Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Covid-19 e morte de policiais: crônica de uma tragédia anunciada https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/covid-19-e-morte-de-policiais-cronica-de-uma-tragedia-anunciada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/covid-19-e-morte-de-policiais-cronica-de-uma-tragedia-anunciada/#respond Thu, 29 Apr 2021 22:06:14 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/alcadipani-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1734 Os óbitos de policiais na pandemia deixam claro que a prevenção e o cuidado com a vida desses profissionais não passam de discurso que não se converte em atitudes práticas

Rafael Alcadipani*

Logo no início da pandemia de Covid-19, uma parceria de pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, da qual fiz parte, realizou um estudo mostrando que quase 70% dos policiais no Brasil tinham medo de serem contaminados e de morrerem da doença, bem como de levá-la para suas famílias. O estudo já indicava que metade dos policiais tinham um colega ou parente com suspeita de estarem com o vírus. Apenas 30% dos policiais se sentiam preparados para trabalhar durante a pandemia e nos estados do país pouco mais de 30% relatavam que haviam recebido os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para se protegerem da doença durante o turno de trabalho.

Ou seja, o estudo já apontava que os policiais não se sentiam preparados e não estavam recebendo nem treinamento muito menos equipamento de proteção adequados para lidar com a pandemia. Embora houvesse diferenças entre o preparo de instituições nos diferentes estados da federação, era nítida e clara a urgência de que medidas fossem tomadas para evitar uma alta vitimização de policiais no Brasil.

Embora tenha ganhado repercussão da imprensa e estivesse disponível ao público interessado, como é típico de nosso país, o estudo não despertou grande interesse dos gestores de segurança pública brasileiros e, ao que tudo indica, seus achados não sensibilizaram as secretarias de segurança dos estados – muito menos o Governo Federal – a adotar uma política nacional de prevenção a morte de policiais por Covid-19.

Os números recentes do Monitor da Violência mostram que a Covid-19 afetou bruscamente as instituições policiais. O número de policiais mortos pela doença é mais do que o dobro do que o de policiais que foram assassinados nas ruas em 2020 – 465 profissionais atingidos pela pandemia contra 198 assassinados em serviço ou na folga. Além disso, um a cada quatro policiais brasileiros foi afastado do seu trabalho devido a doença e seus riscos. Rio de Janeiro, Amazonas e Pará foram os Estados onde mais policiais foram vitimados pela pandemia. Uma vez que o alerta havia sido dado, são mortes que poderiam ter sido evitadas.

A morte de tantos policiais pela Covid-19 escancara o grave problema de gestão da Segurança Pública em nosso país. Boa parte das decisões são tomadas sem o recurso a estudos ou pesquisas. Ou seja, raramente decisões neste campo são tomadas tendo por base a ciência, tema tão em voga durante esta pandemia. Em geral, usa-se o bom senso de quem está na ponta da linha e acha que sabe por ter estado tantos anos realizando a função de segurança pública. Esquecem-se que é possível passar uma vida inteira trabalhando errado.

Além disso, as mortes de policiais durante a pandemia deixam claro que a prevenção e o cuidado com a vida do policial são um mero discurso que não se converte em atitudes práticas. Qual o motivo do Governo Federal não ter articulado uma política nacional de proteção aos policiais para a pandemia? Quais foram as ações concretas tomadas pelos Secretários de Segurança dos Estados para proteger os policiais além da distribuição formal de algumas máscaras e álcool gel? É preciso ainda destacar que as culturas organizacionais das polícias valorizam a virilidade e o tomar risco. Isso faz com que a prevenção com a própria saúde e o mero uso de máscaras sejam malvistos em muitos círculos de policiais. Isso se torna ainda mais nocivo quando as lideranças não assumem a sua responsabilidade de cobrar o uso de máscaras por parte dos policiais.

Embora alguns estados tenham vacinado seus policiais, no atual cenário isso não é garantia de nada. Novas cepas podem surgir diminuindo a eficácia das vacinas e o próprio valor da eficácia real dos diferentes imunizantes é ainda objeto de estudo. A prevenção da Covid-19 passa necessariamente pelo distanciamento social e pelo uso de máscaras de boa qualidade. Raramente, porém, policiais estão usando as máscaras N95. As mortes que aconteceram até o momento são a crônica de uma tragédia anunciada. E se nada for feito de efetivo para preservar a vida dos policiais, a tragédia irá ganhar cores cada vez mais dramáticas.

 

*Professor Titular da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Tiroteio em massa nos EUA” e “Policias civis, em busca de identidade“.

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O mito do policial herói e a farsa do reconhecimento profissional https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/o-mito-do-policial-heroi-e-a-farsa-do-reconhecimento-profissional/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/o-mito-do-policial-heroi-e-a-farsa-do-reconhecimento-profissional/#respond Mon, 25 Jan 2021 14:27:06 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Fernando-Frazão-Agência-Brasil-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1635 O policial não precisa morrer no cumprimento do dever; necessita reconhecimento pelo serviço público que executa e não pelo sangue que é derramado em falsas batalhas.

Alexandre Pereira Rocha*

Ganhou grande repercussão o assassinato do policial militar Derinalto Cardoso dos Santos ao tentar impedir um assalto na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, no dia 5 de dezembro de 2020. O caso se espalhou rapidamente pelas redes sociais, especialmente no meio policial. Chamou atenção a frieza de um dos assaltantes, que não titubeou em disparar um tiro à queima-roupa na cabeça do policial. Mais um agente de segurança pública se foi. Restam a dor e a indignação de familiares e amigos. Condolências e salvas de tiros. Nada mais.

O caso ficou registrado em filmagens do estabelecimento comercial. O policial Derinalto se depara com um assalto e não declina de sua missão. Assim, ele adentra bravamente na cena do crime. Pelas imagens, parece que Derinalto identifica um suspeito. Mesmo com o delinquente sob sua mira, ele não dispara imediatamente. Por sua vez, um comparsa se aproveita da situação e surpreende Derinalto com um tiro na cabeça. Pessoas correm em desespero. Os assaltantes fogem. Derinalto fica caído no chão.

Por fatalidade, o policial se tornou a vítima no cumprimento do dever. Por isso, ele ganha o reconhecimento póstumo de herói. Ele também seria visto como herói, só que num estágio mais fantasiado, caso tivesse obstado o assalto com tiroteio e morte dos delinquentes. Nessa hipótese, é bem provável que fosse elogiado pessoalmente pelo atual presidente da República Jair Bolsonaro, condecorado pela polícia militar e aplaudido pelo jornalismo pinga-sangue. Não obstante, a realidade é outra: Derinalto foi morto e a designação de mito heróico não muda isso.

A morte do policial Derinalto não é um mito. Da mesma forma, não são lendas os frequentes embates entre criminosos e policiais pelas periferias do Brasil afora. Do mesmo modo não é mito o fato de policiais terem de colocar suas vidas em risco no enfrentamento a delinquentes fortemente armados. Pelo contrário, tudo isso é uma trágica realidade. Mas o mito está nos discursos de certas autoridades, políticos e setores sensacionalistas da imprensa, que lucram com o mantra da guerra contra o crime. O mito está nas representações sociais que idealizam o martírio como próprio do exercício policial.

O mito do policial herói é parte do imaginário social e revigorado por filmes, histórias e romances ao estilo Tropa de Elite. Isso, em si, não é problema. A questão é quando isso se torna parte intrínseca das políticas de segurança pública no Brasil. Esse mito não encontra lastro na realidade, mas em narrativas criadas e replicadas que mascararam dramas da segurança pública. É fato. O mito do policial herói – que é capaz de se imolar em prol da proteção da sociedade – é conveniente para ocultar as precárias condições de trabalho, baixos salários e desvalorização da maioria dos policiais brasileiros.

Esse mito desvirtua o papel do policial como profissional de segurança pública. Isso porque ele consolida conceitos autoritários, seja, em nível individual, ao estimular a agressividade e a coragem visceral como padrão de ser policial; ou ainda, em nível institucional, ao incentivar prioritariamente estratégias bélicas e violentas como formas eficazes de policiamento.

A verdade é que o mito do policial herói é uma farsa de reconhecimento profissional, o qual desconsidera inúmeras discriminações entre cargos e patentes no âmbito das corporações; além das gritantes distorções entre polícias civis e militares em níveis estadual e nacional. Em suma, disfuncionalidades em termos de remunerações, carreiras, organizações, legislações e condições de trabalho, as quais evidenciam que há várias realidades policiais no Brasil, mas todas equivocadamente interpretadas pelo mito do policial herói.

O policial brasileiro não precisa do distintivo de herói. Afinal, isso não agregou nada ao policial Derinalto, bem como para tantos outros policiais que trabalham em situações adversas e desvalorizados profissionalmente. De fato, o que o policial precisa é ser avaliado como oficial de segurança pública, o que implica reformas nas arcaicas estruturas verticalizadas das polícias. Enfim, o que o policial necessita é de profissionalização, para ser reconhecido integralmente pelo serviço público que executa e não pelo sangue que é derramado em falsas batalhas.

Além disso, o tenente-coronel ainda acrescentou que o PM deve adaptar-se ao meio no qual ele está inserido no momento de sua atuação, de forma que ele não pode ser “grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando”.

A partir da fala do referido oficial, nos parece óbvio que os episódios que envolvem o abuso de autoridade, de poder e o excesso de violência por parte das instituições de segurança pública, em especial das PMs, e que são divulgadas pela mídia constantemente, como ocorreu em dois casos neste mês junho de 2020 em SP, corroboram a lógica ideológica da atuação policial no Brasil, que vê no pobre e negro da periferia o seu inimigo a ser combatido e “domado” e, neste sentido, nada melhor que os exemplos da vida nua e crua para desvelar esta realidade.

Que o diga o caso dos PMs que foram solicitados para atender a uma ocorrência de violência doméstica na casa de um empresário morador de Alphaville, um condomínio de alto padrão na Grande São Paulo, e que foram recebidos por ele aos xingamentos, insultos e todos os tipos de grosserias e destemperos típicos de uma elite raivosa e demagógica que, diga-se de passagem, “defende” os policiais nas redes sociais. Importante frisar que todo o rompante autoritário do dito empresário foi gravado, assim como também foi clara a passividade dos policiais militares para agir diante do explícito desacato cometido por parte do “cidadão de bem”.

Por mais que discursos corporativistas de outros policiais queiram defender os PMs utilizando-se do argumento do controle emocional necessário, dificilmente o medo do empresário por sua condição econômica aparece como o fator determinante para o corpo inerte dos policiais diante de uma imagem que exigia uma ação enérgica para conter um agressor em potencial.

No outro caso, ao contrário, imagens gravadas revelaram em cadeia nacional os espancamentos cometidos por PMs a um jovem em uma periferia da zona norte de São Paulo. Na cena, oito PMs usam da brutalidade para cometer a violência contra um jovem passivo que diz “não ter feito nada” e ainda por cima trata os PMs por “senhor”, afirmando ser “trabalhador”. Em uma patrulha com oito policiais, em que todos estão dispostos a usar da violência contra o jovem pobre, fica difícil pensarmos em uma situação de exceção quanto à forma como as PMs atuam nas periferias.

Recordemos do caso “Rambo”, ocorrido na Favela Naval, em Diadema, em 1997, no qual policiais militares foram filmados por um cinegrafista amador violentando e extorquindo moradores em uma blitz, o que resultou na morte do mecânico Mário José Josino, de 29 anos. O PM conhecido por Rambo atirou nas costas do mecânico, que se encontrava em um carro em movimento. Passados quinze anos, e após cumprir oito anos de prisão, Rambo deu uma entrevista à TV afirmando que agiu “para consertar uma sociedade que não tem jeito de consertar”, de certa forma eximindo-se da culpa e racionalizando sua justificativa como se a morte de um homem pobre e inocente não significasse nada.

De um lado, um jovem na periferia paulista, um Josino, um Amarildo e tantos outros que têm em comum o fato de pertencerem aos estratos sociais menos abastados da sociedade, bem como o fato de receberem do Estado, nestes casos representados por suas PMs, os tiros, porradas e bombas. De outro o empresário e a elite como um todo que, para além de já receberem do Estado as PMs para fazer valer seu status quo, também desrespeitam o profissional e, neste contexto, a não ser que sejamos acéfalos ou que tenhamos interesses, fica difícil não ter uma visão crítica sobre a atuação do Estado através dos aparatos de segurança pública, principalmente de suas policias militares, sobretudo no que diz respeito à violência contra os menos favorecidos.

Portanto, quem precisa de polícia e é parado no Brasil, em grande medida, são os “periferizados”, em grande parte negros, vítimas de um processo histórico de abandono, que têm de suportar a autoridade impositiva de uma polícia que foi criada e se desenvolveu para lidar com os pobres e estigmatizados. Pensando por uma lógica psicanalítica, como os PMs em sua maioria se originam das classes médias e baixas, talvez, inconscientemente, eles ajam para exercer poder contra aqueles que representam a projeção deles mesmos, como uma forma de destruir uma imagem que deixa explícito que eles/elas estão também na base maior e inferior da hierarquia social.

Mas, em conjunto, só podemos reproduzir aquilo que aprendemos a fazer pela formação profissional que passamos, pelo machismo e ideal de masculinidade e virilidade, pela pressão grupal, pelo desejo de potência, pelo sadismo em impingir sofrimento ao outro. Tudo isso só revela o quanto a violência policial demonstra ser um problema distante de resolvermos em nossa cada vez mais frágil democracia.

 

*Alexandre Pereira da Rocha é Doutor em Ciências Sociais (UnB), Policial Civil no Distrito Federal (PCDF) e Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

 

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Na edição desta semana, leia também “Saída temporária na execução penal: o paradoxo” e “A sucessão nos Estados Unidos e o perigo das forças de segurança politizadas”

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Policiais brasileiros morrem 3 vezes mais por suicídio e 19 mais por assassinatos do que os policiais dos EUA; e matam 7 vezes mais. https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/18/policiais-brasileiros-morrem-3-vezes-mais-por-suicidio-e-19-mais-por-assassinatos-do-que-os-policiais-dos-eua-e-matam-7-vezes-mais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/18/policiais-brasileiros-morrem-3-vezes-mais-por-suicidio-e-19-mais-por-assassinatos-do-que-os-policiais-dos-eua-e-matam-7-vezes-mais/#respond Tue, 18 Sep 2018 20:46:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/WhatsApp-Image-2018-09-18-at-17.42.14-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=271 Por Daniel Cerqueira, Doutor em economia, pesquisador do Ipea e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O medo é um estado afetivo suscitado por ansiedade irracional ou fundamentada e funciona como um mecanismo de autopreservação das espécies. Trata-se, portanto, de uma das forças mais poderosas de mobilização da ação humana, posto que se liga diretamente aos instintos atávicos. Contudo, nas complexas sociedades modernas, o medo pode ser um péssimo conselheiro. Como nos ensinam os economistas e matemáticos, que desenvolveram a “teoria dos jogos”, em processos de interação social não cooperativos, cada indivíduo ao buscar o melhor para si, muitas vezes, leva a um equilíbrio social que engendra a pior situação para todos.

A segurança pública nos dá um exemplo muito claro, em que o temor e a angústia desenfreada de uma população, aturdida com décadas de violência extrema, faz com que cada um procure caminhos individuais para a sua autopreservação, não, necessariamente, os melhores. Assim as pessoas se segregam em condomínios ou atrás dos blindados; abandonam espaços públicos; se armam; e votam nos mercadores do medo que, com seu ilusionismo, vociferam contra a encarnação idealizada do mal – o vagabundo, o criminoso – sem, contudo, propor ou se comprometer com ações efetivas para a diminuição do crime.

Pior, muitas vezes as proposições que seduzem inúmeras almas contribuem para jogar mais lenha na fogueira da violência, conforme nos mostra a nossa história recente. A corrida armamentista desde os anos 80, a política de execução extrajudicial por inúmeros grupos de extermínio (muitas vezes apoiada por políticos e pelo próprio aparelho do Estado) e o crescimento da brutalidade policial pelo Brasil afora, nos mostram o principal resultado (documentados em inúmeros artigos científicos) da retórica dos mercadores do medo: um espiral de mais e mais violência.

Nesta linguagem das sombras na caverna nasce o mito, que faz apologia a torturadores em pleno Congresso Nacional e que supostamente defende os policiais, ao propor a licença para “matar vagabundo” e ao exortarem-nos a candidatos a heróis e salvadores da pátria. Etimologicamente – talvez em um incrível caso de ato falho coletivo – não há qualificativo mais apropriado, uma vez que mito, que vem do grego “mythós”, significa “invenção, lenda, relato imaginário ou fantástico”, ou algo distante da realidade.

A sinalização da licença para matar, ao contrário de atuar na solução do problema, que consiste em diminuir a violência e garantir paz para a população, pelo contrário, gera quatro efeitos extremamente perniciosas, em que o principal perdedor é o próprio policial Primeiro contribui para um espiral de violência e para o aumento da demanda por armas, pelos criminosos, que se envolverão num processo de vinganças recíprocas, assim como acontece nas guerras entre as facções criminosas.

Em segundo lugar, ao propor um acirramento do pertencimento, do “nós contra eles”, coloca no meio de uma guerra as comunidades pobres, que se nutrirão de ódio contra os policiais e assim inviabilizarão qualquer processo de colaboração e coprodução da segurança pública entre polícia e comunidade.

Em terceiro lugar, potencializa o mercado das propinas, uma vez que a falta de controle quanto ao uso da força (que deveria seguir critérios técnicos do gradiente da força: de legalidade, necessidade, oportunidade e proporcionalidade) faculta livremente ao policial na ponta a capacidade de matar ou não e, portanto, de cobrar propina ou não, o que utilizado pelos maus policiais faz com que o trabalho dos bons profissionais seja perdido e não efetivo.

Por fim, a licença para matar, ainda que desperte os brios dos policiais, que são colocados como heróis e salvadores da pátria, termina contribuindo para a vitimização e morbidade física e mental deles mesmos, que veem reiteradamente seus direitos profissionais e humanos desrespeitados. Afinal, a figura do herói é a de um ser humano que não é comum, que precisa ter as condições de trabalho operacional e tático respeitadas. O herói pode trabalhar sem o equipamento adequado de proteção. O herói é forjado na ação e no campo de batalha. O herói não tem direito a dispensa médica, mesmo quando com transtornos emocionais graves atestado por médicos.

Nesta situação, o policial brasileiro opera sem as condições mínimas de segurança própria, exorbita no uso da força e termina sendo ele mesmo a principal vítima, ao ter uma maior prevalência de vitimização fatal; ao desenvolver graves problemas de morbidade mental/emocional; e, no desespero, encontrar no suicídio uma saída. O que, quase sempre, é um tema tabu, acaba sendo uma questão de saúde pública e que tem ligação direta com as condições de vida e trabalho destes profissionais. Não é um fenômeno individual apenas.

De fato, a prevalência de suicídios entre policiais no Brasil é cerca de três vezes maior do que na população em geral, ao contrário do que ocorre nos EUA, onde para cada civil que se mata, na média 0,9 policial comete suicídio. Enquanto que nos EUA, a taxa de suicídio entre policiais é de 12,0 suicídios por 100 mil policiais e a da população é de 13,3 para cada 100 mil habitantes (relação de 0,09 entre as duas), no Brasil, estas taxas são, respectivamente de 15,3 e 5,5 (relação de 2,8 entre as duas).

Agora, se compararmos as taxas de letalidade policial dos dois países, verifica-se que o policial brasileiro mata cerca de 7 vezes mais do que o norte-americano (que já é um país extremamente violento para o padrão dos países desenvolvidos). Porém, o policial brasileiro é assassinado numa taxa 19 vezes maior do que aqueles. Um policial que atua sem as condições de autoproteção adequada é portanto um policial que mata mais, que adoece mais e que não tem condições de garantir nem a sua segurança e de sua família, quanto mais a da sociedade.

Valorizar o policial passa, portanto, por dar fim a este quadro gravíssimo de retroalimentação da violência. No entanto, os mercadores do medo continuam em suas retóricas irresponsáveis na sanha por votos, sem se importar com a vidas das pessoas e do policial, que precisam ser preservadas.

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