Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os problemas dos protocolos de abordagem policial https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/os-problemas-dos-protocolos-de-abordagem-policial/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/09/os-problemas-dos-protocolos-de-abordagem-policial/#respond Wed, 09 Jun 2021 13:54:43 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/policia_militar_sp-min-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1787 O detalhe da cena rotineira é o que a torna “natural” ou uma cena “estranha” no Brasil: ser um jovem negro ou um jovem branco.

Gilvan Gomes da Silva*

No dia 28 de maio uma abordagem policial ganhou destaque nas redes sociais e nas manchetes das grandes mídias televisivas e digitais. Em um parque na Cidade Ocidental, em Goiás, um ciclista jovem Youtuber praticava manobras e filmava. Enquanto executava a performance, uma viatura de polícia parou próximo ao local da filmagem e começou uma sequência evolutiva de falas estressantes que pode ser resumida entre ordens para a realização da abordagem, revista e questionamentos do porquê do procedimento. 

A situação evoluiu para falas mais tensas e arma apontada para o ciclista e terminou com o jovem ciclista algemado, mesmo tendo cedido às ordens sem esboçar reação, a não ser o seu questionamento. O detalhe da cena rotineira é o que a torna “natural” ou uma cena “estranha” no Brasil: ser um jovem negro ou um jovem branco. Nas imagens divulgadas, o policial fala energicamente que a ordem é legal e que este é o procedimento. Assim, comecemos pela afirmação da legalidade e dos protocolos policiais quanto à abordagem e revista pessoal. A busca pessoal, a conhecida revista, segundo o Artigo 244 do CPP, é legal quando em flagrante ou com fundada suspeita, isso é, com indícios de crimes. A questão central torna-se o motivo da abordagem com sequência de revista com arma apontada. 

Várias pesquisas realizadas no Brasil já debateram a seletividade durante a abordagem e revistas pessoais. Após o edificante e inspirador trabalho de Silvia Ramos ao analisar as abordagens da PMERJ, outros trabalhos acadêmicos encontraram resultados semelhantes em diferentes regiões do país e em diferentes momentos. A pesquisa realizada em 2009, conduzida pelo Núcleo de estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília, já apontava, entre outros fatores, para questões raciais e territoriais, assim como disciplina do corpo, das ações e das situações eram critérios para a seleção utilizados por policiais da PMDF. 

Em 2014 e em 2019, em várias pesquisas coordenadas pela professora Jacqueline Sinhoretto envolvendo acadêmicos da UFF, UFSCar, da Fundação João Pinheiro em Minas Gerais e da UnB, apontavam para a racialização das relações sociais também se expressa no campo da segurança pública, e, por consequência, nas abordagens policiais. As pesquisas de 2019 constataram que em Minas Gerais, por exemplo, pessoas negras têm 3 vezes mais chance de serem presas que pessoas brancas e 4 vezes mais chance de serem vítima da letalidade policial. Essa taxa de letalidade varia de 3 a 7 vezes em São Paulo. Os dados gerais da pesquisa apontam que há uma visão do potencial criminoso sendo um jovem, negro e pobre.

Todavia, estas diversas situações observadas e analisadas nas pesquisas, em diversas partes do Brasil nas últimas décadas demonstram que o campo de Segurança Pública segue a mesma lógica provocada pela desigualdade estrutural na sociedade brasileiras, pois como já destacava Arthur Trindade Costa, a análise do comportamento policial não pode ser dissociada da análise das estruturas políticas, econômicas, e sociais da sociedade. Entretanto, além das características desiguais desses poderes estruturais, há uma construção jurídica cultural racializada que ontologicamente constitui a formação do campo de controle formal no Brasil e, por consequência, das polícias. Um breve recorte histórico demonstra como que há interligação na lógica seletiva segregadora dos agentes de segurança pública era apoiada em normas que se dissiparam nas práticas cotidianas, saindo do papel e ficando nos atos. 

Como destaca Maíra Zapater sobre a herança legal e sobre as cicatrizes jurídicas, a criminalização de comportamentos de forma seletiva está presente em vários artigos do Código Criminal do Império de 1890, no Decreto nº 847, que regulamentava ações de cunho moral, continuou no Decreto-Lei nº 3.688/41 que traz em seu artigo 59 que “entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita [gripo meu]” seria passível de prisão. O decreto de dois anos depois da proibição legal da escravidão regulamentava ações de pessoas que não ocupam mais o trabalho nas lavouras e nas áreas urbanas, pois havia uma política de embranquecimento do país em curso com estímulo à imigração de europeus do final do Século XIX e início do Século XX. A mendicância também foi tipificada como ato ilegal, revogado somente em 2009. Da mesma forma que jogar Capoeira e Condutas de embriaguez foram tipificadas como ato passíveis de prisão. Flanar pela cidade, divertir-se ou reunir-se para rodas de samba também eram proibidos, pois seriam configurados como prova de vadiagem, como lembra Lira Neto no livro História do Samba. É este diapasão das condições de subsistência e de moralidade que orientava a permissão de quais grupos poderiam participar das atividades da cidade. Os atos tipificados como ilegais eram atos nitidamente das pessoas negras, sejam pelas suas características sócio culturais, sejam pelas condições econômicas, políticas e jurídicas.

Assim, tanto as ações de controle pelos agentes do Estado de 1890 quanto a de 28 de maio de 2021, assim como diversas outras analisadas nas duas décadas do século 21 tem um fio condutor que orienta e que outrora estavam legalmente fundamentadas e que hoje, mesmo na ilegalidade, extrapola os Protocolos Operacionais Padrões porque as estruturas sociais são tão semelhantes quanto a do Brasil Império, com as mesmas permissões e proibições aos mesmos grupos de terem direito ou não à cidade, à cidadania e, em muitos casos, à vida.

 

* 2º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB).

 

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Na mesma edição, leia também “O Enfrentamento ao Tráfico de Armas como Política Pública” e “A reincidência criminal“.

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As mulheres nos quartéis também sofrem violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/25/as-mulheres-nos-quarteis-tambem-sofrem-violencia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/25/as-mulheres-nos-quarteis-tambem-sofrem-violencia/#respond Tue, 25 May 2021 14:05:10 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/fotofaces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1758 Casos recentes de assédio e importunação sexual contra profissionais de segurança em suas corporações revelam a necessidade de ampliar o debate sobre o tema no país

Camila Paiva*

Ser mulher no ambiente militar não é nada fácil. Afinal, as instituições militares foram feitas por homens e para os homens. Nesse sentido, as mulheres muitas vezes são vistas com “invasoras” desse espaço, não sendo incomum ouvir que ali não é o lugar delas. Se, em uma sociedade machista e patriarcal, que vê o corpo da mulher como propriedade do homem ou algo público, já é difícil para a mulher lidar com certas situações, imaginem dentro de uma corporação composta por apenas 10% de mulheres. Some-se a isso uma estrutura rígida hierarquizada, cheia de regulamentos, que coloca um superior hierárquico numa posição de poder absoluto acima do seu subordinado, e o resultado não poderia ser outro: casos frequentes de assédio e importunação sexual dentro dos quartéis.

Acompanhamos o caso recente da Soldado Jéssica, da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que foi assediada sexualmente pelo seu Comandante de Batalhão, a maior autoridade em seu local de trabalho. Casada e com filhos, ela negou as investidas e, em consequência disso, enfrentou um terror de perseguição, ameaças, humilhações e violência psicológica indescritíveis. Jéssica saiu de sua terra natal para São Paulo em busca do sonho de ser PM, mas se viu dentro de um pesadelo. No final, teve que se afastar do trabalho, inicialmente por dispensa médica em virtude de sua saúde mental ter sido destruída por seu assediador. Mas, sem apoio institucional nenhum, foi além e entrou de licença por dois anos, tendo seu salário suspenso em razão de ser vítima de um crime. Existe alguma lógica nisso? Claro que não, e, como se não bastasse, a única saída que passa pela cabeça dela agora é sair da corporação pela qual tanto lutou para fazer parte, abrindo mão não só de sua carreira, mas também do próprio sustento.

A situação é extremamente revoltante, mas é uma realidade que grita dentro da caserna. Ao mesmo tempo, é um assunto proibido, um tabu, afinal precisamos preservar a “imagem das Instituições”. Mas, diante disso, quem está preservando nossas profissionais? Zelar pela imagem da corporação é, acima de tudo, coibir e punir com rigor qualquer tipo de prática nesse sentido, é defender as mulheres que estão ali arriscando suas vidas para proteger a sociedade e que não estão sendo protegidas. Mais do que nunca, precisamos encarar que esse problema existe e desenvolver políticas institucionais urgentes para combater o assédio sexual dentro dos muros dos quartéis.

Ano passado aconteceu um episódio na Polícia Militar do Ceará, em que um sargento postou um áudio em um grupo de Whatsapp dizendo que as mulheres nos quartéis deveriam servir exclusivamente para “desestressar ” os homens, com o cunho sexual e pejorativo. A mensagem prosseguia com o sargento dizendo que era muito estressante ser policial militar para o homem, e que as mulheres militares deveriam ficar esperando eles retornarem ao quartel para ficar mais uma hora com um, depois meia hora com outro, sugerindo a prestação de favores sexuais por parte delas. Tomada por extrema indignação, fiz um vídeo reproduzindo o referido áudio e compartilhei nas redes sociais, servindo de gatilho para várias mulheres que o assistiram. O resultado foi uma enxurrada de mais de 300 depoimentos em minhas redes sociais de mulheres relatando os casos mais absurdos possíveis de machismo, assédio e importunação sexual sofridos dentro da sua corporação; mulheres que foram aposentadas como loucas, pacientes psiquiátricas incapazes de continuar no serviço ativo; mulheres que foram estupradas, perseguidas, ameaçadas, transferidas, sofreram aborto, perderam o emprego, tentaram suicídio e todo tipo de situação bizarra decorrente dessa prática.

Para tentar enfrentar esse tipo de horror, criamos um movimento nas redes sociais chamado Somos Todas Marias, em que reproduzimos muitos desses relatos para que o poder público e a sociedade tomassem ciência da gravidade dessa realidade e que assim buscássemos uma solução efetiva para tal. Que a repercussão do caso da Jéssica venha fortalecer essa luta e inspirar outras mulheres a não se calarem e a denunciarem esses criminosos. Não descansaremos enquanto nossas mulheres e profissionais de segurança pública possam também sentirem-se seguras em seu ambiente de trabalho, sem qualquer tipo de molestação, e com o respeito e a vigilância de toda a nossa sociedade.

*Tenente-coronel do Corpo de Bombeiros Militar de Alagoas e Presidente da Comissão Mulher Segura da Secretaria de Segurança Pública de Alagoas.

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Na edição desta semana, leia também “Ciência e erro na investigação policial” e “Uma milícia no Rio Grande do Sul?”.

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Militarização da Segurança Pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/#respond Thu, 18 Mar 2021 19:57:45 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/bolsonarofaces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1696 Polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de Bolsonaro, enquanto os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e obtiveram conquistas políticas

Renato Sérgio de Lima*

Circulou, na semana que passou, um áudio atribuído a um Policial Rodoviário Federal que acusa o Governo de Jair Bolsonaro de levar adiante um “Lockdown Policial” cujo objetivo, na prática, seria o enfraquecimento das polícias civis, federal, rodoviária federal, penal federal e penais estaduais. Até por isso, para o autor do áudio, há em curso um adiantado plano de militarização da segurança pública no Brasil e de destruição das forças civis de segurança.

Para sustentar a sua hipótese, o autor do áudio argumenta que o governo tem privilegiado as carreiras militares federal e estaduais em detrimento das demais forças policiais. Ele cita a Reforma da Previdência, que teria imposto regras de transição mais severas para as polícias de natureza civil; a Lei Complementar 173, que proíbe reajustes salariais durante a epidemia de Covid-19; e a PEC 186, que adota medidas permanentes e emergenciais de controle do crescimento das despesas obrigatórias e de reequilíbrio fiscal. Ele também menciona a proposta de Reforma Administrativa como um ponto de alerta.

A meu ver, o áudio toca em pontos relevantes da ação do governo no campo da segurança pública e, concordo, há uma clara predileção pelas forças militares federal e estaduais. Mas creio que o cenário seja um pouco mais complexo. Ao que tudo indica, estamos presenciando um movimento de reconfiguração do associativismo policial e um rearranjo entre as lideranças da área. O governo Bolsonaro estaria atuando para eliminar dissonâncias entre sua principal base eleitoral e usa as pautas policiais para se contrapor às demandas liberais de Paulo Guedes pela manutenção do teto fiscal sem, no entanto, romper com o “mercado”.

Assim, entendo que não há o rompimento propriamente dito que foi anunciado pela imprensa na semana passada. É fato que as polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de poder de Jair Bolsonaro, não obstante existir um nível grande de convergência ideológica mesmo entre elas. É um sutil paradoxo que precisa ser compreendido pelos analistas da área para que não sejamos abduzidos pelo jogo de marcação.

Se partirmos do reconhecimento desse paradoxo, veremos que há um contraponto de sobrevivência das lideranças sindicais civis tradicionais dado que os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e conseguiram algumas conquistas políticas – por mais que, em termos de carreiras, também não tenham avançado em nada substantivo. Ou as lideranças civis se reposicionam ou são engolidas e superadas por novos atores mais alinhados às expectativas das bases policiais.

Não à toa, de modo sagaz, as críticas mais pesadas partiram de entidades relativamente novas no jogo associativista, que são a UPB e a OPB (Ordem das Polícias do Brasil). Se o rompimento fosse real, as próprias associações individuais estariam assumindo o protagonismo, mas efetivamente elas estão funcionando como anteparo de mitigação e negociação; elas aproveitam a repercussão e reabrem canais de negociação.

Isso não significa que não existam insatisfações crescentes e/ou reclamações pertinentes sobre o abandono de demandas corporativistas. Um exemplo é a explicitação, por parte da Associação de Delegados da Polícia Federal, de não ter nenhum canal de diálogo com o Ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública. No entanto, o embate parece ser mais sobre capital político e prestígio de ser ouvido do que sobre o endereçamento de demandas históricas de reforma da arquitetura da segurança pública.

Agora, no que diz respeito às polícias militares, que respondem por mais de 60% dos efetivos policiais do país e seus integrantes são os que mais têm aderido ao projeto de poder do atual presidente, adotaram uma tática diferente. Nesse caso, a opção foi por fortalecer as demandas das corporações, representadas pelos seus Comandantes Gerais, que negociam diretamente com o governo um reequilíbrio de forças e um projeto de autonomização vendido como de blindagem aos usos políticos.

As demandas associativistas estão em segundo plano e o que vale é a lógica militar clássica. O maior exemplo é o Projeto de Lei Orgânica das PM, que data de 2001, mas que na última segunda (16), teve um novo relator designado, o deputado do Capitão Augusto (PL/SP) que deve apresentar o substitutivo que está sendo negociado com o governo o mais rápido possível. Vale lembrar que o nome do Capitão Augusto já circulava como o relator ideal desde o início de 2020 e fazia parte de um pré-acordo com o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

Seja como for, o conteúdo do PL é extremamente concentrador de poderes nos oficiais das Polícias Militares e pouco avança sobre condições de vida e trabalho dos policiais militares. O foco das minutas de substitutivos que estão circulando está muito mais dedicado ao desenho de estratégias de autonomização das corporações dos governos estaduais e dos mecanismos de controle civil.

Por tudo isso, a novidade das pressões em torno do “rompimento” dos policiais com o governo não está no seu valor de face, ou seja, num fato indiscutível. O que estamos vendo é um movimento de pressão que visa reconfigurar o campo para que os policiais passem a fazer uma defesa inquestionável do governo ou, caso contrário, para que lideranças civis que atuam na chave sindical de modo mais isento e crítico sejam substituídas por novos e mais alinhados nomes. Esses já aparecem como os salvadores das categorias e devem rivalizar com nomes que há muito ocupam posições nas associações.

 

*Sociólogo e Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Lava Jato: ação estratégica em análise pelo STF” e “O Rei da Inglaterra não pode entrar na cabana do miserável”

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A proposta de reforma policial afeta o federalismo* https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/12/a-proposta-de-reforma-policial-afeta-o-federalismo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/12/a-proposta-de-reforma-policial-afeta-o-federalismo/#respond Tue, 12 Jan 2021 16:49:02 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/tanrg_abr_26042018_0438_1-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1629 Está em discussão no Congresso Nacional um substitutivo ao projeto de Lei 4363/2001, visando alterar a organização das Polícias Militares. A proposta altera fundamentalmente a estrutura do sistema federativo brasileiro, uma vez que reduz drasticamente o poder dos governadores para controlar as polícias militares estaduais. Como agravante, esta discussão ocorre num contexto em que o presidente Jair Bolsonaro, que têm significativo apoio entre policiais militares, trava disputas políticas com governadores em diversos estados do Brasil.

 

Arthur Trindade M. Costa**

Não é de hoje que se discute a necessidade de atualizar a legislação que organiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros, regidas ainda por um decreto-lei da ditadura de 1969. Nesses mais de 50 anos de vigência Decreto Lei 667/69, o país passou por significativas mudanças sociais e econômicas. No plano político, o regime militar deu lugar a um novo regime democrático conhecido como Nova República.

Por este motivo diversos projetos de lei têm sido apresentados para reorganizar as polícias. O atual projeto substitutivo, que foi elaborado com ajuda do Conselho Nacional dos Comandantes-Gerais das PMs e dos Corpos de Bombeiros, conta com apoio do governo federal e de algumas entidades de classe como a Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais.

O projeto diminui drasticamente os poderes de governadores sobre o comando das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros, uma vez que cria uma lista tríplice para a escolha de comandantes-gerais. O mandato dos comandantes seria praticamente fixo, pois os governadores teriam que justificar a exoneração do comandante-geral. Na prática, além de diminuir o poder dos governadores, o projeto acentuará ainda mais a politização dentro das corporações, já que haveria disputa pela eleição para a lista tríplice.

No que se refere às carreiras, o projeto apresenta mudanças significativas. O texto prevê a criação da patente de general, tal qual nas Forças Armadas. Seriam criadas três novas patentes: brigadeiro-general, major-general e tenente-general. . É importante lembrar que, devido a brechas na legislação, em muitos estados há mais coronéis na ativa do que a quantidade prevista no quadro de efetivo. Nesses estados não faltam generais, mas sobram coronéis.

O projeto permitirá que militares indiciados em inquéritos policiais ou réus em processos possam ser promovidos. Também está prevista a promoção por bravura desde que seja comprovado risco real da própria vida. Além disso, será criado o quadro de oficiais e praças temporários. Na prática, os policiais afastados por corrupção poderão ser promovidos. A ideia de promoção por bravura pode se tornar em um incentivo a violência policial.

O substitutivo traz várias outras mudanças. Dentre elas estão previstas a equiparação salarial dos policiais militares do Rio de Janeiro e dos ex-territórios com os militares do Distrito Federal; alterações na organização e competências da justiça militar e a ampliação das competências do Conselho Nacional de Comandantes Gerais de Polícia Militar. O texto é bastante detalhista e prevê a padronização das cores das viaturas e dos uniformes. Ou seja, os governadores sequer poderiam opinar sobre a cor do fardamento das polícias.

O projeto tem importantes desdobramentos econômicos e jurídicos. Mas é no campo político que a proposta terá maior impacto. Se o projeto substitutivo for aprovado na forma como está, haverá uma significativa mudança no sistema federativo brasileiro.

Um traço marcante do federalismo brasileiro é a alternância entre períodos de centralização e descentralização. Nos períodos autoritários – Estado Novo e Regime Militar – houve grande concentração de poderes políticos e de funções administrativas nos governos federais. Nos demais períodos, observou-se um federalismo altamente descentralizado, no qual os estados guardaram grande autonomia política.

As polícias, embora um pouco ausentes das discussões sobre a federação brasileira, sempre foram instituições centrais para pensar as autonomias estaduais ou a concentração de poderes no governo federal. Ao longo da história republicana brasileira, o sistema policial brasileiro acompanhou as oscilações da federação. Ora as polícias estavam submetidas ao poder central, ora significavam a garantia da liberdade das elites políticas estaduais.

Durante o Estado Novo (1937-1945), as polícias estaduais foram controladas pelo governo federal. A Polícia Civil do Distrito Federal, subordinada ao Ministro da Justiça, era encarregada de controlar as demais policiais civis estaduais. Cabia ao Ministro da Justiça aprovar as indicações de Diretores-Gerais. A Constituição de 1934 tornou as Polícias Militares “forças auxiliares” controladas pelo Exército que passou a nomear seus comandantes. Desta forma, todo aparato policial foi posto sob o controle direto de Getúlio Vargas.

Durante o regime militar (1964-1985), o aparato policial esteve sob controle do Exército. As Forças Públicas foram extintas e seus efetivos incorporados às polícias militares, que passaram a ser as únicas forças policiais destinadas ao patrulhamento ostensivo das cidades. Em 1967 foi criada a Inspetoria-Geral das Polícias Militares do Ministério do Exército (IGPM), destinada a supervisionar e controlar as Polícias Militares Estaduais. Cabia à IGPM aprovar a nomeação dos Comandantes Gerais.

Com o fim do regime militar e a transição política, esse quadro voltou a ser alterado. A Constituição de 1988 assegurou que as polícias civis e militares estão sob o controle dos governadores. Entretanto, ficou estabelecido que a sua organização e funcionamento são regulados por legislação federal. Na prática, os governadores recuperaram a prerrogativa de nomear os comandantes e chefes das polícias, mas lhes foi vedada a possibilidade de reestruturar individualmente o aparato policial.

Discutir a reorganização das polícias militares é fundamental. Mas é preciso ter muita cautela para não desequilibrar a federação brasileira. Afinal de contas, o sistema federativo é um dos principais mecanismos de freios e contrapesos da democracia. As aventuras autoritárias sempre começam pelo controle das Polícias e das Forças Armadas. Foi assim que aconteceu na Venezuela, onde a reforma policial de 2006 colocou as 24 polícias estaduais sob controle do Presidente da República, além de criar outras 99 polícias municipais, também sob controle do governo bolivariano.

 

*Artigo inédito da edição 71 do Fonte Segura, que vai ao ar nesta quarta-feira, dia 13/01.

 

**Arthur Trindade Maranhão Costa é Professor da UnB, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e editor do Fonte Segura.

 

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O canto da sereia que pode levar a PM ao descrédito https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/12/01/o-canto-da-sereia-que-pode-levar-a-pm-ao-descredito/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/12/01/o-canto-da-sereia-que-pode-levar-a-pm-ao-descredito/#respond Mon, 02 Dec 2019 01:12:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/12/15542629375ca42b995a8a0_1554262937_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1201 A Prefeitura de São Paulo registrou, no primeiro semestre de 2019, 9.457 reclamações de barulho na cidade, incluindo os pancadões. Isso é equivalente a 52 ocorrências por dia. No distrito de Vila Andrade, onde fica localizada a favela de Paraisópolis, foram registradas apenas 60 reclamações neste mesmo período, o que é pouco frente ao total da cidade e é emblemático da desconfiança e do temor dos seus moradores em relação ao Poder Público.

E não à toa, a ação policial injustificável da madrugada deste domingo (1), que inacreditavelmente bloqueou saídas e encurralou participantes do baile funk, é uma daquelas ações que nos fazem entender as razões para o descrédito da população com as instituições públicas. Em nenhuma hipótese, uma ação policial que, para prender dois fugitivos, dispersa com brutalidade e violência uma festa com 5 mil participantes pode ser vista como técnica ou moralmente correta.

A Polícia Militar de São Paulo precisa apurar com máxima celeridade, transparência e rigor a sequência dos acontecimentos e a cadeia de comando de uma operação que, até aqui, fugiu de todos os padrões de excelência que marcam a corporação. Não é possível transigir com o descontrole da tropa empregada na operação.

Enganam-se as pessoas que imaginam que a ação visou a manutenção da ordem e louvam a morte de 9 pessoas nas redes sociais e nos comentários dos portais de notícias. A ação contrariou recomendações contidas em vários Manuais de Controle de Distúrbio Civil para que, na dispersão, é necessário controlar o fluxo da multidão e sempre deixar rotas de fuga desobstruídas, para que pisoteamentos e outras tragédias sejam evitadas  (a versão vigente de SP é classificada como sigilosa pela PMESP, mas a de 1997, disponível na web, também corrobora tais recomendações).

E, mais, no Controle de Distúrbios Civis (CDC), tropas de choque sejam acionadas e que o policiamento territorial não fique no primeiro plano da operação. Os vídeos que estão circulando mostram policiais armados, sem escudos e no meio da multidão. A chance de confrontos violentos é sempre maior, como acabou ocorrendo. Diante de uma perseguição que acabou enveredando para uma ação de CDC com 5 mil pessoas, em termos de ordem pública, a medida mais adequada teria sido ter desmobilizado a equipe envolvida e acionado retaguarda aérea e pedido de apoio da tropa de choque.

A investigação que foi anunciada pelo Governador João Doria deve buscar saber o que de fato ocorreu e quem autorizou esta ação. Nada justifica o que ocorreu e não é saudável para a corporação tentar minimizar os acontecimentos ou punir apenas os policiais que estavam na ponta.

A Prefeitura de São Paulo, na contramão da transparência, não permite mais buscas no campo de observações das reclamações do SP156, mas, usando dados de 2015 e 2016, o mapa abaixo mostra que pancadões fazem parte da vida na cidade e que, se plotarmos as unidades da PMESP, teremos que tais festas acontecem próximas aos Batalhões e Companhias da PM.

 

Ou seja, a polícia historicamente sabe e monitora quando estas festas acontecem e tem todas as condições de planejar operações e protocolos de contingência que evitassem uma ação como a desta madrugada, em Paraisópolis. Se não o fez, errou feio. E errou ainda mais sabendo que uma ação como esta jamais ocorreria na dispersão de uma festa em um bairro “nobre” da cidade e/ou em um clube de elite (lembremos a dispersão do Carnaval na Vila Madalena que, mesmo com episódios de confrontos, todos os protocolos são seguidos).

A experiência acumulada com o controle das manifestações desde 2013 é exemplo de que é possível fazer diferente.

É verdade que polícia sozinha não resolve o problema dos pancadões, mas não podemos aceitar, como nos alertou Thiago Amparo na Folha de S. Paulo, a naturalização da truculência. Paraisópolis convive com os pancadões sem nenhuma resposta mais efetiva do Poder Público para a oferta de espaços de convivência pacífica.

Na toada de populismos autoritários, a ação destrambelhada em Paraisópolis acontece dias depois do Governador João Doria publicar a sua Política Estadual de Segurança Pública sem qualquer meta de controle de uso da violência por parte das polícias. Por tudo isso, a PMESP deve evitar o canto da sereia do tempo social e não pode se sentir autorizada a abandonar o investimento de décadas no profissionalismo e na supervisão da atividade policial.

A Força Pública se constrói com confiança e eficiência democrática; não com demagogia e truculência.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Polícias Militares têm 32,5% de defasagem entre efetivos existentes e previstos; 10 poderiam reduzir postos de coronéis https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/10/policias-militares-tem-325-de-defasagem-entre-efetivos-existentes-e-previstos-10-poderiam-reduzir-postos-de-coroneis/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/10/policias-militares-tem-325-de-defasagem-entre-efetivos-existentes-e-previstos-10-poderiam-reduzir-postos-de-coroneis/#respond Sun, 10 Nov 2019 15:37:13 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/15343431065b7437c249881_1534343106_3x2_md-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1160 Mesmo com 32,5% de defasagem entre efetivos existentes e previstos nas PM do país, dados revelam que existem distorções na gestão das Polícias Militares do país que priorizam o topo da carreira das polícias em prejuízo ao trabalho na ponta da linha. Simulação do Boletim Fonte Segura (clique aqui), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sugere que ao menos 10 Unidades da Federação poderiam reduzir o número de postos de coronéis PM hoje preenchidos. Apenas a PM de São Paulo mostrou-se alinhada ao modelo de gestão que equilibra alocação entre oficiais e praças.

 

O Brasil está diante de uma série de desafios macroeconômicos, sociais e de propostas de reforma da sua máquina pública. Falar de reformas modernizantes é um dos mantras atuais, independente do sentido que se queira dar à modernização pretendida e/ou do espectro ideológico dos diferentes atores e instituições postas no debate público. Porém, na segurança pública, essa discussão é quase sempre interditada e carente de dados que ajudem a traçar cenários e avaliar custos e benefícios.

Prova disso é que quase toda a legislação e as normas que organizam o funcionamento das instituições de segurança pública no país são anteriores à Constituição de 1988, que até hoje não foi devidamente regulamentada. Como já extensamente explorado, a Lei que criou a figura do Inquérito Policial (com mudança em 2013 que foca nas prerrogativas dos delegados de polícia e não no fluxo de trabalho), que é a forma de traduzir um fato social em um procedimento formal de investigação e tratamento judicial, é de 1871; o Código Penal é de 1940 (reformado em sua parte geral em 1984); O Código de Processo Penal é de 1941; a Lei de Execução Penal é de 1984; e, por fim, a  norma que organiza as Polícias Militares, conhecida como R200, é de 1983 (uma nova versão está sendo negociada entre um grupo de Oficiais e o Governo Bolsonaro).

Esses são apenas alguns exemplos da dissonância entre teoria e prática que sobrecarregam a atividade policial e que tornam o cotidiano dessas corporações bastante complexo e dotado de uma baixa capacidade de governança, coordenação e supervisão. Não à toa, as propostas legislativas em curso (pacote dos ministros Sergio Moro e Alexandre de Moraes, entre outros) evitam tocar nos aspectos administrativos da área e optam por caminhar na chave das respostas penais e processuais penais. Pouco se fala de carreiras, mecanismos de supervisão e custo-efetividade de padrões de policiamento e/ou condições de trabalho para os cerca de 600 mil policiais brasileiros.

Em um quadro que tem que lidar com quase 160 milhões de atendimentos das polícias militares todos os anos, cada corporação, de acordo com a sua cultura organizacional e/ou condições fiscais e políticas da Unidade da Federação ao qual está subordinada, decide qual o melhor modelo de gestão e administração de modo bastante autônomo; elas são, em várias UFs, as responsáveis pela gestão de suas próprias folhas de pagamento, atribuição que mesmo as Polícias Civis não têm.

A autonomia das Polícias Militares em si não é ruim. O problema é que, da forma como a arquitetura institucional da segurança pública do Brasil está desenhada, essa autonomia pode ser excessiva se mecanismos de controle e supervisão não forem efetivos e independentes. A boa teoria de Estado demonstra que accountability (transparência e prestação de contas) é a melhor forma de se evitar o Leviatã, ainda mais no seu braço armado e militarizado.

Seguindo essa premissa, o Faces da Violência publica dados do Fonte Segura, que obteve junto à Inspetoria Geral das Polícias Militares do Exército Brasileiro (IGPM/EB), via Lei de Acesso à Informação, vários dados de 2018 que, a partir dessa edição especial, começa a analisar.

Se é importante destacar que os dados da IGPM/EB são os únicos atualizados (O Ministério da Justiça e Segurança Pública não divulga sua pesquisa “Perfil das Instituições de Segurança Pública” desde 2017), também é importante ressaltar que eles apresentam problemas que deveriam ser objeto de revisão. Os dados da IGPM/EB indicam, por exemplo, uma previsão legal de 15 coronéis PM (topo da carreira nas PM) no Rio Grande do Norte. Porém, uma pesquisa na legislação estadual mostra que a previsão correta é de 21 coronéis PM. Já no Ceará ocorre situação inversa, ou seja, há a previsão legal de 25 coronéis PM e a IGPM indica uma previsão de 27 cargos desta natureza.

Seja como for, considerando que se trata de uma fonte oficial, os números fornecidos foram analisados e um primeiro e exploratório estudo foi produzido. Nele, diante da multiplicidade de arranjos organizacionais, os dados brutos são apresentados e as análises não partiram de nenhum cenário ideal, mas da média da própria realidade nacional. Assim, os resultados revelaram distorções mas também demonstraram que nos falta estudos de impacto mais detalhados sobre qual modelo de polícia militarizada é mais aderente aos requisitos e funções fixadas pela Constituição.

Essa é uma discussão em aberto. As Polícias como um todo e as militares em particular detêm mais poder coercitivo do que as Forças Armadas, pois só as primeiras são autorizadas a agirem na manutenção da ordem de plano e sem convocação de um dos Poderes da República em território nacional. E é por isso que é tão importante olharmos para as suas opções político-institucionais e para a forma como estão organizadas.

De acordo com dados obtidos junto à Inspetoria Geral das Polícias Militares, órgão do Exército Brasileiro, as PM do país contavam, em 2018, com um efetivo total de 417.451 pessoas. Se considerarmos os efetivos fixados pelas diferentes leis estaduais, essa quantidade de policiais militares representa um déficit de 32,5% em relação aos 618.556 policiais previstos pelas Leis (figura 1)

O gráfico 1 revela também que, se desagregarmos o efetivo por carreiras e patentes, vamos verificar que o déficit de 32,5% é médio, pois entre os praças (cabos e soldados), o déficit é maior ainda, da ordem de 38,1%. Entre os oficiais, o déficit seria de 27,8% e, entre os suboficiais (subtenentes e sargentos), de 17,9%. Porém, esses valores são apenas parte da questão, exigindo que sejam considerados aspectos subnacionais e se discuta os critérios adotados para a fixação dos efetivos pelas referidas leis.

Segundo o gráfico 2, todavia, não bastassem essas distorções entre os postos intermediários de supervisão policiais, quando observamos os dados referentes ao posto de Coronel PM, topo da carreira de oficiais PM, iremos notar que várias Unidades da Federação estão privilegiando o topo da carreira, com casos em que a quantidade existente é superior até mesmo ao limite legal.

Esse não é um padrão para todos os postos de oficiais, mas bastante realçado entre os Coroneis PM. 14 Unidades da Federação possuem, segundo os dados da IGPM/EB, mais coroneis PM ativos do que o limite fixado pelas legislações locais. São elas: Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia e Sergipe.

Entretanto, proporcionalmente, 4 UF chamam bastante atenção. Rio de Janeiro tem o maior número absoluto de coronéis na ativa do Brasil (104) e 33% mais postos ocupados do que os previstos na legislação. Amazonas e Rio Grande do Norte têm 50% mais coronéis ativos do que o limite previsto (Os dados do RN fornecidos pela IGPM são diferentes daquele da legislação loca, que prevê 21 coronéis PM, ou seja, se este número fosse o adotado, o estado teria 42,7% mais postos ativos de coronéis do que o previsto e não 50%). Pará tem um percentual ainda maior de coronéis da ativa, com 75,7%. Mas é Rondônia que supera todas as UF e, proporcionalmente, tem 77,8% mais postos ativos do que previstos.

Várias são as explicações para este fenômeno, mas, objetivamente, o que eles representam na gestão das PM hoje no país não é consenso. Há distorções que priorizam o topo da hierarquia policial militar que precisariam ser mais bem avaliadas e novos modelos de gestão adotados.

Isso porque, nesse momento, não apenas o R200 está sendo rediscutido. O Congresso está discutindo a adoção do termo circunstanciado pelas PM, carreira única, ciclo completo e outras soluções para modernizar as polícias no país. Mas, se não considerarmos as estruturas vigentes, dificilmente avançaremos. Há uma concentração de poder real que deve ser refletida, até para a formulação de novos planos de cargos e salários e programas de valorização profissional.

Na prática, com o modelo vigente, mudanças que não foquem em mecanismos de coordenação e governança e em critérios objetivos de controle externo, monitoramento e avaliação só concentrarão poder nas mãos de um pequeno número de profissionais, com quase ou nenhuma contrapartida na qualidade do serviço prestado à população, já que as UF com as estruturas mais verticalizadas não necessariamente são as com menores índices de criminalidade.

Em outras palavras, reformas substantivas virão quando mecanismos de supervisão, controle e transparência estiverem valorizados e implementados, com o uso de novas tecnologias e com a participação da sociedade e de outros Órgãos de Estado.

Veja a íntegra do estudo em https://fontesegura.org.br/news/

 

 

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Os reacionários da política e o DNA policial https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/10/20/os-reacionarios-da-politica-e-o-dna-policial/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/10/20/os-reacionarios-da-politica-e-o-dna-policial/#respond Sun, 20 Oct 2019 21:12:19 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/Barro-Branco-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1134 Com Alan Fernandes. Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo e Doutorando na FGV-EAESP

O Brasil tem assistido um forte movimento de politização das suas polícias, com vários de seus integrantes optando por deixarem suas carreiras para trilharem o mundo da política partidária e eleitoral. Se isso traz, em um primeiro momento, a sensação de que demandas históricas das instituições policiais terão voz e vez nos Poderes Executivo e Legislativo, é fato que também traz tensões sobre papéis e regras de conduta que as polícias devem perseguir.

Em termos ideológicos, como nos lembra o criminólogo inglês Robert Reiner, um dos mais respeitados estudiosos sobre polícia, evidências em vários lugares no mundo mostram que há, por questões históricas e socioeconômicas, uma maior propensão de policiais aderirem às pautas conservadoras e, por isso mesmo, é até esperado que os políticos egressos das fileiras policiais sejam majoritariamente desse espectro político-ideológico.

O problema é que, temos notado que a agenda conservadora tem sido confundida, em muitos casos, com uma agenda reacionária e de apologia à violação de direitos fundamentais. Isso não é ser conservador, mas é ser cúmplice com a banalização da violência e das péssimas condições de vida e trabalho a que são submetidos os policiais brasileiros.

O DNA do policial é, aqui ou em outras democracias, o de proteger o cidadão e garantir que ele possa usufruir seus direitos, sem distinções de classe, renda, raça ou qualquer outra clivagem de identidade.

Sabemos, entretanto, que as concepções dos sentidos do trabalho de polícia ostensiva, que, no Brasil, é realizado pela Polícia Militar, são alvos de disputas históricas e que têm muito a ver com a formação do Estado Nação e a ideologia da segurança interna e de defesa nacional.

Tomando São Paulo como referência, as discussões ocorridas entre as décadas de 40 e 80 transitaram entre a adesão da PM a uma lógica militar, que seria refratária ao emprego da corporação às missões ligadas ao policiamento. Posteriormente, com a redemocratização, novos elementos compuseram essa disputa, com as discussões sobre a aproximação da Polícia Militar à promoção e defesa dos Direitos Humanos.

Essas tensões se intensificaram em relação à formação dos Policiais Militares, em especial de sua elite dirigente, cuja formação funciona desde o início do século passado, no que hoje se conhece por Academia de Polícia Militar do Barro Branco, responsável por ministrar o antigo Curso de Formação de Oficiais.

Em meio a um quadro em que o Brasil experimenta um ciclo de revalorização do papel das Forças Armadas na formação das Polícias Militares, é interessante relembrar que brigas entre os quadros dirigentes da própria escola, transferências e mudanças curriculares são o retrato das constantes disputas entre variados grupos que disputaram, internamente, a hegemonia intelectual da formação policial, conforme nos aponta os trabalhos de Ênio Antônio de Almeida.

Entre avanços e retrocessos, a Academia do Barro Branco, e por consequência, a própria Polícia Militar, vem paulatinamente se posicionando no universo acadêmico como uma instituição que busca promover que suas missões constitucionais, definidas como o exercício da polícia ostensiva e da preservação da ordem pública, se deem dentro de uma racionalidade política, em que estão presentes os princípios da eficácia e eficiência, em um contexto em que a democracia é a base dos arranjos político-institucionais sobre o qual se assenta o papel do Estado.

Porém, considerando que o ensino policial é uma forma de moldar a instituição ao projeto estratégico que a move, que no caso segue os comandos da nossa Constituição, não é surpresa vermos que os modelos de ensino hoje vigentes sejam objeto de sonora contestação e que a Academia do Barro Branco volte a ser palco de um campo de batalha ideológico.

Em artigo publicado no Blog do repórter Fausto Macedo, de 19 de outubro passado, intitulado A Polícia vem perdendo o seu DNA , o Tenente Santini (PSD/SP), vereador pela cidade de Campinas e Policial Militar da Reserva, afirma que a PM de São Paulo “vem passando pela mais grave crise de identidade de sua história”.

Isso não em razão de “baixos salários, equipamentos sucateados, conflitos internos”, mas, segundo ele, uma das raízes que levaram a essa crise é o fato que o Curso de Formação de Oficiais “vem ganhando um viés acadêmico e buscando perfis mais sociais e não combativos, em que o intelecto se sobrepõe a valores seculares como lealdade, constância, honestidade e coragem”.

Esse processo teria acabado “com o moral dos verdadeiros caçadores de bandidos”. Sua argumentação continua por todo o texto, enaltecendo as práticas de “caçar, prender e derrubar bandidos” as quais teriam sido diminuídas por um academicismo dos cursos de formação e por enfoque aos conteúdos voltados à gestão, na capacitação dos Oficiais.

Não fosse pela defesa que o Oficial e Vereador faz em relação às práticas nada aderentes aos primados do Estado Democrático de Direito, teria que sua argumentação soa como um elogio quanto às medidas implementadas nos últimos 30 anos pela Polícia Militar de São Paulo no que se refere à formação de seus quadros, na medida em que retrata que o afastamento das práticas de abuso policial tem composto as lógicas pedagógicas dos cursos da corporação. Sua sustentação é sinal de que, sim, avanços têm sido obtidos.

Avanços que aliam tanto maior respeito ao cidadão, seja no respeito às seus direitos e garantias individuais, seja na oferta de um serviço que promova o enfrentamento à violência e proporcione melhores níveis de segurança.

Não é estabelecendo uma divisão entre os patrulheiros que “se preocupam com sua área de patrulhamento” e os “Billy’s” que, segundo o autor, “são os verdadeiros policiais”, pois “trazem respeito às ruas e levam medo aos marginais”, que se pode pensar minimamente qualquer política de segurança pública.

O panorama descrito pelo autor assemelha-se, muito mais, a um Brasil que lutamos por superar, em que ordem pública e segurança se construíram com base na perseguição, no açoite e na tortura. São ecos do passado que teimam em rondar o nosso contínuo presente.

É preciso que, à semelhança de outras áreas do Estado brasileiro, a capacitação e o reconhecimento dos profissionais que trabalham na segurança pública promovam, indistintamente, respeito aos cidadãos destinatários das ações do governo. Reconhecê-los ou fazê-los atuar como “caçadores” é, tanto, desconsiderá-los nas suas próprias dignidades, como reprodutores de uma política condenável e violenta.

Todavia, como contraponto racional à argumentação do autor, pode-se dizer que os avanços “intelectuais” (apenas para utilizar os mesmos termos do texto em referência) não são contrários aos valores de lealdade, constância, honestidade e coragem. As evidências mostram que maior capacitação acadêmica não afasta a excelência na prestação do serviço policial, mas, pelo contrário, o qualifica.

Atuar em área tão sensível da sociedade brasileira, como é a segurança pública, exige, aliado aos valores éticos citados pelo vereador e oficial, capacidade de fazer a gestão da vida, da liberdade e da integridade dos cidadãos, missões que vão além e afastam quaisquer aproximações quanto a serem os policiais temidos por criminosos.

Mas é preciso, por final, concordar com o vereador em determinado ponto: “a polícia está cansada de políticos que utilizam a instituição como plataforma política em planos de governo”. A língua é, de fato, o chicote da alma.

Nenhum problema em ser conservador, mas todos os problemas do mundo com uma agenda reacionária e que busca manter privilégios e desigualdades; busca manter a polícia como guarda pretoriana de alguns projetos políticos e não como promotora da cidadania.

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Nota da PM Paulista rebate a influência ideológica em cursos da corporação https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/09/04/nota-da-pm-paulista-rebate-a-influencia-ideologica-em-cursos-da-corporacao/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/09/04/nota-da-pm-paulista-rebate-a-influencia-ideologica-em-cursos-da-corporacao/#respond Wed, 04 Sep 2019 13:58:52 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/15260812515af626e3563c7_1526081251_3x2_lg-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1064 O Faces da Violência abre o espaço para nota do Comandante Geral da Polícia Militar de São Paulo, Coronel Marcelo Vieira Salles, que rebate reportagem da Folha e declaração que dei sobre palestras em curso de doutorado da PMESP. Acho importante abrir o canal de diálogo e ofereço o espaço para o contraponto e debate. Polícias são instituições centrais para o Estado Democrático e debatê-las de forma franca, respeitosa e aberta só engrandece São Paulo e o Brasil.

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Polícia Militar: uma Instituição de Estado, que trata com profissionalismo e seriedade a segurança do cidadão

 

A Polícia Militar lamenta a matéria do jornal Folha de São Paulo desta segunda-feira (2), com o título ‘Ministros ideológicos e influencer bolsonarista darão palestra em curso de doutorado da PM-SP’, que direciona o leitor a um equívoco gigantesco sobre os objetivos do curso de doutorado em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública da nossa Instituição.

Primeiramente, é importante pontuar que o objetivo do curso é permitir que o futuro comandante aprimore seus conhecimentos de gestão, buscando as qualificações para administrar uma Instituição gigantesca, cujo orçamento anual, de 16 bilhões de reais, supera o de 11 Estados da Federação, tudo para que seja possível cuidar de 45 milhões de pessoas, 24 horas por dia, ininterruptamente. Para se ter uma ideia, a Polícia Militar recebe, em média, 80 mil ligações por dia em seu telefone de emergência, 190, sobre as mais variadas necessidades do cidadão. O sucesso do sistema de gestão implantado há anos na Instituição se faz perceber na redução de praticamente todos os indicadores criminais no Estado, com destaque para os homicídios, que estão hoje em patamares menores do que muitas cidades dos EUA e da Europa, em torno de 6,4 casos por 100 mil habitantes.

A matéria apresenta problemas sérios de apuração e confunde o leitor ao tentar induzi-lo a acreditar que o curso possui viés ideológico. O Centro de Altos Estudos de Segurança (CAES) convidou pessoas respeitáveis e autoridades máximas em suas áreas de atuação, pelo cargo que ocupam, para tratar de assuntos diretamente ligados à segurança pública e de interesse social. Na estrutura burocrática do Estado, não existem “ministros ideológicos”, mas sim Ministros de Estado, pessoas respeitáveis, sendo certo que compartilhar os seus conhecimentos é extremamente relevante para os futuros gestores de polícia.

O Ministro da Educação, por exemplo, tratará de tema ligado ao sistema de educação da Polícia Militar, assunto diretamente relacionado à qualidade do ensino e formação de profissionais para atuar no policiamento. O Ministro do Meio Ambiente, por sua vez, tratou de tema extremamente atual e relevante sobre ocupações em áreas de mananciais, tráfico de animais silvestres e degradação de áreas de preservação permanente, entre outros temas. É incompreensível a tentativa da reportagem de desqualificar as autoridades apontadas por discordar de suas ideias, desconsiderando as posições que ocupam, pois fazem parte de um governo eleito democraticamente.

Para a Polícia Militar, o que importa é a qualificação do palestrante, não seu “viés ideológico”, que entendemos ser uma discussão anacrônica e sem interesse social. Por esse motivo, são convidadas pessoas das mais diversas áreas de atuação e autoridades em seus segmentos. Além dos ministros convidados, foram convidados também integrantes do Ministério Público, do Poder Judiciário, da Ordem dos Advogados do Brasil, entre outras autoridades. O próprio especialista entrevistado pela reportagem, Renato Sérgio de Lima, já palestrou em 2014 e é orientador de um dos doutorandos. Representantes de minorias representativas, como o movimento LGBT, também foram convidados e ministraram palestras. Neste mesmo curso, há parcerias importantes como as existentes com a Escola de Sociologia e Política, com o Núcleo de Estudos de Defesa, Estratégia e Segurança da UFSCar, com o Instituto de Relações Internacionais da USP e com o Instituto Sou da Paz. Estão por vir, ainda, palestrantes da UNICAMP, da FGV e do INSPER, demonstrando claramente a preocupação institucional em agregar valor aos doutorandos, de maneira multidisciplinar, independentemente de ideologia ou política.

Outro exemplo da preocupação institucional em capacitar seus integrantes a oferecer serviço de qualidade ao cidadão foi o evento que buscou ampliar conhecimentos sobre manifestações e movimentos sociais – o Seminário Protesto Seguro, desenvolvido pela Polícia Militar em parceira com o Instituto Sou da Paz, realizado no início de agosto com os diversos atores envolvidos.

A Polícia Militar é uma Instituição de Estado e repudia veementemente a tentativa de classificá-la política ou ideologicamente, principalmente a partir de profissionais que deveriam informar com clareza, isenção e exatidão, cumprindo assim a função social do jornalismo.

Marcelo Vieira Salles, 52
Coronel PM – Comandante Geral da Polícia Militar

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Indulto de ex-policiais é estímulo ao desentendimento entre os militares https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/09/03/indulto-de-ex-policiais-e-estimulo-ao-desentendimento-entre-os-militares/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/09/03/indulto-de-ex-policiais-e-estimulo-ao-desentendimento-entre-os-militares/#respond Tue, 03 Sep 2019 13:06:01 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/1627268-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1061 Por Jacqueline Muniz*

O anúncio presidencial do indulto a ser concedido a ex-policiais condenados acontece no mesmo período do descobrimento do paradeiro do procurado número 1 do Brasil. Queiroz foi “achado”, ou melhor,  mandou o recado público “lembrem-se de mim”  através da Veja, deixando-se fotografar no mesmo hospital onde segue fazendo tratamento desde sua internação e local de sua última e autorizada aparição pública.  Parece até coisa arranjada, não é mesmo? As lentes da revista foram curiosamente mais rápidas do que a moda persecutória dos vazamentos jurídicos-policiais. Foram, ainda, mais ágeis que os inúmeros smartphones de anônimos que circulam pelo complexo de saúde VIP, seus arredores e nos trajetos feitos pelo paciente, nacionalmente famoso, entre a casa e o centro de tratamento. Muitos deles ávidos por uma live ou foto indiscreta de subcelebridade que permita alguma fama instantânea com a viralização do flagrante do miliciano popstar nas redes sociais.

Há quem imagina, com boas razões, que a polêmica notícia do indulto de natal  prometido pelo presidente aos “colegas presos por pressão da mídia” seria mais uma das suas pegadinhas para desviar ou dividir as atenções do caso Queiroz, diretamente ligado ao seu clã. Desta vez a tática usada trouxe um algo a mais.  Simular que está a frente de tudo e de que nada foge do seu raio de ação.  Para tanto, encena a ficção  do comando e controle diretos, performando a fantasia do decisionismo do imediato extraído dos filmes de ação.  Obtém-se, com isso,  o efeito ilusório de que seria um comandante de artilharia de campanha que resolve tudo na hora, sem mediações e intermediários, sempre disposto a derrotar a lentidão creditada às regras democráticas e a perda de tempo com princípios  republicanos.

A questão é que um Governante bate-pronto, com estilo Miojo Lamen, que finge reduzir os tempos da política à instantaneidade expressionista de suas pantomimas para as redes sociais, torna-se refém da necessidade continuada de sucessivos espetáculos histriônicos.  Ao invés produzir acordos em torno de consensos mais amplos que produzam estabilidade no exercício de seu governo, precisa funcionar como animador de auditório que joga com a imprevisibilidade das suas reações para  manter mobilizados aqueles que são identificados ou que podem ser mais facilmente cooptados como uma plateia fiel.  Um dos públicos alvo deste espetáculo de conversão é  o universo  das praças das polícias militares.

A promessa de libertação de companheiros de farda “injustamente presos” fala alto aos corações e mentes dos PM da ponta que, salvo exceções, se vêem como os “filhos feios do Estado”  e como maiores de rua abandonados pela sociedade. São as praças que experimentam as arbitrariedades do chamado militarismo do oficialato e o baixo reconhecimento social. São elas que se sentem perseguidas pelo regulamento disciplinar e pela pouca transparência das  justiças  militar e comum.  São elas que clamam por uma alforria das práticas draconianas dentro dos quartéis que vivificam o lema “a motivação para trabalhar é a punição”.  São elas, portanto, as presas mais fáceis da armadilha do indulto  de natal.  Seu efeito primeiro é renovar e ampliar adesões das fileiras policiais militares ao projeto de poder presidencial: só mesmo um irmão de farda que veio de baixo como nós pode entender o nosso lado e chegar junto!

Se o impacto normativo-legal do indulto tende a ser baixo, a sua manobra política possibilita obter ganhos elevados. Isto corresponde a  explorar a tensão latente entre as forças militares policiais e combatentes. Uma demonstração estratégica de medição de força com cúpula das Forças Armadas: enquanto os generais governistas ou insatisfeitos contam com a lealdade disciplinada do oficialato, o presidente mobiliza a adesão afetiva, messiânica, das tropas das PM e do Exército.  Se o alto comando militar busca executar um mando vertical a partir das dimensões institucional, corporativa e profissional das forças combatentes, o presidente busca exercer um mando horizontal por meio de uma linha direta e pessoalizada com os milhares de militares subalternos,  violando, quando oportuno, os princípios da hierarquia e disciplina, tal como fazia durante sua interrompida carreira militar. Nunca foi tão oportuno estimular os conflitos estruturais entre praças e oficiais no Brasil.

Fica evidente que o capitão feito mandatário do país não tem o habitus que o reconheça como integrante autêntico da classe de oficiais.  Seus modos de ser e estar, seus jargões e trejeitos corporais intencionalmente desalinhados e, ainda, seu humor cínico o aproximam do estereotipo do militar de baixa patente revoltado. Uma idealização poderosa do combatente perseguido e injustiçado que exerce um grande fascínio entre os subalternos, cotidianamente silenciados pelos dispositivos disciplinares obtusos e excluídos dos privilégios concedidos aos militares dos círculos superiores.

A promessa do indulto de natal aos ex-policiais de boba não tem nada. Não é somente um desvio de rota da estrada pantanosa que leva ao Queiróz. Trata-se de uma manobra discursiva menos para a sociedade, reduzida a expectadora, e mais para dentro das forças militares, que cumprem o desvio de função de se colocarem como fiadoras ou desabonadoras de governos eleitos. Explora os conflitos de doutrina, competências e capacidades entre as organizações militares combatente e policial. Estimula as rivalidades ocultas intensificadas pelo emprego frequente do exército no policiamento convencional e das PM em operações militares de larga escala nos espaços urbanos.  Afinal, no lusco-fusco da promoção da “guerra contra o crime” tem-se militar combatente improvisando-se como policial e militar policial fazendo as vezes de combatente. Na prática, assiste-se o exército, ao seu contragosto,  fazendo o papel de “força auxiliar e reserva” que caberia às PM.

É sabido dentro das casernas que as PM e o exército não comungam da mesma tradição militar e não são aliados de primeira hora.  Uma piada popular entre os policiais expressa bem a rivalidade entre o tático-operacional da PM versus o operacional-tático do exército. Dizem que num enfrentamento entre as tropas das PMs e do EB a vitória ficaria com as PMs que possuem todo o seu efetivo disponível para pronto-emprego, ao passo que o Exército que só poderia fazer uso de um contingente reduzido para pronta-resposta, já que sua tropa se encontra em níveis distintos de prontidão.

O presidente de baixa patente por convicção sabe e parecer querer jogar com isso.  Diante da possível torcida de narizes do generalato e do empresariado frente aos rumos de seu governo, o capitão, insolente e insubordinado por oportunidade, faz saber que poderia contar com policiais militares, compondo uma força particular, uma nova milícia  em sua defesa.  Aposta suas fichas no enfraquecimento da institucionalidade das polícias para melhor manipular seus integrantes. Seu embrulho anticrime também caminha na direção de reduzir ao mínimo os limites institucionais sobre os policiais. Pega uma carona no SUSP da lei que, por ingenuidade propositiva ou ambição política desmedida, possibilitou a promoção de um clube de serviços acima da necessária integração das organizações policiais, e cujos sócios são os agentes públicos armados de todo país à disposição do ministro extravagante da vez.

Agora a mensagem presidencial da promessa do indulto de natal parece clara: eles que são militares que se desentendam para que eu possa seguir brincando de imperador.

 

Jacqueline Muniz. Professora da Universidade Federal Fluminense – UFF

 

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No teatro do absurdo, Bolsonaro, Queiroz e o indulto de ex-policiais condenados https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/09/01/no-teatro-do-absurdo-bolsonaro-queiroz-e-o-indulto-de-ex-policiais-condenados/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/09/01/no-teatro-do-absurdo-bolsonaro-queiroz-e-o-indulto-de-ex-policiais-condenados/#respond Sun, 01 Sep 2019 15:41:35 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/09/15611247485d0cdf8cb06d8_1561124748_3x2_md-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1049 No picadeiro que tomou conta do Brasil, as notícias e os fatos são substituídos por narrativas e jogos de cenas que deixariam Martin Esslin (1918 – 2002), Eugène Ionesco (1909 – 1994), Samuel Beckett (1906 – 1989), precursores da tendência conhecida como o Teatro do Absurdo, envergonhados. Afinal, eles inauguraram uma forma de expressão que visava denunciar os horrores da Guerra e das desigualdades e, agora, vemos que suas técnicas estão sendo usadas para desconstruir as conquistas civilizatórias e as noções que ajudaram a conformar uma ética pública baseada no respeito às leis e na garantia de direitos.

E, entre nós, Jair Bolsonaro mostra-se um exímio operador do absurdo e tem conseguido dar o enquadramento do debate político e forçar os limites da institucionalidade democrática. Todas as vezes que suas declarações ou atos de governo provocam reações que eventualmente poderiam sair do controle e fazer desandar sua fórmula polarizadora, o Presidente dobra a aposta e dispara um absurdo maior ainda que, de tão polêmico, faz o passado sumir para que ele mantenha as rédeas da Nação.

Enquanto ele encena o “tiozão do pavê” ou que fica jogando milho aos pombos na praça dos três poderes, parafraseando a música de Zé Geraldo, um projeto de desmonte está aceleradamente em curso sob os aplausos e, mesmo, os auspícios de poderosos grupos transnacionais que controlam os fluxos globais de investimentos e/ou a cena geopolítica e estratégica do mundo hoje.

Mas, mais do que isso, um grupo interno formado por parcela significativa dos oficiais das Polícias Militares estaduais ganha cada vez mais força e, nos bastidores, tem ganhado todas as disputas contra Sergio Moro (que cometeu o erro tático de formar seu gabinete sem nenhum policial militar), Polícia Federal, Paulo Guedes, Forças Armadas (que ficaram assustadas pelo nível de mobilização das PM na reforma da previdência dos militares), entre outros.

Esse grupo vê no Governo de Jair Bolsonaro uma oportunidade de conseguir quebrar o sistema de vetos existente na área da segurança pública que impede, por questões legais, federativas e corporativistas, que mudanças por ele defendidas sejam implementadas (o ciclo completo de policiamento é o maior exemplo público disso). Hoje é quase impossível construir consensos mínimos que atendam tanto aos oficiais das PM quanto os Delegados de Polícia Civil ou Federal. São dois polos antagônicos e que têm travado reformas mais amplas na segurança pública desde a Constituição de 1988.

As Polícias Militares são reguladas por leis e normas que datam de 1983 e ainda não foram completamente modernizadas frente à Constituição. Jair Bolsonaro está negociando a mudança dessas normas (a mais importante é a R200) em uma chave bastante corporativista e sem ouvir, por exemplo, as demandas dos praças (soldados, cabos e sargentos, que são a maior parte dos efetivos policiais). Tudo está sendo definido nos gabinetes federais.

Enquanto o discurso inflamado é usado para tirar foco dos reais problemas, um debate crucial para as Unidades da Federação vai sendo desenhado sem a menor participação dos governadores, que depois terão apenas que pagar literalmente a conta.

De fato, as Polícias Militares são instituições fundamentais para a segurança pública brasileira e não me filio àqueles que veem na desmilitarização a panaceia dos problemas da área. Acho mesmo que as normas que as regulam estão obsoletas e precisam ser ajustadas e modernizadas. Muitos são os regulamentos disciplinares ainda em vigor que consideram mais grave um soldado participar de algum movimento associativista legítimo do que ele, por ventura, se exceder no uso da força.

E é aqui que Bolsonaro e aqueles que o apoiam erram feio. O mais novo factoide do governo, que promete indultar policiais presos “injustamente” merece ser tratado com o máximo cuidado para que o campo de defesa de direitos não seja, mais uma vez, taxado de “defensor de bandidos”. O Presidente tem a prerrogativa de indultar condenados pela Justiça, desde que critérios impessoais sejam seguidos – aliás, o mesmo presidente que disse que não indultaria nenhum criminoso na gestão dele.

E, pela lei, qualquer pessoa, seja ela policial ou não, que tenha cometido crimes de homicídio qualificado, estupro, tortura, tráfico de drogas e todos os crimes classificados como hediondos não pode ser beneficiada por indulto (art. 5º, XLIII, da CF). Ou seja, Bolsonaro não pode indultar policiais ou qualquer outra pessoa condenada com trânsito em julgado por um desses crimes. Não é ser contra ou favor de policiais; é cumprir a lei.

Entre os crimes passíveis de indulto, em sentido inverso, podemos citar aqueles que envolvem organizações criminosas (art. 1º da Lei 12.850/13), associação criminosa (art. 288 do Código Penal) e constituição de milícias  (art. 288-A, do Código Penal). Bolsonaro vai, portanto, indultar policiais que cometeram atos de corrupção ou formação de milícias?

Prefiro acreditar que não chegue a este ponto, mas com certeza ele vai puxar o máximo possível para reforçar sua adesão à narrativa de que os policiais são injustiçados e que merecem uma atenção que nunca lhes foi dada e que agora ele os representa (é verdade que os governos de esquerda foram lenientes e não tocaram na arquitetura institucional das polícias brasileiras e chocaram um Ovo da Serpente que agora ameaça nos engolir a todos).

Mas o que mais chama atenção é ver profissionais que tanto se orgulham por investir em análises de cenários e por terem pensamento estratégico se deixarem levar por um canto da sereia histriônico e burlesco nas aparências mas letal institucionalmente. A parcela de oficiais das PM que adere entusiasticamente ao projeto de Poder de Bolsonaro deveria migrar para a arena política e não continuar a comandar instituições de Estado e que devem ser cumpridoras da lei e da Constituição apenas. Há um enorme conflito de interesses que deveria merecer mais atenção.

Por fim, concordo que oportunidades de superação de vetos sejam buscadas e área modernizada, mas vendo Jair Bolsonaro propor indulto aos policiais bem na semana em que a Revista Veja localiza o Queiroz fazendo tratamento no mais caro hospital do Brasil, fica difícil achar que ele efetivamente defende os policiais. Não é a mídia que associou milícias e polícias nesses caso; foi o próprio presidente ao dobrar a sua aposta no absurdo.

Bolsonaro usa os policiais descaradamente e defende tão somente, acima de tudo e de todos, o seu projeto de Poder e o de seus filhos. Quem ganha e quem perde com isso?

 

 

 

 

 

 

 

 

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