Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Rio é um dos maiores desafios de Segurança Pública no mundo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/rio-maiores-desafios-seguranca-publica-mundo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/rio-maiores-desafios-seguranca-publica-mundo/#respond Mon, 10 May 2021 22:47:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/policiais-foto-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1764 O controle do uso da força policial é preocupação permanente para democracias liberais consolidadas; reforma da polícia ajudou muitas das grandes cidades norte-americanas a atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história 

Alberto Kopittke*

 

Com uma grande união de forças, liderança política e investimento financeiro seria plenamente possível construir um plano capaz de reduzir a violência no Rio de Janeiro. Sim, o Rio de Janeiro é um dos maiores desafios para a Segurança Pública do mundo, mas já existe conhecimento suficiente acumulado sobre o que funciona para reduzir a violência para construir um grande e exitoso plano na cidade. Não se acabaria com o tráfico de drogas, assim como ele não acabou em Nova York, nem Medellín, mas seria possível retirar das organizações criminosas o controle de comunidades, armamento de grande porte e controlar homicídios e roubos.

Um plano de longo prazo, suprapartidário, que envolvesse um esforço de união nacional, com ações bem planejadas e coordenadas que viriam desde a reformulação do sistema prisional, um plano de reurbanização, a implementação de metodologias estruturadas de prevenção à violência e programas sociais, tecnologia de ponta e um significativo fortalecimento da área de inteligência das forças de segurança, sem dúvida conseguiria reduzir a violência de forma sustentável e permanente na cidade.

Tarefa mais difícil e demorada, no entanto, é reduzir a violência e a corrupção policiais. A chacina de Jacarezinho veio se somar a um macabro e longo histórico de episódios brutais provocados por algumas forças de segurança pública do país, totalmente fora de qualquer parâmetro razoável, compreensível e aceitável. Além das dezenas de jovens, a cada nova chacina morre também nossa democracia.

Nos EUA, o chamado “Primeiro Grande Despertar” contra a violência policial chacoalhou o país entre os anos 1960 e 1970, de forma muito mais forte do que nos episódios recentes das mortes de David Brown e George Floyd. A comunidade negra daquele país se organizou e passou a não aceitar mais a forma como era tratada pela polícia, resultando em grandes manifestações e muitos episódios de confrontos violentos que paralisaram as grandes cidades, às vezes por semanas, e em muitos casos resultaram em dezenas de mortes.

Como consequência daquelas mobilizações, prefeitos progressistas, chefes de polícia reformistas e a Suprema Corte realizaram reformas profundas sobre o controle do uso da força. Essas reformas incluíram a demissão de dezenas de policiais com histórico de violência, a redução da discricionariedade dos policiais, o fortalecimento dos mecanismos de controle interno, o aumento da transparência e a imposição de indenizações milionárias pela justiça como consequência de episódios de violência. Como resultado, entre 1970 e 1985, o número de mortes provocadas pela polícia caiu 51%, sendo que essa queda foi de 72% entre jovens negros entre 15 a 34 anos e a diferença entre o número de negros e brancos mortos pela polícia caiu de 7,5 vezes para 3. O problema é historicamente tão profundo que mais de mil pessoas ainda nos dias de hoje são mortas pela polícia, muitas vezes com brutalidade racista.

Vinte anos depois das grandes reformas internas, fato é que uma nova geração de policiais, formada dentro de uma nova mentalidade, liderou experiências significativas de redução da criminalidade e as polícias saíram fortalecidas e modernizadas desse processo, além de mais efetivas para prevenirem a violência. Essas novas polícias representaram o avanço decisivo para muitas das grandes cidades norte-americanas atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história.

Já no Brasil, nem mesmo as 45 mil mortes provocadas por intervenção policial na última década são capazes de mobilizar forças para dialogar sobre mudanças necessárias nas corporações. Ainda que ela seja agora exaltada como virtude, a violência policial não começou no atual governo. Durante os sete governos democráticos que o país teve desde a Constituição de 1988, com importantes exceções, o tema não foi tratado com a prioridade devida, o que agora vemos que cobra um alto preço para a democracia no país. E mesmo depois de tudo o que vivemos nos últimos anos, ainda não é possível vislumbrar que algum novo governante democrático que suba a rampa do Palácio do Planalto apresentará uma agenda de grande impacto nessa área.

O Governo Federal precisa assumir um novo papel na Segurança Pública. Instituições estaduais não conseguem investigar e promover mudanças de fato em situações tão graves como a do Rio de Janeiro; assim como a Inspetoria do Exército, responsável pelo controle das polícias militares, e o Ministério Público, responsável pelo controle das polícias civis, foram incapazes de promover avanços substanciais nesse tema desde a Constituição de 1988.

Um sistema federal de controle das polícias, com uma nova instituição federal especializada, poderia ter um papel importante. Nos EUA a Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça tem poderes para realizar investigações e processar policiais e até mesmo de realizar intervenções sobre as polícias, com o afastamento de toda a sua direção e a realização de remodelações internas profundas, o que já foi feito 17 vezes desde 1994.

A Inglaterra, que tem índices mínimos de criminalidade e de violência policial, possui um órgão federal chamado Escritório Independente sobre Conduta Policial. Sempre que uma das 43 ouvidorias estaduais recebe uma denúncia de um fato grave cometido por algum policial ele deve obrigatoriamente repassar essa denúncia para o Escritório Nacional, que inicialmente monitora as providências adotadas em nível estadual e quando necessário abre uma investigação independente sobre o caso. O órgão possui 890 servidores e um orçamento de 73 milhões de libras, o equivalente a R$ 335 milhões. As investigações podem resultar em denúncias ao Ministério Público Federal ou em recomendações para modificações em protocolos operacionais, que têm poder vinculativo e devem obrigatoriamente ser adotadas pelas polícias.

Como se vê por esses exemplos, o tema é uma preocupação permanente das democracias liberais consolidadas e não de regimes autoritários de esquerda ou de direita.

No Brasil, algumas medidas que não exigiriam grande volume de recursos, mas sim a disposição política de lideranças democráticas, poderiam gerar grande impacto. Uma pesquisa anual de vitimização e avaliação das polícias, como é feita em muitos países desenvolvidos, poderia orientar o repasse de recursos federais e determinar a abertura de investigações especiais naqueles locais em que muitas pessoas afirmarem não confiar na polícia ou serem vítimas de violência policial. Relatórios anuais de letalidade policial, uso de armas de fogo e de todas as formas de uso da força poderiam mostrar as unidades onde o problema da violência se concentra. Sistemas de alerta precoce poderiam auxiliar a expulsar novos policiais de perfil violento.

Câmeras de corpo ligadas automaticamente poderiam ajudar a trazer informações importantes sobre as ocorrências, assim como a obrigatoriedade de acompanhamento por diferentes instituições de controle das operações de risco em salas de comando e controle especiais, com o registro formal das ordens de toda cadeia de comando. A restrição de determinados tipos de treinamento e armas a unidades especiais, empregadas a partir de um protocolo nacional e forças tarefas entre o poder judiciário, ministério público e polícia federal poderiam combater grupos de extermínio altamente letais. Essas são algumas das mudanças possíveis, sem falar ainda em outras medidas que o Poder Judiciário poderia adotar, como a responsabilização dos superiores quando se tratar de Operações oficiais.

É sempre importante destacar que embora o tema seja muito grave, ele é altamente concentrado em alguns estados brasileiros e análises mais profundas possivelmente demonstrarão que se concentram em poucas unidades do conjunto das instituições e em pequenos grupos dentro delas, que mancham reiteradamente a imagem das instituições. Reformas internas importantes inclusive já tem sido feita em algumas instituições do país e esse processo deveria se tornar uma bandeira de todos aqueles que efetivamente defendem policiais modernas e efetivas contra o crime.

A inédita Lei George Floyd, fruto de mais um despertar e da nova onda de mudanças em curso nos EUA, tem como foco a regulação do uso da força pelas polícias e deverá ser aprovada nos próximos dias. Cabe pelo menos sonhar com um diálogo amplo das forças democráticas da sociedade brasileira sobre o que poderia vir a ser uma Lei Jacarezinho, para ajudar o país a dar os primeiros passos contra chacinas a céu aberto executadas por quem deveria antes de tudo proteger e não manchar comunidades inteiras de pavor e de sangue.

*Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Na edição desta semana, leia também “Ciência e erro na investigação policial” e “Uma milícia no Rio Grande do Sul?”.

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Militarização da Segurança Pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/#respond Thu, 18 Mar 2021 19:57:45 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/bolsonarofaces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1696 Polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de Bolsonaro, enquanto os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e obtiveram conquistas políticas

Renato Sérgio de Lima*

Circulou, na semana que passou, um áudio atribuído a um Policial Rodoviário Federal que acusa o Governo de Jair Bolsonaro de levar adiante um “Lockdown Policial” cujo objetivo, na prática, seria o enfraquecimento das polícias civis, federal, rodoviária federal, penal federal e penais estaduais. Até por isso, para o autor do áudio, há em curso um adiantado plano de militarização da segurança pública no Brasil e de destruição das forças civis de segurança.

Para sustentar a sua hipótese, o autor do áudio argumenta que o governo tem privilegiado as carreiras militares federal e estaduais em detrimento das demais forças policiais. Ele cita a Reforma da Previdência, que teria imposto regras de transição mais severas para as polícias de natureza civil; a Lei Complementar 173, que proíbe reajustes salariais durante a epidemia de Covid-19; e a PEC 186, que adota medidas permanentes e emergenciais de controle do crescimento das despesas obrigatórias e de reequilíbrio fiscal. Ele também menciona a proposta de Reforma Administrativa como um ponto de alerta.

A meu ver, o áudio toca em pontos relevantes da ação do governo no campo da segurança pública e, concordo, há uma clara predileção pelas forças militares federal e estaduais. Mas creio que o cenário seja um pouco mais complexo. Ao que tudo indica, estamos presenciando um movimento de reconfiguração do associativismo policial e um rearranjo entre as lideranças da área. O governo Bolsonaro estaria atuando para eliminar dissonâncias entre sua principal base eleitoral e usa as pautas policiais para se contrapor às demandas liberais de Paulo Guedes pela manutenção do teto fiscal sem, no entanto, romper com o “mercado”.

Assim, entendo que não há o rompimento propriamente dito que foi anunciado pela imprensa na semana passada. É fato que as polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de poder de Jair Bolsonaro, não obstante existir um nível grande de convergência ideológica mesmo entre elas. É um sutil paradoxo que precisa ser compreendido pelos analistas da área para que não sejamos abduzidos pelo jogo de marcação.

Se partirmos do reconhecimento desse paradoxo, veremos que há um contraponto de sobrevivência das lideranças sindicais civis tradicionais dado que os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e conseguiram algumas conquistas políticas – por mais que, em termos de carreiras, também não tenham avançado em nada substantivo. Ou as lideranças civis se reposicionam ou são engolidas e superadas por novos atores mais alinhados às expectativas das bases policiais.

Não à toa, de modo sagaz, as críticas mais pesadas partiram de entidades relativamente novas no jogo associativista, que são a UPB e a OPB (Ordem das Polícias do Brasil). Se o rompimento fosse real, as próprias associações individuais estariam assumindo o protagonismo, mas efetivamente elas estão funcionando como anteparo de mitigação e negociação; elas aproveitam a repercussão e reabrem canais de negociação.

Isso não significa que não existam insatisfações crescentes e/ou reclamações pertinentes sobre o abandono de demandas corporativistas. Um exemplo é a explicitação, por parte da Associação de Delegados da Polícia Federal, de não ter nenhum canal de diálogo com o Ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública. No entanto, o embate parece ser mais sobre capital político e prestígio de ser ouvido do que sobre o endereçamento de demandas históricas de reforma da arquitetura da segurança pública.

Agora, no que diz respeito às polícias militares, que respondem por mais de 60% dos efetivos policiais do país e seus integrantes são os que mais têm aderido ao projeto de poder do atual presidente, adotaram uma tática diferente. Nesse caso, a opção foi por fortalecer as demandas das corporações, representadas pelos seus Comandantes Gerais, que negociam diretamente com o governo um reequilíbrio de forças e um projeto de autonomização vendido como de blindagem aos usos políticos.

As demandas associativistas estão em segundo plano e o que vale é a lógica militar clássica. O maior exemplo é o Projeto de Lei Orgânica das PM, que data de 2001, mas que na última segunda (16), teve um novo relator designado, o deputado do Capitão Augusto (PL/SP) que deve apresentar o substitutivo que está sendo negociado com o governo o mais rápido possível. Vale lembrar que o nome do Capitão Augusto já circulava como o relator ideal desde o início de 2020 e fazia parte de um pré-acordo com o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

Seja como for, o conteúdo do PL é extremamente concentrador de poderes nos oficiais das Polícias Militares e pouco avança sobre condições de vida e trabalho dos policiais militares. O foco das minutas de substitutivos que estão circulando está muito mais dedicado ao desenho de estratégias de autonomização das corporações dos governos estaduais e dos mecanismos de controle civil.

Por tudo isso, a novidade das pressões em torno do “rompimento” dos policiais com o governo não está no seu valor de face, ou seja, num fato indiscutível. O que estamos vendo é um movimento de pressão que visa reconfigurar o campo para que os policiais passem a fazer uma defesa inquestionável do governo ou, caso contrário, para que lideranças civis que atuam na chave sindical de modo mais isento e crítico sejam substituídas por novos e mais alinhados nomes. Esses já aparecem como os salvadores das categorias e devem rivalizar com nomes que há muito ocupam posições nas associações.

 

*Sociólogo e Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Lava Jato: ação estratégica em análise pelo STF” e “O Rei da Inglaterra não pode entrar na cabana do miserável”

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O reconhecimento fotográfico em delegacias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/05/o-reconhecimento-fotografico-em-delegacias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/05/o-reconhecimento-fotografico-em-delegacias/#respond Fri, 05 Mar 2021 13:51:11 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/presos-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1688 Apesar da ausência de previsão legal para utilização como prova, recurso é muito empregado. Debate sobre possíveis erros judiciais precisa ser ampliado

Mauricio Garcia Saporito*

A pedido do Programa Fantástico, da TV Globo, o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege), com o indispensável apoio da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), realizou um estudo sobre a utilização de reconhecimentos fotográficos em sede policial. O objetivo era apontar possíveis falhas na utilização daquele meio de prova enquanto formador da culpa em processos criminais.

Durante os meses de novembro e dezembro de 2020, defensoras públicas e defensores públicos estaduais com atuação criminal encaminharam à diretoria de pesquisas da DPRJ casos que envolvessem necessariamente três requisitos: o reconhecimento pessoal em sede policial ter sido feito por fotografia; o reconhecimento não ter sido confirmado em juízo; a sentença ter sido de absolvição.

Cabe ressaltar que o recorte da pesquisa tinha que envolver absolvição, logo, em 100% dos processos analisados houve o reconhecimento e acusação formal de uma pessoa declarada inocente por sentença judicial.

Foram relacionados na pesquisa 28 processos com 32 acusados, já que em quatro processos haviam dois acusados. A lista dos processos abrangeu dez estados brasileiros, sendo 13 casos do Rio de Janeiro, três da Bahia; dois casos cada para os estados de Goiás, Minas Gerais, Santa Catarina e São Paulo; e um caso por estado para Mato Grosso, Paraíba, Rondônia e Tocantins. A distribuição dos processos aconteceu entre 2012 e 2020.

Quanto aos crimes imputados, a pesquisa encontrou dois homicídios consumados, um homicídio tentado e um furto. Os demais foram acusações pelo crime de roubo.

Digno de ser muito ressaltado foi a cor da pele das pessoas reconhecidas por fotografia e posteriormente absolvidas. Apenas 17% dos submetidos aos reconhecimentos fotográficos eram brancos. Todos os demais 83% eram de cor negra que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), inclui pretos e pardos.

Outro dado alarmante se refere ao uso da prisão preventiva. Em 19 casos a prisão cautelar foi decretada. O tempo de segregação variou muito, de 24 a 851 dias, o que significa que um dos acusados ficou preso por aproximadamente dois anos e três meses com base apenas em um reconhecimento pessoal por fotografia realizado durante a investigação policial.

Durante a análise, ganharam destaque três episódios que demonstraram como o reconhecimento, pessoal ou fotográfico, mesmo com todos os riscos inerentes às provas dependentes da memória, acaba sendo considerado suficiente para se levar alguém a julgamento.

No primeiro caso destacado, a vítima reconheceu uma pessoa que estava presa na data do crime. A autoridade policial responsável pela investigação sequer diligenciou junto ao sistema informativo da Secretaria de Administração Penitenciária para descobrir que aquela pessoa indiciada não poderia ter participado de nenhum fato criminoso fora do ambiente carcerário.

No segundo destaque,  a vítima teria reconhecido a fotografia de uma pessoa monitorada eletronicamente. Novamente o delegado de polícia poderia ter pedido o rastreamento da tornozeleira para comprovar a hipótese acusatória, o que não aconteceu.

Por fim, o estudo destacou o reconhecimento de uma pessoa que estava no exterior na data do crime apurado. Tudo comprovado nos autos. Não é crível que o delegado de polícia responsável pela investigação não pudesse ter acesso a esses dados, que poderiam ter sido facilmente entregues pela Polícia Federal.

A verdade é que, analisando todos os processos relacionados, podemos concluir, sem nenhum medo de errar, que apesar da ausência de previsão legal para a realização de reconhecimentos fotográficos como prova, ele ainda é muito empregado e, ressalte-se, sem nenhum critério. Sequer sabemos como essas fotos foram tiradas e como são apresentadas.

Outro ponto importantíssimo é que, realizado o reconhecimento, as autoridades policiais desistem de outras diligências necessárias à elucidação do crime, entendendo que materialidade e autoria estão devidamente comprovados.

A intenção do relatório não foi e nem é atribuir culpa a esse ou àquele ator do sistema de justiça penal, mas sim que seja ampliado o debate sobre a possibilidade de erro judicial e da limitação do que hoje é considerado prova no processo penal. Que estudos com tamanha profundidade sejam o ponto de partida para preenchermos a lacuna deixada pelo livre convencimento motivado, permitindo seu melhor controle em todas as fases da persecução penal.

 

*Defensor Público do Estado da Bahia, coordenador da Comissão Criminal Permanente do Condege (Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais).

 

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Na edição desta semana, leia também “Fundo Nacional de Segurança Pública tem gasto recorde em 2020” e “Violência doméstica e Covid: desafios para o acesso das mulheres à Justiça”.

 

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Sergio Moro amplia operações da PF e reduz convênios com estados e municípios https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/15/sergio-moro-amplia-operacoes-da-pf-e-reduz-convenios-com-estados-e-municipios/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/15/sergio-moro-amplia-operacoes-da-pf-e-reduz-convenios-com-estados-e-municipios/#respond Sat, 15 Jun 2019 14:30:04 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/Moro-e-Bolsonaro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=916 Faz nove dias que o Brasil foi abalroado pelos vazamentos de mensagens atribuídas aos procuradores do Ministério Público Federal em Curitiba e ao ex-Juiz Sergio Moro, pelo site The Intercept, e meio que navega à deriva e à mercê das correntezas da política. Como bem ilustrou Luis Francisco Carvalho Filho em sua coluna na Folha de hoje (15), o país vai caminhando de escândalo em escândalo para o abismo do populismo e da devastação ética.

Luis Francisco resumiu com perfeição o que é integrar o governo de Jair Bolsonaro, “político profissional que convive com milicianos, admira torturadores, […] e conspira contra povos indígenas, gays e florestas”. Segundo o colunista, integrar um governo com este perfil não é ambição de humanistas, pois temos um governo incapaz de lidar com o significado da Constituição e das cláusulas pétreas.

O que tem emergido para a superfície da relação entre justiça e política é extremamente preocupante para quem, independente das preferências partidárias e eleitorais, está preocupado com o devido processo de um Estado Democrático de Direito. Porém, para quem se dedica a pensar tecnicamente no processo de formulação e implementação de políticas mais eficientes de segurança pública, o cenário também é de expectativa e cautela.

Isso porque, se olharmos os números disponíveis, o Governo Federal, no âmbito do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, de Sergio Moro, divulgou na quarta-feira (12) a continuidade da queda dos homicídios iniciada no começo de 2018 e que, só primeiro bimestre de 2019, atingiu 23%. E, ao contrário do que matraqueiam os adeptos cegos ou interessados, o Governo Federal não é o responsável por esta queda e, pior, não tem a menor ideia do que ocorre no país para justificá-la.

Quem trabalha seriamente na área sabe que homicídio é um fenômeno multicausal e que múltiplas variáveis interferem no movimento e na tendência deste tipo de ocorrência. Na esfera estatal, não existe mágica, mas trabalho e dedicação em torno da melhoria das políticas públicas da área. E, indiscutivelmente, os estados e o Distrito Federal ocupam um papel-chave na segurança pública. Se não são os únicos responsáveis pelo setor, são eles que gerenciam as polícias Civil e Militar, encarregadas de manter a ordem pública e investigar crimes e delitos.

Temos 54 polícias estaduais que atuam no limite de suas capacidades institucionais, muitas delas sucateadas e carentes de investimentos. E isso em um contexto em que recursos para as polícias estão, dadas as condições econômicas do país, cada vez mais escassos. Com exceção de São Paulo, todas as demais Unidades da Federação dependem quase que exclusivamente de recursos federais para poderem fazer investimentos e adquirirem novos equipamentos e tecnologias.

E o que faz o Ministério da Justiça? Sobrecarrega as polícias estaduais com demandas para que efetivos sejam alocados na Força Nacional e, o que seria uma contrapartida para esse envio de homens e mulheres, praticamente não repassa recursos para as Unidades da Federação por intermédio de convênios (é necessário conferir repasses diretos fundo-a-fundo). Levantamento inédito do Fórum Brasileiro de Segurança Pública identificou que, em 2019, o MJ assinou 234 convênios com estados e municípios, sendo 228 no dia 02 de janeiro, em um claro indício de que eram parcerias que estavam sendo negociadas e analisadas na Gestão Temer. De lá para cá, somente 6 convênios foram assinados.

E, mesmo considerando que 234 convênios foram assinados, nota-se que foram empenhados apenas cerca de R$ 168 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública, principal fonte de parcerias com as polícias estaduais, mas quase nenhum dinheiro desse valor ainda foi liberado. Ainda segundo o levantamento, que é preliminar, no MJ como um todo, foram empenhados cerca de R$ 355,4 milhões para os estados mas liberados irrisórios R$ 857,7 mil.

Em paralelo, organiza e coordena nacionalmente operações integradas das Polícias Civis, o que é positivo, mas apenas dá suporte de inteligência pois esta é uma atividade em que mobiliza quase nenhum recurso federal e o mérito maior deveria caber às polícias locais. O mesmo ocorre com o SINESP, que é o sistema nacional de dados e é um consórcio pactuado entre União, estados e Distrito Federal. Em seu anúncio, no começo do ano, os secretários estaduais não estavam presentes e todos os louros ficaram apenas para o Governo Federal.

E, ainda em fase de planejamento e cujo anúncio deve ocorrer por volta do dia 26/06, finaliza um plano de enfrentamento aos crimes violentos (o planejamento da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), com detalhamento de ações, matriz de responsabilidades e definição de enfoques merece aqui elogios, pois ao contrário de outras ações improvisadas está sendo feito com grande profissionalismo. Importante saber se teremos métricas e previsão de mecanismos de monitoramento e avaliação).

No plano das atribuições exclusivamente federal, zona em que o Ministro Moro sente-se mais confortável pois não exige negociar prioridades com Governadores e Secretários Estaduais, levantamento do Professor Rogério Arantes, da Universidade de São Paulo, revela que houve um incremento de 43,3% no número de operações noticiadas pela Polícia Federal entre 01 de janeiro e 14 de junho de 2019 em relação ao mesmo período de 2018. Até ontem, a PF havia noticiado 427 operações em 2019, enquanto em 2018, no mesmo período, tinham sido noticiadas 298.

O problema aqui é que, da mesma forma como as polícias estaduais, esse crescimento é feito com o mesmo efetivo existente na PF faz anos e só recentemente o Presidente Bolsonaro anunciou a convocação de quase 1 mil novos policiais aprovados em concurso, que ainda precisam passar pela Academia Nacional de Polícia antes de serem alocados nas unidades da PF pelo Brasil. A PF está com sua capacidade operativa comprometida e tendo que dar conta das opções e políticas de segurança do Governo Bolsonaro que a sobrecarregam.

Enquanto isso, para a população, o Governo enviou um pacote de medidas legislativas que funciona mais como lance de marketing e diversionismo ao ser intitulado como “anticrime”, uma vez que quem for contra ele seria a favor da criminalidade, o que é uma estultice completa – há formas e formas legítimas de se combater o crime e o Congresso tem legitimidade e voto de propor alterações. Isso para não falar dos Decretos sobre Armas, que têm várias inconstitucionalidades já apontadas por diferentes segmentos, porém o STF parece intimidado a se manifestar e sustar ao menos o último, que autoriza porte generalizado quando uma lei o restringe.

Em suma, não existem ações ou políticas federais em curso que possam ser reconhecidas como responsáveis pela queda recente nos índices de criminalidade e violência urbana no país. Há esforços e trabalho, mas há sobretudo espuma e pirotecnia política. As polícias estão abandonadas à própria sorte e os estados precisam se virar caso queiram manter a redução da violência. O Ministério da Justiça e da Segurança Pública ainda não disse ao que veio e deu sorte de o momento ser de queda da violência. Mas, se nada for feito, a violência ainda é alta e voltará a crescer. E, politicamente, mais esta conta recairá nas costas do Ministro Sergio Moro.

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João Doria herdará Polícia Civil com déficit de 13.169 policiais e sem projeto institucional atualizado https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/27/joao-doria-herdara-policia-civil-com-deficit-de-13-169-policiais-e-sem-projeto-institucional-atualizado/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/27/joao-doria-herdara-policia-civil-com-deficit-de-13-169-policiais-e-sem-projeto-institucional-atualizado/#respond Fri, 28 Dec 2018 00:35:48 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/1628697-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=532 Com Clóvis Bueno de Azevedo. Professor do Departamento de Gestão Pública da FGV-EAESP

De acordo com planilha do Sindicato de Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, apresentada em Trabalho de Conclusão do Curso de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, por Tatiana dos Santos Nogueira, a Polícia Civil paulista enfrenta, em 2018, um expressivo déficit de pessoal, considerando-se a diferença entre o número de vagas existentes e aquelas ocupadas.

São Paulo conta, segundo esta planilha, com 41.912 cargos fixados por lei para a polícia civil paulista. Contudo, só 28.743 estão ocupados, o que corresponde a 31,4% de defasagem, quase um terço do contingente responsável por conduzir as investigações e levar os criminosos à justiça. E isso se repete em várias outras das 14 carreiras existentes na Polícia Civil.

Em termos desagregados, entre as principais carreiras, o maior déficit é na de escrivães, que são os responsáveis por toda a burocracia da polícia civil e por registrarem boletins de ocorrência e inquéritos policiais. Nela, das 8.912 vagas previstas, só 5.973 estão ocupadas, com quase 3 mil não preenchidas (33% do total). Porém, esta não é a única defasagem: entre os delegados, a norma existente fixa em 3.463 vagas de delegados, sendo que 731 estão em aberto.

E o que este déficit nos conta?

A falta de investimento do Governo de São Paulo em repor os policiais que saem da corporação, seja por aposentadorias, expulsões, pedidos de demissão, ou mesmo mortes, revela que inexiste uma política adequada de recursos humanos para a corporação, em grande medida afetada pela decisão do Governo Alckmin de reduzir as despesas do governo ainda que às custas da qualidade das políticas públicas, entre elas a de segurança.

Mas também revela a falta de um projeto institucional que a fortaleça a Polícia Civil em sua missão e mostre, entre outras questões, que os números utilizados pelo planejamento que deu origem ao efetivo fixado e que serve de base para o cálculo do déficit são números críveis, atuais e alinhados às modernas necessidades de uma polícia judiciária – a Polícia Militar, por exemplo, atualiza e publica todos os anos no Diário Oficial seu quadro de efetivo e carreiras, com os números máximos de vagas em cada carreira e por tipo de unidade.

Em geral, as Polícias Civis cumprem o papel de polícia judiciária e é dirigida pela autoridade policial, que, segundo a Constituição, é uma função privativa do cargo de Delegado de Polícia. Cabe à polícia judiciária transformar uma ocorrência/denúncia, se houver evidências mínimas de que um crime fora cometido, em um inquérito policial (peça criada em 1871 e ainda hoje a base para todo o trabalho da Polícia Judiciária e do Sistema de Justiça Criminal) na tentativa de identificar autoria e motivação e, consequentemente, encaminhar os responsáveis por tais atos para apreciação das demais instituições do sistema de Justiça Criminal.

Isso, conforme discussão feita aqui no Faces da Violência em texto anterior, significa algo em torno de 8,4 milhões de casos registrados todos os anos no país, pressionando a capacidade de trabalho e a qualidade das investigações conduzidas. Ou seja, apenas focando no efetivo, dificilmente as polícias civis conseguirão dar conta deste volume de trabalho com padrões de qualidade e esclarecimento que contribuam para a redução da impunidade e da sensação de medo e insegurança da população.

Para resolver este dilema, se olharmos o exemplo da Polícia Federal (PF), veremos que, a partir de 2003, a corporação foi completamente renovada, com a realização de diversos concursos, contando, além disso, com altos investimentos em tecnologia e sistemas. Mas não é só: além da vontade governamental, havia um projeto. No caso da PF, foi priorizar os crimes de corrupção e do “colarinho branco”, com uma estratégia de forças-tarefa e de alta exposição midiática por trás, de modo a conquistar apoio e legitimidade junto à população. Por certo, atualmente a carência de recursos na Polícia Federal está em níveis preocupantes. Mas há um identidade organizacional que a fortalece em suas demandas e a blinda em relação às pressões políticas.

É necessário, portanto, que a Polícia Civil, não só em São Paulo, mas no país todo, tenha um projeto institucional e que ela não se deixe cair nas tentações do Poder. Não é raro, por exemplo, que cargos de direção sejam vistos como moeda de troca político-eleitorais. Assim, não se garante que tais cargos sejam ocupados por pessoal motivado e vocacionado para a função, já que muitos deles implicam o domínio de saberes que extrapolam o saber jurídico e demandam conhecimentos sobre ciência, tecnologia, entre outros.

Concordamos que não há a mínima condição da instituição prover um serviço de qualidade e reduzir as intermináveis horas de espera para a simples lavratura de um Boletim de Ocorrência em um distrito policial, se o quadro de pessoal não for suficiente. Mas também é verdade que os policiais civis precisam estar dispostos a investir pesado na blindagem da corporação em relação às pressões políticas, com metas transparentes e auditáveis de produtividade, execução financeira e orçamentária, esclarecimentos de crimes e melhoria no relacionamento com a população.

Se o governo Doria quiser que a Polícia Civil tenha papel efetivo na redução do medo, da violência e do crime no estado, terá de rever a política de recursos humanos da corporação e viabilizar que a maior polícia civil do Brasil seja também a mais moderna em termos de gestão de pessoas. Elevar a remuneração, hoje das mais baixas no país, é um bom começo. Mas não basta: além de elevar salários e de enfrentar o déficit de pessoal, é preciso promover valorização, motivação e capacitação; é preciso um novo marco de governança na Polícia Civil de São Paulo, com requisitos que garantam autonomia investigativa mas que cobrem transparência e maior controle sobre escalas de trabalho, saúde do policial e critérios de alocação do efetivo, entre outros indicadores.

A Polícia Civil é peça-chave na redução da violência e da impunidade e não pode ficar sucateada pela eterna crise de implementação e execução de políticas que acomete a segurança pública no Brasil.

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