Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os riscos da institucionalização da Operação Vingança https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/os-riscos-da-institucionalizacao-da-operacao-vinganca/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/os-riscos-da-institucionalizacao-da-operacao-vinganca/#respond Tue, 23 Nov 2021 13:57:18 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/foto-salgueiro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1845 Moradores, familiares e ativistas têm classificado o caso de Salgueiro como uma chacina cometida por policiais durante uma “operação vingança” pela morte de um sargento PM.

David Marques*

 

Entre a madrugada de domingo e a manhã de segunda-feira (21/11) 8 corpos foram retirados de uma área de mangue no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. As notícias sobre o caso dão conta de que os corpos apresentavam com sinais de tortura. Entre os sete mortos identificados, dois não possuíam antecedentes criminais.

No sábado, o sargento PM Leandro Rumbelsperger da Silva, de 40 anos, havia sido morto por criminosos em um ataque a uma base da PM. A operação foi então desencadeada, com participação do BOPE.

O caso se dá no contexto da vigência da chamada ADPF das Favelas, que restringiu e condicionou a realização de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19 à previa autorização judicial. O MP-RJ diz ter sido informado da operação. Vale lembrar, no entanto, que um dos casos citados na decisão do ministro Edson Fachin, do STF, nesta ADPF foi o de João Pedro, adolescente de 14 anos morto durante operação policial no mesmo Complexo do Salgueiro, em junho de 2020. Além disso, cabe mencionar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro em 2017 no caso da Favela Nova Brasília, no qual 26 pessoas foram mortas e 3 mulheres foram vítimas de violência sexual durante operações policiais entre 1995 e 96.

Moradores, familiares e ativistas têm classificado o caso de Salgueiro como uma chacina cometida por policiais durante uma “operação vingança” pela morte do sargento PM.

O Projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, buscou estudar as chacinas no Brasil – casos com três ou mais vítimas fatais na mesma ocorrência – a partir de notícias da imprensa. Foram sistematizados 408 casos entre 2015 e 2019. Destes, em 97 houve suspeita ou certeza da participação de policiais em sua execução (23,8%). Estes casos foram identificados em 16 estados, com destaque para RJ, PA e SP, nos quais em mais de 43% do total de casos identificados houve participação de policiais. Segundo este levantamento, somados, os casos nos quais há suspeita ou certeza de participação de policiais ou de outros agentes ou ex-agentes estatais (categorizados como atuação policial, operações policiais, grupos de extermínio ou milícia) são a segunda motivação mais frequente de chacinas no país.

Na tese recentemente defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, estudei em maior detalhe a participação de policiais em chacinas, com foco em um caso ocorrido em Osasco e Barueri, região metropolitana de São Paulo, em 2015. O estudo demonstrou que as chacinas com participação de policiais podem ser divididas em três tipos principais:

  1. Chacina cometida por policiais em serviço, em ações policiais de rotina ou em operações policiais planejadas, cujas mortes podem ser intencionalmente lícitas ou intencionalmente abusivas (podendo as abusivas serem ainda dissimuladas de legítimas);
  2. Chacina cometida por policiais fora de serviço, relacionadas com o oferecimento de serviços de segurança privada;
  3. Chacina cometida por policiais fora de serviço com o objetivo de extorquir traficantes de drogas, demonstrar poder, exercer controle e auferir benefícios financeiros com as dinâmicas criminais locais.

Na pesquisa, a realização vingança pela morte de outro agente de segurança pública foi mais frequentemente associada às ações letais de policiais em serviço, as chamadas “resistências seguidas de morte” e por meio de operações policiais planejadas. Estas mortes geralmente são cometidas por policiais que querem ver seus nomes associados a morte de pessoas que consideram criminosos, dentro de uma lógica de limpeza social, de “fazer justiça”.

O caso do Salgueiro parece corresponder em grande medida à análise acima, no que é chamado pelos moradores de “operação vingança”. Embora não se perca de vista a séria crise de segurança pública enfrentada pelo Rio de Janeiro nos últimos anos, é preciso questionar primeiramente o modelo de policiamento baseado no enfrentamento militarizado. O princípio da experiência da política de pacificação no Rio, na segunda metade dos anos 2000, mostrou que é possível fazer segurança de um modo diferente, e com resultados melhores, apostando em uma polícia que permaneça nas comunidades e nos territórios, se aproximando de sua população, e não apenas passe por eles. Ao fracasso da política de segurança segue-se o fortalecimento do crime organizado e das milícias, vastamente documentado em estudos e notícias. O resultado desse processo continua sendo a alta produção de letalidade, com suas mais diferentes vítimas, incluindo crianças, como João Pedro, e o Sargento Leandro.

Pesquisa do FBSP mostrou que de uma amostra de 316 casos de mortes decorrentes de intervenção policial ocorridas no Rio e em São Paulo em 2016, 90% foram objeto de pedido de arquivamento por parte do Ministério Público. Se o controle da atividade policial não é exercido de forma constante, incluindo os casos de mortes decorrentes de intervenção policial em serviço, ele torna-se virtualmente impraticável nos casos mais extremos e com isso temos a deterioração das instituições e do sistema democrático de segurança e justiça, que se torna refém do arbítrio.

 

*David Marques é doutor em sociologia e coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Demonização dos povos tradicionais no caso Lázaro não surpreende https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/#respond Fri, 02 Jul 2021 19:51:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terreiros-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1810 Em nome da luta contra o mal, mesmo com recursos tecnológicos à disposição, a polícia seguiu invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais

Ana Paula Mendes de Miranda*, Rosiane Rodrigues de Almeida** e Leonardo Vieira Silva***

A pressa em rotular Lázaro Barbosa de Souza fez com que ele fosse apresentado de muitas formas. Uma dessas classificações resultou em violações de direitos dos povos tradicionais por parte das polícias. Ao retratá-lo como um “fanático religioso”, as forças de segurança se tornaram os cruzados contemporâneos. As operações se transformaram em ações cristãs de “libertação do mal”, numa espécie de “batalha religiosa” acompanhada em tempo real pelas redes sociais.

Tudo começou com narrativas oficiais. O “boato” de que Lázaro estaria possuído por um “demônio” ou “espírito” foi veiculada pelo tenente Gérson de Paula, da PM de Goiás, através do site Metrópoles, no dia 15 de junho. O policial teria afirmado que o criminoso andaria com um “livro místico” que lhe garantiria “proteção espiritual”, razão pela qual “só poderia ser pego com auxílio de cães ou cavalos”. Na sequência, a entrevista do major Rio Branco, subchefe do Centro de Comunicação Social da Polícia Militar do Distrito Federal, ao UOL, que, ao analisar as dificuldades de prender o criminoso, afirmou: “se ele [Lázaro] é a força satânica, as forças de segurança são os anjos de Deus”.

A imprensa mordeu a isca e reconduziu a cobertura, deixando de lado o “perfil psicológico” e investindo na suposta prática demoníaca, mesmo com a ex-mulher e um amigo do suspeito afirmando que Lázaro era evangélico. O G1 reproduziu fotos, que teriam sido divulgadas pela polícia civil, de alguns assentamentos de Exu e pentagramas. Na reportagem, o delegado Raphael Barboza afirmou que os objetos foram encontrados na “casa” de Lázaro, sendo “indicativos de práticas de bruxaria e rituais”. Impressiona que, em pleno século XXI, o jornalismo brasileiro não saiba lidar com a diversidade religiosa. Mas o problema não parou aí.

A ação se voltou para investigar as suspeitas de acobertamento de Lázaro pelos terreiros da região. Diferentes grupos de policiais passaram a invadir, sem mandado judicial, cerca de 12 terreiros. Vídeos disponíveis nas redes sociais demonstram que antes do “combate” aos terreiros, os policiais oravam.

A “neoinquisição” utilizou-se de técnicas tradicionais de interrogatório e pressão dirigida aos suspeitos – os povos tradicionais de matrizes africanas. Em nome da luta contra o mal, com os meios tecnológicos mais modernos, seguiram invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais.

As invasões, agressões físicas e verbais só cessaram quando as lideranças religiosas se mobilizaram, por meio das redes sociais, denunciando que as fotos não eram da “casa” de Lázaro, mas do babalorixá André de Oxum, que, após uma peregrinação, conseguiu registrar ocorrência policial sobre os abusos sofridos. Os afrorreligiosos buscaram os meios legais e parceiros que os apoiassem nas suas reivindicações: mandado de segurança para proteção das casas; apuração de responsabilidades das forças policiais pelas agressões; reparação dos danos/agressões; retratação dos meios de comunicação, e garantia do Estado para o direito à liberdade e integridade dos territórios tradicionais.

A pressão serviu ao menos para que o G1 e o UOL se retratassem, pedindo desculpas pelos “erros no processo de produção” das reportagens. O Metrópoles nada fez até o momento da redação deste texto. As instituições policiais seguiram caladas diante da violação que produziram.

Há mais de 30 anos se discute no Brasil que as instituições de segurança pública não têm o direito de dispor de forma ilimitada do uso da força. Há que se respeitar os limites legais que estabelecem que o mandato de uso da força, conferido aos agentes de segurança, não pode violar os direitos fundamentais.

Analisando os relatos e reportagens fica evidente que o início das agressões se deu pelas forças do Estado, difundindo a ideia de que se tratava de uma missão religiosa de libertação do mal. O que vimos é o desrespeito aos preceitos fundamentais basilares, com a invasão ilegal dos terreiros e a espetacularização midiática das operações. O episódio lembra “A Quebra de Xangô”, ocorrida em Alagoas, em 1912, quando terreiros foram invadidos e destruídos com a mesma intenção.

Inaceitável que as operações policiais funcionem como dispositivo publicitário de produção de medo e violação de direitos. Quem ganha com a encenação e espetacularização da insegurança? Trata-se de um fenômeno antigo que explora a violência como mercadoria – notícia – e transforma o público em mero espectador.

Mais uma vez negou-se a humanidade aos povos afroameríndios, para em seguida negar-lhes os direitos. A demonização dos terreiros pelas igrejas cristãs, pela mídia, pelas agências estatais, vem da colonização. Ela serve para generalizar o medo, para organizar moralmente a sociedade em torno de um modelo excludente da diversidade, que trata o mundo de modo dual (bem versus mal), no qual se inventam os “demônios” para que sejam sempre os culpados. Não se trata apenas de uma questão religiosa, mas sim de uma ética, um modo de pensar, sentir e agir que orienta práticas institucionais. Neste caso a demonização serviu para ocultar os interesses financeiros de um fazendeiro, que teria escondido o criminoso. Ele não permitiu a entrada das polícias em sua fazenda, mas não houve uma invasão tal como nos terreiros, pois ele foi preso mediante outro tipo de ação. Nada de novo na política e na polícia brasileiras.

 

*Professora de Antropologia (UFF); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF); Bolsista de Produtividade do CNPQ 2.

**Bolsista de Pós-Doutorado em Antropologia (FAPERJ); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF).

***Doutorando em Antropologia (UFF); Pesquisador do INCT-INEAC (UFF)

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Na edição desta semana, leia também “Vinte anos da criminalização do assédio sexual” e “Casos DG e Floyd, duas mortes e a mesma causa: a letalidade policial“.

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Rio é um dos maiores desafios de Segurança Pública no mundo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/rio-maiores-desafios-seguranca-publica-mundo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/10/rio-maiores-desafios-seguranca-publica-mundo/#respond Mon, 10 May 2021 22:47:54 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/policiais-foto-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1764 O controle do uso da força policial é preocupação permanente para democracias liberais consolidadas; reforma da polícia ajudou muitas das grandes cidades norte-americanas a atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história 

Alberto Kopittke*

 

Com uma grande união de forças, liderança política e investimento financeiro seria plenamente possível construir um plano capaz de reduzir a violência no Rio de Janeiro. Sim, o Rio de Janeiro é um dos maiores desafios para a Segurança Pública do mundo, mas já existe conhecimento suficiente acumulado sobre o que funciona para reduzir a violência para construir um grande e exitoso plano na cidade. Não se acabaria com o tráfico de drogas, assim como ele não acabou em Nova York, nem Medellín, mas seria possível retirar das organizações criminosas o controle de comunidades, armamento de grande porte e controlar homicídios e roubos.

Um plano de longo prazo, suprapartidário, que envolvesse um esforço de união nacional, com ações bem planejadas e coordenadas que viriam desde a reformulação do sistema prisional, um plano de reurbanização, a implementação de metodologias estruturadas de prevenção à violência e programas sociais, tecnologia de ponta e um significativo fortalecimento da área de inteligência das forças de segurança, sem dúvida conseguiria reduzir a violência de forma sustentável e permanente na cidade.

Tarefa mais difícil e demorada, no entanto, é reduzir a violência e a corrupção policiais. A chacina de Jacarezinho veio se somar a um macabro e longo histórico de episódios brutais provocados por algumas forças de segurança pública do país, totalmente fora de qualquer parâmetro razoável, compreensível e aceitável. Além das dezenas de jovens, a cada nova chacina morre também nossa democracia.

Nos EUA, o chamado “Primeiro Grande Despertar” contra a violência policial chacoalhou o país entre os anos 1960 e 1970, de forma muito mais forte do que nos episódios recentes das mortes de David Brown e George Floyd. A comunidade negra daquele país se organizou e passou a não aceitar mais a forma como era tratada pela polícia, resultando em grandes manifestações e muitos episódios de confrontos violentos que paralisaram as grandes cidades, às vezes por semanas, e em muitos casos resultaram em dezenas de mortes.

Como consequência daquelas mobilizações, prefeitos progressistas, chefes de polícia reformistas e a Suprema Corte realizaram reformas profundas sobre o controle do uso da força. Essas reformas incluíram a demissão de dezenas de policiais com histórico de violência, a redução da discricionariedade dos policiais, o fortalecimento dos mecanismos de controle interno, o aumento da transparência e a imposição de indenizações milionárias pela justiça como consequência de episódios de violência. Como resultado, entre 1970 e 1985, o número de mortes provocadas pela polícia caiu 51%, sendo que essa queda foi de 72% entre jovens negros entre 15 a 34 anos e a diferença entre o número de negros e brancos mortos pela polícia caiu de 7,5 vezes para 3. O problema é historicamente tão profundo que mais de mil pessoas ainda nos dias de hoje são mortas pela polícia, muitas vezes com brutalidade racista.

Vinte anos depois das grandes reformas internas, fato é que uma nova geração de policiais, formada dentro de uma nova mentalidade, liderou experiências significativas de redução da criminalidade e as polícias saíram fortalecidas e modernizadas desse processo, além de mais efetivas para prevenirem a violência. Essas novas polícias representaram o avanço decisivo para muitas das grandes cidades norte-americanas atingirem os menores patamares de criminalidade de toda a sua história.

Já no Brasil, nem mesmo as 45 mil mortes provocadas por intervenção policial na última década são capazes de mobilizar forças para dialogar sobre mudanças necessárias nas corporações. Ainda que ela seja agora exaltada como virtude, a violência policial não começou no atual governo. Durante os sete governos democráticos que o país teve desde a Constituição de 1988, com importantes exceções, o tema não foi tratado com a prioridade devida, o que agora vemos que cobra um alto preço para a democracia no país. E mesmo depois de tudo o que vivemos nos últimos anos, ainda não é possível vislumbrar que algum novo governante democrático que suba a rampa do Palácio do Planalto apresentará uma agenda de grande impacto nessa área.

O Governo Federal precisa assumir um novo papel na Segurança Pública. Instituições estaduais não conseguem investigar e promover mudanças de fato em situações tão graves como a do Rio de Janeiro; assim como a Inspetoria do Exército, responsável pelo controle das polícias militares, e o Ministério Público, responsável pelo controle das polícias civis, foram incapazes de promover avanços substanciais nesse tema desde a Constituição de 1988.

Um sistema federal de controle das polícias, com uma nova instituição federal especializada, poderia ter um papel importante. Nos EUA a Divisão de Direitos Civis do Departamento de Justiça tem poderes para realizar investigações e processar policiais e até mesmo de realizar intervenções sobre as polícias, com o afastamento de toda a sua direção e a realização de remodelações internas profundas, o que já foi feito 17 vezes desde 1994.

A Inglaterra, que tem índices mínimos de criminalidade e de violência policial, possui um órgão federal chamado Escritório Independente sobre Conduta Policial. Sempre que uma das 43 ouvidorias estaduais recebe uma denúncia de um fato grave cometido por algum policial ele deve obrigatoriamente repassar essa denúncia para o Escritório Nacional, que inicialmente monitora as providências adotadas em nível estadual e quando necessário abre uma investigação independente sobre o caso. O órgão possui 890 servidores e um orçamento de 73 milhões de libras, o equivalente a R$ 335 milhões. As investigações podem resultar em denúncias ao Ministério Público Federal ou em recomendações para modificações em protocolos operacionais, que têm poder vinculativo e devem obrigatoriamente ser adotadas pelas polícias.

Como se vê por esses exemplos, o tema é uma preocupação permanente das democracias liberais consolidadas e não de regimes autoritários de esquerda ou de direita.

No Brasil, algumas medidas que não exigiriam grande volume de recursos, mas sim a disposição política de lideranças democráticas, poderiam gerar grande impacto. Uma pesquisa anual de vitimização e avaliação das polícias, como é feita em muitos países desenvolvidos, poderia orientar o repasse de recursos federais e determinar a abertura de investigações especiais naqueles locais em que muitas pessoas afirmarem não confiar na polícia ou serem vítimas de violência policial. Relatórios anuais de letalidade policial, uso de armas de fogo e de todas as formas de uso da força poderiam mostrar as unidades onde o problema da violência se concentra. Sistemas de alerta precoce poderiam auxiliar a expulsar novos policiais de perfil violento.

Câmeras de corpo ligadas automaticamente poderiam ajudar a trazer informações importantes sobre as ocorrências, assim como a obrigatoriedade de acompanhamento por diferentes instituições de controle das operações de risco em salas de comando e controle especiais, com o registro formal das ordens de toda cadeia de comando. A restrição de determinados tipos de treinamento e armas a unidades especiais, empregadas a partir de um protocolo nacional e forças tarefas entre o poder judiciário, ministério público e polícia federal poderiam combater grupos de extermínio altamente letais. Essas são algumas das mudanças possíveis, sem falar ainda em outras medidas que o Poder Judiciário poderia adotar, como a responsabilização dos superiores quando se tratar de Operações oficiais.

É sempre importante destacar que embora o tema seja muito grave, ele é altamente concentrado em alguns estados brasileiros e análises mais profundas possivelmente demonstrarão que se concentram em poucas unidades do conjunto das instituições e em pequenos grupos dentro delas, que mancham reiteradamente a imagem das instituições. Reformas internas importantes inclusive já tem sido feita em algumas instituições do país e esse processo deveria se tornar uma bandeira de todos aqueles que efetivamente defendem policiais modernas e efetivas contra o crime.

A inédita Lei George Floyd, fruto de mais um despertar e da nova onda de mudanças em curso nos EUA, tem como foco a regulação do uso da força pelas polícias e deverá ser aprovada nos próximos dias. Cabe pelo menos sonhar com um diálogo amplo das forças democráticas da sociedade brasileira sobre o que poderia vir a ser uma Lei Jacarezinho, para ajudar o país a dar os primeiros passos contra chacinas a céu aberto executadas por quem deveria antes de tudo proteger e não manchar comunidades inteiras de pavor e de sangue.

*Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Na edição desta semana, leia também “Ciência e erro na investigação policial” e “Uma milícia no Rio Grande do Sul?”.

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