Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A crise de segurança pública na Amazônia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/24/a-crise-de-seguranca-publica-na-amazonia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/24/a-crise-de-seguranca-publica-na-amazonia/#respond Thu, 24 Jun 2021 12:54:32 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Amazônia-faces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1799 Cocaína entra no país pela Amazônia sem barreira física devido à falta de efetivo da Polícia Federal e pela ausência de policiamento específico de fronteira.

Mario Aufiero*

Há tempos, a falta de uma política de segurança para as fronteiras brasileiras, em especial a da Amazônia, vem caracterizando diversos problemas na segurança pública em dezenas de cidades amazônicas. Recentemente, todo o país assistiu às ações do crime organizado na cidade de Manaus, capital do maior estado da federação brasileira, o Amazonas, e em municípios vizinhos. Ataques a escolas, hospitais, ônibus, carros públicos e particulares foram realizados de forma coordenada pela facção criminosa que domina essa parte do território.

Vários especialistas na área de segurança pública como também diversos atores da segurança que vivem e trabalham nessas localidades já registraram que a droga, o cloridato de cocaína, entra em nosso país pela Amazônia, sem nenhuma barreira física ou do estado. Isso ocorre por falta de efetivo da Polícia Federal como também pela ausência de um policiamento específico de fronteira para Amazônia. Dessa forma, as facções conseguem garantir de forma fácil a entrada de entorpecentes no Brasil dentre outras atividades criminosas, apesar dos esforços das polícias estaduais em vigiar e combater esse tipo de criminalidade.

O que ocorreu em Manaus e nas cidades vizinhas na primeira semana de junho de 2021 foi uma demonstração de força do crime organizado contra o Estado, deixando milhares de pessoas com medo. Isso é inaceitável, mas deriva justamente da ausência de uma política nacional macro de segurança para a Amazônia.

Essa região do país é diferente de tudo que conhecemos no restante do Brasil. Logo, as políticas de segurança pública devem ser planejadas levando-se em conta as especificidades da região, pois suas características territoriais e sociais diferem do restante do país.

O próprio Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que já completou três anos e ainda não foi implementado, precisa ser revisto para trazer elementos especiais de tratamento para a segurança pública na Amazônia. Assim, poderia atender velhas demandas para a área de segurança para a região, especialmente em suas regiões de fronteira.

O policiamento de fronteira na região se faz necessário há décadas. Portanto, a União tem o dever, por meio do SUSP, de criar e amparar os estados e municípios amazônicos. No momento, o reduzido efetivo da Polícia Federal não é capaz de guardar as fronteiras amazônicas.

A União e os estados amazônicos devem incentivar os munícipios da Amazônia no desenvolvimento de planos municipais de segurança como meio de prevenção, controle e repressão da criminalidade. Para tanto, é necessário alocar recursos nos municípios para que possam integrar os esforços de provisão de segurança.

A questão social também tem que ser tratada de forma especial, com ações de prevenção à violência juvenil, além do foco nas famílias em situação de vulnerabilidade social. Sem uma visão completa do problema e de ações baseadas nas características amazônicas, a possibilidade de ocorrência de eventos semelhantes não deve ser descartada.

Portanto, este é o momento de a União, por meio da Secretaria Nacional de Justiça, desenvolver políticas concretas de segurança para a região levando em consideração as suas características e a voz de seu povo. Para tanto, uma política concreta para as fronteiras deve ser estabelecida, de modo a construir um sistema efetivo de proteção da Amazônia. O problema da segurança impacta diretamente na questão ambiental, pois sem instrumentos efetivos de aplicação da lei, tais problemas permanecerão em evidência.

Por fim, a população de Manaus e dos municípios vizinhos que sofreram recentemente com os ataques das organizações criminosas não deve mais ser penalizada pela ausência de uma política concreta para a região.

*Superintendente-geral do Centro de Estudos de Segurança da Amazônia- CESAM, mestre em Administração Pública com ênfase em Segurança Pública – FGV/EBAPE, doutorando em Função Social do Direito pela FADISP e delegado de polícia PC-AM.

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Na edição desta semana, leia também “Máquina de moer gente negra” e “O invisível assédio nosso de todos os dias“.

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A Polícia Federal resiste? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/a-policia-federal-resiste/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/a-policia-federal-resiste/#respond Fri, 28 May 2021 14:02:31 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Salles-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1783 Ao manter sua expertise na manutenção da qualidade da investigação e ao demonstrar, via operação, que continua fazendo seu trabalho, a PF emite sinais de resistência

Andréa Lucas Fagundes*

Nos últimos tempos, a Polícia Federal tem estado no centro de disputas que envolvem diretamente o campo político. Para relembrar, os casos mais ilustrativos:

a) caso Bivar (2019), ocasião em que fizemos para o Fonte Segura uma breve revisão da PF e seu possível aparelhamento político;

b) a exoneração do então Diretor Geral, Mauricio Valeixo, alvo de acontecimentos políticos que implicaram a saída do então Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro, Sergio Moro;

c) a nomeação relâmpago do delegado Alexandre Ramagem, que não chegou a tomar posse do cargo;

d) episódio envolvendo a família Bolsonaro (esquema das rachadinhas), que coloca em xeque a independência de investigação da Polícia Federal com acusações de vazamento de informações por um delegado da PF;

e) a mudança ocorrida recentemente no Ministério da Justiça e Segurança Pública, em que assume a pasta Anderson Torres, delegado de Polícia Federal que há alguns anos vem exercendo atividades políticas e automaticamente troca o comando da Polícia Federal, hoje dirigida por Paulo Gustavo Maiurino, também delegado com perfil de articulação política;

f) o afastamento do então Superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva, após ter enviado ao STF pedido de investigação contra Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente;

g) nos últimos dias, a deflagração da operação Akuanduba, que tem entre seus investigados o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, Eduardo Bim, com autorização do STF, e;

h) na última sexta-feira, a notícia de proposição ao STF, pelo Diretor Geral Paulo Maiurino, de um documento propondo reestruturação interna do órgão e “implementação de mecanismos de supervisão administrativa e estruturação organizacional, nos moldes dos adotados pela PGR”, após a solicitação ao STF, pela Polícia Federal, de autorização para investigar o ministro Dias Toffoli.

Contudo, observa-se uma peculiaridade nos dois últimos casos, pois, ao contrário dos demais, a operação Akuanduba não se configura como uma ação do Executivo com tom de interferência política na instituição e sim a atuação da Polícia Federal realizando operação que tem como investigado um ministro de Estado, seguida da notícia de uma tentativa do Diretor Geral de controlar a autonomia dos delegados após pedido da PF para investigar ministro do STF. Cogita-se, então, a hipótese de uma possível resistência institucional, ou de ao menos uma parcela da instituição, à crescente interferência política na Polícia Federal. O que nos leva a revisitar alguns argumentos que vêm sendo apresentados nos últimos anos sobre o desenvolvimento institucional da PF, configurando o que acadêmicos e os próprios policiais federais consideram a independência administrativa e investigativa da Polícia Federal, frequentemente “testada” ultimamente.

Nos últimos 20 anos a instituição passou por significativo processo de mudança e desenvolvimento que envolveu reestruturação e modernização organizacional,  renovação e qualificação de seu quadro, fortalecimento da imagem institucional e especialização, culminando no refinamento da investigação via um processo que fortaleceu a capacidade de investigação e a qualidade da prova. Avanços que ocorreram mesmo enfrentando desafios como a disponibilidade orçamentária, que teve incremento na primeira metade dos anos 2000, mas que na última década e até os dias atuais passou a enfrentar cortes e restrições impostas pelo Poder Executivo.

Tal reestruturação interna colocou a PF em outro patamar institucional, tanto pelos resultados apresentados nas operações, como pela articulação com demais instituições do sistema de controle e pela imagem e confiança junto à sociedade brasileira. Entretanto, a independência administrativa e investigativa atingida parece não garantir bloqueio contra eventual ingerência do Poder Executivo, por sua subordinação ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), condição necessária em democracias.

Tais características institucionais e a insistente interferência do Executivo têm resultado em tensas relações entre a PF e o governo Bolsonaro, que parecem refletir a resistência de quadros do órgão, que ao longo dos anos 2000 e até o primeiro ano do governo atual, teve em sua cúpula lideranças com fortes características de atuação técnica, defensores da autonomia de investigação, que influenciaram a formação de novas gerações. Perfil que, muito provavelmente, opõe a resistência interna à gestão atual – representada pelo perfil político -, por meio da utilização de sua “maior/melhor arma”: a capacidade investigativa e qualidade da prova. Até aqui parece-nos que a instituição vem resistindo. Seja ao manter sua expertise na manutenção da qualidade da investigação e da prova, seja por demonstrações constantes, via operações, de que a PF continua fazendo seu trabalho mesmo contra grupos ligados ao presidente da República.

Contudo, os últimos acontecimentos, em especial após as mudanças no Ministério da Justiça e Segurança Pública e a entrada do Diretor Geral, Paulo Maiurino, exigem atenção. Primeiro o DG afasta um superintendente regional que opôs resistência pública e solicitou pedido de investigação envolvendo ministro e, em seguida, propõe reestruturação interna do órgão que pode tirar a autonomia dos delegados em investigações de autoridades com foro especial.

Sabe-se das clássicas disputas entre classes na PF, principalmente entre delegados e agentes. Entretanto, delegados sempre foram ferrenhos defensores da autonomia investigativa, sua principal bandeira e forte argumento de “blindagem” institucional. Movimentos como este podem acirrar disputas internas que pareciam latentes, como uma divisão entre delegados: de um lado o perfil técnico, de outro o perfil político. As manifestações de representações de classe e reações internas merecem acompanhamento e atenção. Cabe observar e verificar se a trajetória de desenvolvimento institucional da Polícia Federal, de fato, resistirá às novas diretrizes.

 

*Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas na UFRGS. Mestre em Sociologia pela UFRGS.

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Na edição desta semana, leia também “Medidas estratégicas reduzem a letalidade da Polícia Militar de São Paulo” e “Dia internacional de Combate à Homofobia: o que celebrar?

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Delegados federais: entre a autonomia e a política https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/delegados-federais-entre-a-autonomia-e-a-politica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/delegados-federais-entre-a-autonomia-e-a-politica/#respond Mon, 03 May 2021 17:32:58 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/faces03.05-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1740 Os delegados têm encontrado na aproximação com a política ou na defesa da autonomia da PF caminhos para a ascensão aos cargos mais altos da corporação e ao primeiro escalão do governo federal

Lucas Batista Pilau*

 

No último dia 30 de março, Anderson Torres, delegado federal, tomou posse como ministro da Justiça e Segurança Pública. Em um de seus primeiros atos, Torres nomeou Paulo Maiurino à Direção-Geral da Polícia Federal. Ambos apontados como delegados próximos da política brasileira, a chegada de Torres ao MJSP e de Maiurino à DG-PF indicam que as vias de ascensão dos delegados a cargos de prestígios são mais largas e difusas do que imaginávamos. De um lado, podemos situar os delegados atrelados aos discursos de autonomia e de defesa da capacidade “técnica” da instituição. De outro, estão aqueles com largo investimento político em suas carreiras.

O acúmulo histórico pelas instituições judiciais brasileiras em torno do que se pode chamar de “autonomia” reflete as aspirações corporativas de órgãos como Poder Judiciário e Ministério Público para serem vistos ao exterior das demandas do tabuleiro político. Nas últimas duas décadas, com investimentos crescentes do governo federal e a consolidação dos delegados federais no poder no órgão – após embates travados com militares e as demais carreiras da corporação – a Polícia Federal também vem encampando a bandeira da autonomia, em especial aquela sobre suas investigações.

Embora seja uma pauta antiga da instituição, a deflagração da Operação Lava Jato fez com que o discurso da autonomia ganhasse força ao desaguar na mesma retórica da luta anticorrupção. Desde o início dos anos 2000, a PF tem investido na criação de delegacias especializadas no combate à lavagem de dinheiro, em marcar presença junto à Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) e em produzir e propagar a imagem de uma polícia capaz de levar à prisão as elites políticas e econômicas do país. Esses e outros movimentos fortaleceram a posição da PF no campo jurídico e na defesa de recursos corporativos, tais como o inquérito policial e a colaboração premiada.

Em 2019, com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República e a chegada de Sergio Moro ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, vários delegados da Lava Jato de Curitiba ascenderam às principais posições da PF e a cargos no MJSP. Entre eles, como casos representativos, estavam Maurício Valeixo na Direção-Geral da PF, Igor Romário de Paula na Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado (DICOR), Márcio Adriano Anselmo na Coordenação-Geral de Repressão à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (CGRC-DICOR), Erika Mialik Marena no Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) e Rosalvo Ferreira Franco na Secretária de Operações Policiais Integradas (SEOPI).

No entanto, a construção do poder político dos delegados parece nem sempre estar atrelado às suas funções como polícia investigativa e judiciária, havendo aqueles que, durante sua carreira, transitam largamente pela burocracia estatal. Um evento ilustrativo desse fenômeno ocorreu em janeiro de 2020, quando o então DG-PF Maurício Valeixo enviou um ofício à secretaria-executiva do MJSP pedindo que a pasta adotasse medidas para o retorno de policiais federais cedidos ao governo federal, alegando um “déficit preocupante”. Na época, segundo o DG, eram 191 servidores cedidos, sendo que 60 estavam lotados no MJSP.

Segundo dados coletados no Diário Oficial da União (DOU), somente em 2020 foram identificadas 39 cessões e requisições de delegados federais para outros órgãos, confirmando uma preponderância do MJSP como destino desses agentes (48,7% do total de cessões).

Gráfico 01: Cessões e Requisições de Delegados Federais (2020)

Fonte: elaboração do autor, com base em dados coletados no Diário Oficial da União (DOU)

Como os dados coletados indicam, as cessões e requisições de delegados da PF também se estendem para outros domínios do Estado brasileiro, tais como as secretarias de segurança pública dos estados, os tribunais superiores, a presidência da República, o Conselho da Justiça Federal, entre outros. No entanto, ainda sabemos pouco sobre os efeitos desses investimentos políticos realizados pelos delegados ao longo de suas carreiras, em especial as dimensões do contato com movimentos político-partidários e as atividades junto a governos estaduais. Quais os impactos dessa circulação após o retorno dos delegados para a instituição?

Nesse ponto, o próprio ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, foi recrutado diretamente da secretaria de segurança pública do Distrito Federal, do governo de Ibaneis Rocha (MDB-DF). Antes disso, também havia sido chefe de gabinete do ex-deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR), também delegado de carreira. Seu escolhido para chefiar a PF, o delegado Paulo Maiurino, apresenta uma extensa trajetória política, com passagens pela corregedoria do DEPEN, pelos governos do Distrito Federal (gestão Agnelo Queiroz, PT), de São Paulo (gestão Geraldo Alckmin, PSBD) e do Rio de Janeiro (gestão Wilson Witzel, PSC), pela secretaria de segurança do Supremo Tribunal Federal e por uma assessoria no Conselho da Justiça Federal.

Assim, como referiu o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Evandir Paiva, em uma entrevista concedida em janeiro de 2020, uma instituição possuir autonomia e, ao mesmo tempo, a capacidade de influenciar politicamente no Congresso Nacional, seria o “melhor dos mundos”. Fazendo uma releitura de sua resposta, observamos que a diversificação das trajetórias dos delegados em posições de prestígio tem encontrado nesse “melhor dos dois mundos” caminhos amplos para a ascensão aos cargos mais altos da Polícia Federal ou ao primeiro escalão do governo federal.

Na semana passada, o delegado Alexandre Saraiva, da SR-AM, foi trocado logo após pedir ao STF a instauração de uma investigação em desfavor do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Esse evento colocou a PF novamente no centro do debate sobre interferências políticas ou trocas rotineiras, comuns quando novas gestões são iniciadas. Nesses momentos, o que era para ser “o melhor dos dois mundos” – entre a pleiteada autonomia da instituição e a proximidade com a política – pode vir a gerar mais dúvidas sobre a capacidade da PF de se manter afastada de ingerências externas e, ao que só podemos tomar como hipótese nesse momento, se tornar uma arma poderosa para projetos políticos que visem proteger aliados e garantir a perpetuação no poder.

* Doutorando em Ciência Política na UFRGS. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Membro do Núcleo de Estudos em Elites, Justiça e Poder Político (NEJUP/UFRGS)

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Na edição desta semana, leia também “Covid-19 e morte de policiais: crônica de uma tragédia anunciada” e “Tráfico de drogas na percepção policial e os custos para a sociedade”.

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Militarização da Segurança Pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/#respond Thu, 18 Mar 2021 19:57:45 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/bolsonarofaces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1696 Polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de Bolsonaro, enquanto os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e obtiveram conquistas políticas

Renato Sérgio de Lima*

Circulou, na semana que passou, um áudio atribuído a um Policial Rodoviário Federal que acusa o Governo de Jair Bolsonaro de levar adiante um “Lockdown Policial” cujo objetivo, na prática, seria o enfraquecimento das polícias civis, federal, rodoviária federal, penal federal e penais estaduais. Até por isso, para o autor do áudio, há em curso um adiantado plano de militarização da segurança pública no Brasil e de destruição das forças civis de segurança.

Para sustentar a sua hipótese, o autor do áudio argumenta que o governo tem privilegiado as carreiras militares federal e estaduais em detrimento das demais forças policiais. Ele cita a Reforma da Previdência, que teria imposto regras de transição mais severas para as polícias de natureza civil; a Lei Complementar 173, que proíbe reajustes salariais durante a epidemia de Covid-19; e a PEC 186, que adota medidas permanentes e emergenciais de controle do crescimento das despesas obrigatórias e de reequilíbrio fiscal. Ele também menciona a proposta de Reforma Administrativa como um ponto de alerta.

A meu ver, o áudio toca em pontos relevantes da ação do governo no campo da segurança pública e, concordo, há uma clara predileção pelas forças militares federal e estaduais. Mas creio que o cenário seja um pouco mais complexo. Ao que tudo indica, estamos presenciando um movimento de reconfiguração do associativismo policial e um rearranjo entre as lideranças da área. O governo Bolsonaro estaria atuando para eliminar dissonâncias entre sua principal base eleitoral e usa as pautas policiais para se contrapor às demandas liberais de Paulo Guedes pela manutenção do teto fiscal sem, no entanto, romper com o “mercado”.

Assim, entendo que não há o rompimento propriamente dito que foi anunciado pela imprensa na semana passada. É fato que as polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de poder de Jair Bolsonaro, não obstante existir um nível grande de convergência ideológica mesmo entre elas. É um sutil paradoxo que precisa ser compreendido pelos analistas da área para que não sejamos abduzidos pelo jogo de marcação.

Se partirmos do reconhecimento desse paradoxo, veremos que há um contraponto de sobrevivência das lideranças sindicais civis tradicionais dado que os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e conseguiram algumas conquistas políticas – por mais que, em termos de carreiras, também não tenham avançado em nada substantivo. Ou as lideranças civis se reposicionam ou são engolidas e superadas por novos atores mais alinhados às expectativas das bases policiais.

Não à toa, de modo sagaz, as críticas mais pesadas partiram de entidades relativamente novas no jogo associativista, que são a UPB e a OPB (Ordem das Polícias do Brasil). Se o rompimento fosse real, as próprias associações individuais estariam assumindo o protagonismo, mas efetivamente elas estão funcionando como anteparo de mitigação e negociação; elas aproveitam a repercussão e reabrem canais de negociação.

Isso não significa que não existam insatisfações crescentes e/ou reclamações pertinentes sobre o abandono de demandas corporativistas. Um exemplo é a explicitação, por parte da Associação de Delegados da Polícia Federal, de não ter nenhum canal de diálogo com o Ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública. No entanto, o embate parece ser mais sobre capital político e prestígio de ser ouvido do que sobre o endereçamento de demandas históricas de reforma da arquitetura da segurança pública.

Agora, no que diz respeito às polícias militares, que respondem por mais de 60% dos efetivos policiais do país e seus integrantes são os que mais têm aderido ao projeto de poder do atual presidente, adotaram uma tática diferente. Nesse caso, a opção foi por fortalecer as demandas das corporações, representadas pelos seus Comandantes Gerais, que negociam diretamente com o governo um reequilíbrio de forças e um projeto de autonomização vendido como de blindagem aos usos políticos.

As demandas associativistas estão em segundo plano e o que vale é a lógica militar clássica. O maior exemplo é o Projeto de Lei Orgânica das PM, que data de 2001, mas que na última segunda (16), teve um novo relator designado, o deputado do Capitão Augusto (PL/SP) que deve apresentar o substitutivo que está sendo negociado com o governo o mais rápido possível. Vale lembrar que o nome do Capitão Augusto já circulava como o relator ideal desde o início de 2020 e fazia parte de um pré-acordo com o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

Seja como for, o conteúdo do PL é extremamente concentrador de poderes nos oficiais das Polícias Militares e pouco avança sobre condições de vida e trabalho dos policiais militares. O foco das minutas de substitutivos que estão circulando está muito mais dedicado ao desenho de estratégias de autonomização das corporações dos governos estaduais e dos mecanismos de controle civil.

Por tudo isso, a novidade das pressões em torno do “rompimento” dos policiais com o governo não está no seu valor de face, ou seja, num fato indiscutível. O que estamos vendo é um movimento de pressão que visa reconfigurar o campo para que os policiais passem a fazer uma defesa inquestionável do governo ou, caso contrário, para que lideranças civis que atuam na chave sindical de modo mais isento e crítico sejam substituídas por novos e mais alinhados nomes. Esses já aparecem como os salvadores das categorias e devem rivalizar com nomes que há muito ocupam posições nas associações.

 

*Sociólogo e Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Lava Jato: ação estratégica em análise pelo STF” e “O Rei da Inglaterra não pode entrar na cabana do miserável”

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O controle da segurança privada no Brasil é fictício https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/27/o-controle-da-seguranca-privada-no-brasil-e-ficticio/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/27/o-controle-da-seguranca-privada-no-brasil-e-ficticio/#respond Fri, 27 Nov 2020 18:27:30 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/Rodrigo-Verpa-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1598 A Polícia Federal, a quem compete regular a atividade, não tem condições e nem pessoal suficiente para desempenhar esse papel. Também não pode multar ou criminalizar serviços irregulares, pois não há previsão legal para isso no país.

 

Cleber da Silva Lopes*

Em setembro de 2019, logo após a abjeta tortura de um jovem negro dentro de um supermercado de São Paulo, publiquei na seção Múltiplas Vozes do Boletim Fonte Segura um artigo sobre os abusos cometidos por profissionais de segurança privada. Na ocasião, atribui os problemas existentes a déficits de controle sobre o setor. Pouco mais de um ano depois, mais um caso de abuso infame contra um cidadão negro ocorre em outro supermercado, desta vez uma loja do Carrefour de Porto Alegre. Como nada mudou em relação ao controle da atividade de 2019 para cá, retomo o argumento central desenvolvido no artigo anterior.

Os mecanismos mais capazes de gerar serviços de segurança privada controlados estão localizados no interior das organizações de segurança, que estão em condições de saber e acompanhar o que seus funcionários fazem. Para que esse controle ocorra, essas organizações precisam estruturar sistemas internos comprometidos com a obtenção de serviços que sejam, ao mesmo tempo, eficientes para os clientes e respeitosos dos direitos humanos dos cidadãos.

Estudo que realizei na Região Metropolitana de Paulo no começo da década de 2010 mostrou que os clientes que tomam serviços no mercado são os principais atores capazes de afetar a maneira como empresas de segurança controlam seus funcionários. Quando os clientes demandam serviços de qualidade e respeitosos dos direitos humanos, o policiamento privado tende a ser executado com profissionalismo. Isso ocorre porque os clientes podem escolher os provedores de segurança que mais lhe agradam, substituindo aqueles cujos funcionários incorreram em desvios.

Mas os controles de mercado são falhos. Problemas ocorrem quando os tomadores de serviços querem reduzir custos, contratando empresas que não controlam adequadamente os seus funcionários; ou quando demandam ou toleram serviços de segurança privada agressivos ou pouco comprometidos com os direitos humanos. Nesses contextos, a tendência é que haja uma empresa de segurança disposta a entregar o que o contratante deseja.

As falhas nos controles de mercado descritas acima têm acometido o setor supermercadista brasileiro de maneira dramática. Para entender essas falhas, é preciso contextualizar a natureza das demandas por segurança privada nesse setor. Segundo a 20ª Avaliação de Perdas no Varejo Brasileiro de Supermercados (ABRAS), os supermercados brasileiros amargaram perdas da ordem de R$ 6,9 bilhões em 2019, o equivalente a 1,82% do faturamento bruto das empresas. O furto externo praticado por consumidores foi a segunda causa de perdas (17% do total), atrás apenas das perdas decorrentes de quebra operacional (39%). É nesse contexto que os serviços de segurança privada são demandados, sempre com o objetivo primário de aumentar o lucro líquido dos negócios. Diante dessas demandas, o compromisso com os direitos humanos, ao que parece, tem efetivamente ficado em segundo plano em muitos supermercados.

Para que o controle da segurança privada ocorra, é fundamental que tenhamos um ambiente regulatório no qual a sociedade e o Estado sejam capazes de aumentar os custos dos desvios de conduta tanto para prestadores quanto para tomadores de serviços, induzindo o controle do cliente e o autocontrole por parte das empresas. Esse ambiente regulatório também precisa ser igualmente capaz de gerar normas e incentivos para melhorar a qualidade dos serviços de segurança privada.

O vigor das reações da mídia e dos movimentos sociais ao assassinato de Beto Freitas são exemplos de como a sociedade pode controlar o setor, impondo danos reputacionais e econômicos a prestadores e tomadores de serviços. Mas é preciso não superestimar a importância desses mecanismos, que tendem a ser reativos e funcionar apenas diante de abusos dramáticos, persistentes ou que recaem sobre pessoas ou grupos em condições de realizar pressão.

O controle estatal via judiciário é outra forma de aumentar os custos dos desvios de conduta dentro do setor. Além da responsabilidade na esfera criminal que recairá sobre os autores do assassinato de Beto Freitas, a empresa de segurança e/ou o Carrefour provavelmente também serão responsabilizados na esfera civil, onde serão constrangidos a indenizar a família da vítima. Entretanto, estamos novamente aqui diante de um controle reativo, cujo sucesso depende de um processo judicial com desfecho favorável.

O controle estatal via regulação é o que está em melhor condição de induzir o controle no mercado de segurança privada. Entretanto, esse controle não tem funcionado a contento no Brasil. A Polícia Federal, que fiscaliza o setor, dispõe de poucos recursos para responsabilizar empresas cujos funcionários tenham cometidos abusos e para inibir aquelas que atuam clandestinamente, muitas das quais de propriedade de policiais ou parentes. Ela não pode multar ou criminalizar tomadores e prestadores de serviços de segurança irregular, pois não há previsão legal para isso. Mesmo que pudesse, não haveria recursos humanos para fiscalizar o amplo mercado clandestino. Para os casos de abusos cometidos por seguranças regulares, as regras existentes também não preveem nenhum tipo de sanção às empresas e/ou contratantes.

Para prevenir os abusos cometidos no setor de segurança privada, precisamos repensar a regulação estatal da segurança privada. Essa regulação precisa ser capaz de induzir os controles de mercado (autocontrole das empresas e controle dos clientes), corrigindo as falhas existentes. Exigir treinamentos mais extensos sobre o uso proporcional da força, códigos de conduta e o uso de armas menos letais em postos de serviço nos quais os seguranças estão em contato com os cidadãos são tópicos que precisam ser discutidos, assim como meios de controlar o mercado clandestino de segurança e a participação de policiais nele. Com a palavra o Senado, onde um novo marco regulatório para a segurança privada encontra-se atualmente em tramitação.

*Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS).

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A Polícia Federal, o SISBIN e a Democracia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/24/a-policia-federal-o-sisbin-e-a-democracia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/24/a-policia-federal-o-sisbin-e-a-democracia/#respond Sun, 24 May 2020 22:28:33 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/ISAC-NÓBREGA.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1436 Em meio ao agravamento das tensões entre Poderes e às tentativas de instrumentalização da PF, o Faces da Violência republica texto de autoria de Marco Cepik (UFRGS), publicado originalmente no fontesegura.org.br, que discute o papel da Polícia Federal no Sistema Brasileiro de Inteligência e que ajuda a compreender os movimentos políticos atuais.

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Bolsonaro tentou indicar o atual diretor da ABIN, delegado Alexandre Ramagem, para dirigir a Polícia Federal. Barrado pelo juiz Alexandre Moraes no STF, no dia 04/05/2020 o presidente empossou o delegado Rolando Alexandre de Souza, até então secretário de planejamento na ABIN, como diretor da PF. Além da controvérsia imediata sobre a existência de desvio de finalidade por causa da proximidade de Ramagem com a família Bolsonaro, o episódio nos obriga a refletir sobre as diferenças entre as funções investigativas e de inteligência na PF.

Primeiro, houve a invocação imprópria pelo presidente do decreto 9.881/2019 que alterou o funcionamento do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), como justificativa para querer pedir informações diretamente para a PF. Ora, a principal alteração trazida por aquele decreto foi a instituição de um Conselho Consultivo do SISBIN, como órgão de assessoramento do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI/PR). De fato, a Polícia Federal participa daquele Conselho. Mas o faz por meio da Diretoria de Inteligência Policial (DIP).

As demais diretorias da PF têm atribuições distintas e específicas (técnico-científica, administrativa e logística, tecnologia da informação, gestão de pessoal, corregedoria e, principalmente, investigação e combate ao crime organizado). No caso, as funções de polícia judiciária da União e a atividade investigativa da PF são regulamentadas pelo Código de Processo Penal e pela Lei 10.446/2002, certamente não pela Lei 9.883/1999 que instituiu o SISBIN. As funções investigativas e de inteligência da PF, em tese, não se confundem. A inteligência tem função de assessoramento para decisões estratégicas. Enquanto o foco da investigação é o crime e os criminosos, o foco da inteligência é (ou deveria ser) a criminalidade.

Um segundo aspecto decorre justamente da precária regulamentação das operações de inteligência no Brasil, algo particularmente grave na área de segurança pública. Em 2016, foi divulgada uma Política Nacional de Inteligência (PNI) por meio do Decreto 8.793. No ano seguinte, um Decreto sem número de 15 de dezembro de 2017 oficializou uma Estratégia Nacional de Inteligência (ENINT). Embora a criminalidade organizada, a corrupção e as ações contrárias ao Estado Democrático de Direito tenham sido incluídas no rol de ameaças com potencial para colocar em perigo a integridade da sociedade e a segurança nacional, nenhum dos dois documentos avança na especificação de missões prioritárias ou próprias de cada órgão do SISBIN.

No caso da ENINT, um dos objetivos estratégicos fala apenas em “criar protocolos específicos para atuação integrada em relação às seguintes ameaças: corrupção, crime organizado, ilícitos transnacionais e terrorismo”. O problema é que o número de órgãos federais que participam do SISBIN aumentou de 22 em 2002 para 42 em 2020. No caso do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, além da DIP participam do Conselho do SISBIN a Diretoria de Inteligencia da Secretaria de Operações Integradas (SEOPI), a Diretoria de Inteligência do DEPEN, a SENASP, o DRCI, a PRF e a CONPORTOS. Isso para não falar do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (SISP), criado pelo Decreto 3695/2000 e que envolve principalmente as forças estaduais.

A Lei 13675/2018 que criou o SUSP fala em inteligência de segurança pública e defesa social, mas também em inteligência policial. Seja como for, nenhum dos órgãos estaduais ou federais com atuação nessas áreas tem regulamentadas as operações de inteligência no território nacional ou no exterior. Por razões tecnológicas, organizacionais e culturais, tanto na esfera militar quanto na policial há uma tendência para uso tático e não estratégico dos conhecimentos produzidos pela inteligência. E, como aprendemos na crise institucional em torno da Operação Satiagraha (2011), há risco moral, jurídico e político quando as duas atividades se confundem.

Portanto, o terceiro aspecto diz respeito ao controle externo das atividades de inteligência dos órgãos que compõem o SISBIN. Prevista em lei desde 1999, a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional (CCAI) funcionou precariamente desde então e só teve seu regimento interno aprovado em 2013 (Resolução 02-CN). As atribuições da CCAI abrangem todos os órgãos do SISBIN, incluindo “todas as ações referentes à supervisão, verificação e inspeção das atividades de pessoas, órgãos e entidades relacionados à inteligência e contrainteligência no Brasil”. Na prática, porém, não há evidências de que consiga ser efetiva. Mesmo no caso da ABIN, uma agência civil e que alcançou um alto nível de profissionalização e transparência (compatível com o segredo governamental), a assertividade da CCAI é baixa.

A ABIN conta com um Assessor de Controle Interno (ACI), que tem a atribuição de acompanhar o atendimento das recomendações e determinações da Secretaria de Controle Interno da Presidência de República (CISET/PR) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Mas a função da CCAI vai além da fiscalização sobre a conformidade legal, constituindo na prática o único locus possível de construção de legitimidade e de integração dos interesses burocráticos diversos em uma visão cidadã das prioridades estratégicas e governança democrática. A inteligência militar, policial e financeira atuam hoje sem nenhum tipo de controle congressual. A CCAI atualmente é presidida pelo senador Nelsinho Trad (PSD/MS), tendo com vice-presidente justamente o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL/SP).

Como diz o ditado chinês, do outro lado da moeda existe outro lado. A fragilidade dos órgãos de controle externo da atividade de inteligência pode levar a dois tipos de abuso. Da parte de governantes com interesses e agendas imediatos. Mas também das próprias corporações, protegidas pela complexidade técnica e pelo segredo legal em suas atividades. Nesse sentido, a autonomia funcional da PF para cumprir sua dupla função na manutenção da segurança pública e no provimento de justiça criminal não deveria ser de modo algum confundida com “independência” para se evadir de prestar contas e justificar para o público suas prioridades e as consequências de suas ações. A democracia depende de sermos capazes de evitar ambos os tipos de abuso.

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O risco da militância política de policiais sem controle https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/17/o-risco-da-militancia-politica-de-policiais-sem-controle/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/17/o-risco-da-militancia-politica-de-policiais-sem-controle/#respond Sun, 17 May 2020 16:25:29 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/jair-bolsonaro-ao-lado-de-alexandre-ramagem-1589719519419_v2_900x506.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1425 A revelação feita pelo empresário Paulo Marinho em entrevista para a jornalista Mônica Bergamo publicada pela Folha de S.Paulo neste domingo (17) de que um Delegado de Polícia Federal antecipou a Flávio Bolsonaro que seu braço direito, Fabrício Queiroz, seria alvo da operação Furna da Onça da PF, e, ainda segundo a versão de Marinho, a deflagração da operação foi adiada para não prejudicar o então candidato Jair Bolsonaro é mais um capítulo da excessiva politização das polícias, excessivamente nocivo para elas próprias e para a sociedade brasileira.

Este não é um fenômeno recente. O episódio narrado por Paulo Marinho lembra bastante o do Delegado Agílio Monteiro Filho, que era filiado ao PSDB durante a sua gestão à frente da Direção Geral da PF, entre 2001 e 2003, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e depois foi trabalhar como gestor da área prisional de Minas Gerais, sob o comando do então governador Aécio Neves.

Monteiro Filho foi militante partidário ao mesmo tempo que ocupava o principal cargo da Polícia Federal e continuou prestando seus serviços ao PSDB após sua saída do cargo. Era um homem de confiança do partido do então presidente. Em tempos mais recentes, o filho do atual presidente, Eduardo Bolsonaro, é escrivão licenciado da Polícia Federal e dois vices-líderes do governo na Câmara dos Deputados são policiais: os deputados Ubiratan Antunes Sanderson (policial federal eleito pelo PSL/RS) e Fabiana Silva de Souza Poubel (Major da PMERJ eleita pelo PSL/RJ).

E é neste ambiente que temos que analisar as tentativas de aparelhamento da Polícia Federal pelo governo de Jair Bolsonaro, que não tiveram início apenas a partir do pedido de demissão do ex-ministro Sergio Moro do cargo de Ministro da Justiça e Segurança Pública, no dia 24 de abril. Mas, ao sair atirando, o ex-ministro explicitou que a instrumentalização da Polícia Federal é um risco que há muito tem preocupado os operadores da área.

É verdade que, desde 2003, quando o delegado Paulo Lacerda deu início a um amplo projeto de modernização da PF, com a contratação de novos quadros e investimento em tecnologia e inovação, a corporação reforçou seu projeto institucional de independência e autonomia. Porém, também é fato que é sabido pelos políticos o caráter estratégico de ter um aliado na direção geral da corporação.

Isso porque, mesmo arredia a influências diretas, a PF tem uma estrutura organizacional que dá grande poder ao diretor-geral e aos superintendentes, que podem, no limite, nomear delegados para investigações específicas e/ou fixar os recursos logísticos que cada inquérito poderá contar, bem como definir quando uma operação será deflagrada. Isso mostra que nenhuma instituição é imune ao uso político, ainda mais quando seus próprios integrantes militam e fazem parte de um projeto político de poder.

Ao mesmo tempo, se a proximidade da polícia com a política é um fato normal da vida republicana, quando ela não é regulada e regrada, abre espaço para potenciais conflitos de interesse, dúvidas e indicações políticas. Não há indicadores transparentes e métricas de sucesso que sejam tecnicamente robustas e que poderiam fortalecer mecanismos independentes de controle e supervisão que viabilizariam a ideia dos mandatos para os cargos de direção das polícias sem, no entanto, a delegação de poderes absolutos para uma instituição de força.

Quando a política entra nas polícias, carreiras podem ser comprometidas e tudo vira uma enorme zona de sombras e desconfianças, como nos filmes de conspiração e espionagem de Hollywood. Muitos são os policiais que conectam suas carreiras nas corporações com a defesa de projetos políticos e eleitorais específicos.

O número de policiais que se candidataram a cargos eletivos e não foram eleitos, por exemplo, chega à casa de milhares no país e é um dilema organizacional gigantesco para o bom planejamento e supervisão da atividade policial cotidiana. Uma vez não eleitos, a maioria desses mesmos profissionais, que não estão sujeitos a regras de quarentena, voltam para as suas corporações, que têm, por sua vez, que gerir demandas de segurança pública e pressões internas sobre os rumos das políticas públicas.

E esse movimento revela um quadro de politização extrema e de falta de foco nas políticas efetivas de prevenção e enfrentamento da violência e da criminalidade, mas também reforça que é imperioso destacar que o Brasil conta com diversos policiais amplamente qualificados e que merecem respeito e valorização.

O drama é que, somado à incerteza político-institucional que toma conta do país, essa valorização fica relegada ao plano dos discursos e há um reforço de um modelo que funciona como um sistema de vetos perfeito, que impossibilita mudanças estruturais e estimula conflitos. Questões técnicas transformam-se em arenas de disputas ideológicas e políticas.

Uma saída que poderia ser articulada seria a costura de um amplo e único projeto de lei orgânica das polícias brasileiras, que regulamentasse, enfim, o parágrafo sétimo do Artigo 144 da CF. Só assim poderíamos focar em reduzir a violência e o crime no país. Um projeto que contemple pontos comuns da gestão das polícias e, ao mesmo tempo, garanta as especificidades de cada corporação.

É fundamental e urgente deixarmos mais claros os mandatos, as competências, o grau de autonomia, as regras de quarentena e transição entre as carreiras policiais e a política, bem como os mecanismos de supervisão de cada uma delas. Ou seja, sem antes pactuarmos regras claras e transparentes de accountability e blindarmos as decisões operacionais de policiais engajados em projetos político-eleitorais, falar de autonomia da PF agora é um risco ainda maior para o país; um risco de jogarmos fora anos de investimentos na profissionalização da corporação e  incentivarmos a militância partidária de policiais sem controle.

 

*Este artigo aproveita, em parte, reflexão feita na edição 37 do Boletim Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (www.fontesegura.org.br)

 

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