos para a desmilitarização das polícias e aumento de transparência e controle dos abusos.

O punitivismo, acoplado à injustiça racial, chegou ao limite durante a crise da Covid19, expondo os vínculos políticos do aparato tecnológico do policiamento, supostamente neutro, com a opressão racista. Em Minneapolis, a decisão foi dissolver a organização policial dado o seu alto grau de comprometimento profissional e organizacional com o modelo que produz brutalidade policial e desigualdade racial. Uma nota de 20 dólares preocupa a polícia mais do que a proteção da vida quando essa anima um corpo negro. Os protocolos de operação induzem ao uso desproporcional da força, a educação policial e as técnicas de imobilização permitem que a voz que diz não conseguir respirar seja ignorada até seu completo silenciamento.

Pede-se agora menos polícia, mais bem-estar. Pede-se o recuo do protagonismo absoluto da polícia na produção da segurança pública e o repensar profundo das bases que orientam o policiamento. Os sistemas integrados de proteção social são o horizonte da sociedade civil que protesta, exigindo da polícia que consuma menos dinheiro e que repense sua razão de ser. Os recursos devem ser destinados às políticas de suporte social das comunidades negras, políticas redistributivas, na construção da reconciliação e da democracia americana em direção a uma sociedade menos violenta. São os novos ventos do norte a insuflar uma ruptura nas concepções e nos saberes sobre “justiça” e “vida segura”.

[1] Para conhecer mais: https://www.nytimes.com/2020/06/05/us/defund-police-floyd-protests.html, https://www.theguardian.com/us-news/2020/jun/04/defund-the-police-us-george-floyd-budgets, https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/06/07/policia-de-minneapolis-sera-desmantelada-e-reconstruida-camara-municipal.htm

 

Jacqueline Sinhoretto, socióloga, professora da Universidade Federal de São Carlos, coordenadora do GEVAC UFSCar.

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