Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Excludente de Ilicitude: o primeiro ato do novo AI 5 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/22/excludente-de-ilicitude-o-primeiro-ato-do-novo-ai-5/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/22/excludente-de-ilicitude-o-primeiro-ato-do-novo-ai-5/#respond Fri, 22 Nov 2019 13:08:38 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/Aliança-Pelo-Brasil-Bolsonaro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1186 Por Alberto Kopittke*

Os primeiros comentários na grande mídia sobre o PL (veja a íntegra aqui) da excludente de ilicitude apresentado por Bolsonaro ontem (21) não compreenderam de fato do que trata o Projeto. Mesmo os comentários críticos abordaram o PL como se ele fosse uma repetição do PL do Pacote de Sergio Moro, apenas ampliado a excludente para Militares em Operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem).

No entanto, o Projeto praticamente não tem relação com “Segurança Pública” e com o debate sobre a letalidade policial, que polariza o país e revela o forte protagonismo das polícias militares na vida política. Apesar das Operações de GLO serem utilizadas de forma cada vez mais ampla pelos Governos do PT e agora do PSL, nos últimos 10 anos, o número de mortes provocadas em Operações GLO é muito pequeno se comparado com os números do cotidiano da segurança pública brasileira, por geralmente se tratarem de operações de estabilização de território.

O que não foi percebido, é que o PL de Bolsonaro é praticamente uma cópia do Decreto Supremo 4078 editado há 5 dias atrás pela autoproclamada Presidente da Bolívia, Jeanine Ãnez, que garantiu a excludente de ilícitude para as Forças Armadas bolivianas reprimirem os movimentos que eclodiram no país. Outro sinal que passou quase que desapercebido foi que o Ministério da Defesa e não o da Justiça e Segurança Pública é que foi acionado para construir a minuta da proposta.

Na verdade, o PL de Jair Bolsonaro não tem nenhuma preocupação com o problema da criminalidade do país. Ele tem como alvo a possibilidade de um aumento das mobilizações de rua no país, como está ocorrendo em todo o continente, autorizando policiais e as forças armadas a fazerem uso da força letal contra pessoas envolvidas em manifestações sociais. O Projeto é uma preparação para a possibilidade do Brasil viver um processo de mobilização social e segue a sugestão dada pelo filho 03 do Presidente, Eduardo Bolsonaro, há poucos dias atrás, sobre a necessidade de se tomar medidas duras, como um novo AI5 no país.

É preciso compreender que o Projeto de Lei apresentado por Bolsonaro não está isolado na história. Ele é o ápice de toda uma estrutura jurídica que vem tornando a GLO um verdadeiro regime de exceção nas mãos do Presidente da República, sem a necessidade de aprovação do Congresso Nacional. Há uma aposta na radicalização como tática diversionista de concentração de poderes pelo Presidente e esvaziamento de quaisquer agendas que não sejam por ele emuladas.

Em 2013, findadas as manifestações populares, o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas publicou a regulamentação das Operações de GLO (Portaria Normativa nº 3.461/2013/MD). A Portaria alterou pela primeira vez desde a redemocratização o conceito de Força Oponente, que é o conceito central que autoriza o uso da força por parte das Forças Armadas, o qual desde a redemocratização era entendido como as Forças Armadas de outro país soberano que venha a atacar o território nacional. A partir dessa Portaria, a utilização do uso de força militar passou a ser autorizada contra “qualquer grupo interno que instabilize a ordem social”. Além disso, a Portaria ainda previu pérolas como a possibilidade de realizar operações psicológicas junto a população civil brasileira e a autorização para a restrição do livre exercício do jornalismo nas áreas sob intervenção.

Em razão de forte reação de movimentos sociais, a regulamentação foi suavizada (Portaria Normativa Nº 186/MD/2014), embora tenha mantido como força oponente a ideia abrangente e vaga de “agentes de perturbação da lei e da ordem”. Agora, o novo Projeto de Lei retoma o espírito da Portaria original e incluí terrorismo no rol de situações autorizativas para a excludente de ilicitude. Há uma sutil mas clara reorientação político institucional em curso e que poucos estão percebendo. A questão é que não bastam votos em uma democracia; é preciso que as instituições sejam democráticas e sujeitas a mecanismos transparentes de controle e supervisão.

Em seu brilhante livro “Political (in)justice: authoritarianism and the rule of law in Brazil, Chile, and Argentina” sobre os regimes autoritários na América do Sul, o Professor Anthony Pereira, do Kings College de Londres, destaca uma peculiaridade do autoritarismo militar nacional. Diferentemente dos demais países, a ditadura brasileira, embora constitucionalmente ilegal, sempre se preocupou em garantir a legalidade formal mesmo de seus atos mais autoritários, a começar pelos diversos Atos Institucionais, cuidadosamente escritos até milhares de Inquéritos Militares, que registravam todas as perseguições totalmente arbitrárias.

Embora pudesse ter feito tudo o que fez apenas fazendo uso da força, como fizeram as Ditaduras Argentinas, Chilenas e Uruguaias, a Ditadura Brasileira preocupou-se em ser formalmente adequada, seguindo o “melhor” da tradição jurídica brasileira que prima pela forma em detrimento dos princípios do Estado Democrático de Direito.

O Projeto de excludente de Ilicitude em Operações GLO faz parte dessa tradição do legalismo autoritário brasileiro que vem ressurgindo e ganhando mais forças a cada dia no país. Num momento em que o futuro sobre nossa democracia é incerto, a única certeza é que o primeiro Projeto de Lei do novo AI5 já foi apresentado.

* Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura e associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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A atuação das polícias e as lições que vêm do Chile e de São Paulo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/10/27/a-atuacao-das-policias-e-as-licoes-que-veem-do-chile-e-de-sao-paulo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/10/27/a-atuacao-das-policias-e-as-licoes-que-veem-do-chile-e-de-sao-paulo/#respond Sun, 27 Oct 2019 18:52:17 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/10/Mediador-Danielo-Vespa-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1142 O Faces da Violência publica, em primeira mão, análise feita por Carolina Ricardo* e Bruno Langeani*, do Instituto Sou da Paz, para a edição 12 do Boletim Fonte Segura, que estará disponível na próxima terça-feira, dia 29/10, no site www.fontesegura.org.br (a edição trará também textos da Professora Lucía Dammert, da Universidade de Santiago de Chile, entre outros). O texto destaca a importância das polícias durante grandes manifestações sociais como as que têm ocorrido no Chile e vários outros países da América Latina nas últimas semanas.

São iniciativas como a que o texto analisará, em São Paulo, que irão de fato interferir positivamente na gestão e administração de conflitos sociais. Não é com ameaças retóricas de que o Estado está preparado para reprimir manifestações ou truculência que os problemas serão resolvidos. A ordem social democrática emana do povo e sua direção é guiada pela Constituição Federal de 1988.

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O Chile, um dos países mais desenvolvidos da América Latina, vive uma situação bastante complexa atualmente, vendo sua população descontente indo às ruas, a partir do aumento brusco das tarifas de transporte.

Estopim que revelou descontentamentos mais profundos com inúmeras dimensões da política econômica do país (salários, aposentadorias e desigualdade).  Houve manifestações de diversas naturezas, as pacíficas e as que contaram com violência e depredação por parte dos manifestantes. A resposta do governo Piñera veio de forma equivocada, com elevado uso da força por parte das polícias e evocação de um discurso de guerra para legitimar o emprego do Exército. Cenas de violência contra manifestantes têm sido recorrentes.

É evidente que não se trata de uma situação simples, mas seguramente há alternativas para melhor lidar com o problema.

A recente pesquisa de opinião, realizada pela Activa Research, demonstra,  que a população chilena entende que as principais medidas que o governo teria que tomar para lidar com a atual crise deveriam ser de natureza política, tais como escutar as demandas e elaborar um plano de resposta. Além disso, a pesquisa mostra que tanto os Carabineros como o Exército tiveram sua atuação mal avaliadas. Fica claro, portanto, que a população esperava outro tipo de resposta que não o uso excessivo da força e repressão.

E quais aspectos a atual situação do Chile tem em comum com o Brasil de junho de 2013? Nossas manifestações também tiveram como gatilho o aumento da tarifa de transportes, nossos governos também foram inábeis em endereçar as demandas legítimas e que poderiam ter sido respondidas por ações não policiais. O que vimos em junho de 2013 foram violência e confrontos  e excesso de uso da força ou descontrole por parte das policias em vários episódios.

Mas, é preciso sermos justos, algumas polícias aproveitaram o episódio para aprimorar sua capacidade de lidar com manifestações . E é nesses aprendizados que vale a pena a jogar luz. Quem sabe outras forças possam se inspirar com essas experiências?

Em linhas gerais, há algumas lições importantes de serem seguidas no trato de protestos. O primeiro deles é que o governo deve chamar a responsabilidade para si, dar uma resposta clara e a força policial nunca pode ser a única nem a primeira representante da autoridade presente nas manifestações. Outro importante aprendizado é que o papel da polícia deve ser garantir o direito ao protesto, a integridade dos manifestantes, dos  policiais e terceiros não envolvidos com a manifestação, e não frustar estes direitos ou tratar manifestantes como inimigos. Além de ilegal, a percepção de abusos enche e enfurece mais as ruas, ao invés de arrefecer protestos (como vimos aqui e como agora os chilenos comprovam).

Por fim,  é preciso que o treinamento e a cadeia de comunicação e comando flua bem para que essa missão esteja clara para o policial  atuando na ponta.

A partir desses aprendizados é que surge parceria entre a Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) e o Instituto Sou da Paz iniciada em 2017. O projeto iniciou-se com uma pesquisa internacional dedicada a olhar boas experiências que pudessem servir de referência.

Após uma análise conjunta, a decisão foi de conhecer as experiências das Polícias de Londres (MET) e da Irlanda do Norte (PSNI), que gozam de forte legitimidade em suas comunidades e superaram históricos períodos de grandes protestos. No  mesmo ano, foi realizada uma visita técnica, com dois oficiais da PMESP (um do BP Choque e outro da Área central da capital paulista). A viagem buscou conhecer a experiência de policiais que atuavam nestes eventos, tanto diretamente no terreno, quanto no planejamento, além de observação de treinamentos.

Após a viagem, um relatório técnico foi entregue ao Comando Geral, que foi aproveitado como subsídio para revisão de procedimentos. Em seguida, iniciou-se  um projeto piloto na área central da Capital (CPA/M1).

O projeto buscou engajar outros atores públicos das reuniões de planejamento de eventos coletivos já realizadas há anos pela Polícia, tais como Ministério Público, Defensoria e Prefeitura. Diversificar os atores no planejamento amplia  os olhares e atenua desconfianças que ainda existem entre  grupos de manifestantes e a polícia, além de aumentar chances de acordos.

Além disso, a PM de São Paulo, por iniciativa própria, decidiu testar a experiência londrina e passou a inserir policiais mediadores, ampliando os canais de diálogo durante as manifestações.

Por fim, houve um esforço em distinguir no treinamento e na atuação dos policiais a ‘gestão das multidões’, com foco voltado para garantia do direito ao protestos, do ‘controle de distúrbios’ que envolve outro tipo de ação a partir da avaliação de que houve quebra da ordem e de que níveis adicionais do uso da força precisam ser empregados.

A avaliação é positiva. Ações mais planejadas e com informações trazidas pelos próprios manifestantes demandam menor emprego de efetivo policial. Ações com mais treinamento e transparência geram menos risco de confrontos e, portanto, do uso da força. O ano de 2018 teve, segundo dados do M1 (área central), 98% de manifestações pacíficas e nenhum manifestante ou policial ferido.

Por parte da sociedade civil é preciso celebra e incentivar a coragem da PMESP em buscar o aperfeiçoamento constante e, principalmente, por aproveitar o momento de ruas tranquilas para fortalecer sua atuação. Se os gritos que ecoam hoje em outros países da América Latina voltarem ao Brasil é preciso estar preparado com uma atuação que ajude a fortalecer a nossa democracia.

 

Carolina Ricardo é Diretora Executiva do Instituto Sou da Paz. Bruno Langeani é coordenador do Instituto Sou da Paz. Ambos são associados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

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