Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Pesquisa reforça que o ECA funciona e não gera impunidade https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/13/pesquisa-reforca-que-o-eca-funciona-e-nao-gera-impunidade/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/13/pesquisa-reforca-que-o-eca-funciona-e-nao-gera-impunidade/#respond Thu, 13 Dec 2018 18:47:26 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/Fundação-Casa-150x150.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=509 Por Luis Flavio Sapori, Professor da pós-graduação em ciências sociais da Puc Minas e associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Muito se fala mas pouco se sabe sobre a magnitude da reincidência criminal no Brasil, seja ela de adolescentes e/ou a de adultos. É parte da narrativa corrente afirmar que a taxa de reincidência é de 80%, ou seja, de cada cem pessoas que cumprem pena de prisão, oitenta voltam a cometer crimes após retorno ao convívio social.

Entretanto, esse é um daqueles números cabalísticos que ninguém sabe de onde provém mas que dada sua citação recorrente acaba se tornando verdade inquestionável. E não há nenhum estudo científico no Brasil nas últimas décadas que sustente tal narrativa.

Ao contrário, é possível mencionar duas pesquisas recentes sobre o fenômeno que sinalizam patamares da reincidência bem abaixo dos 80%, sendo uma realizada pelo IPEA que encontrou taxa de 24% e outra realizada por mim e por Roberta Fernandes Santos, ambos da PUC Minas, que obteve a taxa de 51%.

A diferença nas magnitudes deve-se a diferenças nos procedimentos metodológicos adotados nas respectivas pesquisas, sendo que na pesquisa do IPEA a reincidência foi definida quando da sentença transitada em julgado (sem mais possibilidades de recursos) e na pesquisa da PUC Minas a reincidência foi definida quando de novo indiciamento pela Polícia Civil.

No que diz respeito à reincidência de adolescentes infratores, a qual denomino de reincidência juvenil, a lacuna de conhecimento é mais grave ainda. O Instituto Sou da Paz publicou recentemente estudo que revelou o perfil do adolescente em conflito com a lei no Estado de São Paulo, além das variáveis associadas à prática infracional e os principais fatores sociais e individuais associados à reincidência juvenil. Neste estudo, a proporção de reincidentes no sistema socioeducativo paulista foi apurada em 32,6% (1 entre cada 3 adolescentes em conflito com a lei que cumpre medida socioeducativa é reincidente).

Lembro que proporção de reincidentes que cumprem medida socioeducativa, ou mesmo pena de prisão, é indicador diferente de taxa de reincidência. A proporção de reincidentes significa a razão entre o número de indivíduos que estão cumprindo penas ou medidas socioeducativas com registro anterior de crime pela polícia e/ou pela justiça em relação ao total de indivíduos que estão cumprindo penas ou medidas socioeducativas num determinado momento do tempo.

E o mais recente estudo sobre o assunto acaba de ser divulgado, sob minha coordenação, numa parceria entre o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e o programa de pós graduação em ciências sociais da PUC Minas. Foi definida uma coorte de adolescentes que finalizou o cumprimento das medidas de internação e de semiliberdade em todo o estado de Minas Gerais no ano de 2013, totalizando 435 adolescentes.

Nele, o novo ato delituoso eventualmente cometido pelos indivíduos que compõem a coorte, fato crucial para a confirmação da reincidência, foi estabelecido a partir de novo registro de ato infracional ou de crime pela Polícia Civil do Estado de Minas Gerais entre janeiro de 2013 e dezembro de 2017. O estudo verificou também o impacto de diversos fatores sociais e individuais na chance de ocorrência da reincidência por parte desse contingente de adolescentes egressos.

Eis alguns resultados relevantes obtidos pela pesquisa:

1. Dos 435 indivíduos acompanhados, cerca de 30,1% reincidiram no período analisado;

2. O tipo de convivência familiar influencia a chance de reincidência na medida em que adolescentes com trajetória de rua antes do cumprimento da medida socioeducativa têm chance 32% maior de reincidir do que adolescentes com convivência de família de origem;

3. Os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa de internação tendem a reincidir menos do que os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa de semiliberdade, no patamar de 36%;

4. Com base em um modelo estatístico de regressões múltiplas binomiais, a variável de impacto mais relevante na chance de reincidência foi “Tempo da medida socioeducativa”, sendo que adolescentes que cumpriram medida de até seis meses manifestaram chance seis vezes maior de reincidência do que adolescentes que cumpriram medida acima de dois anos;

5. A trajetória infracional precoce somada ao início também precoce no consumo de drogas ilícitas constituem fatores dos mais impactantes na reincidência, de modo que quanto menor a idade do adolescente quando do registro do primeiro ato infracional e do consumo de drogas ilícitas, maiores são as chances de reincidência.

Numa conjuntura nacional na qual se discute a redução da maioridade penal com vistas à contenção da violência, as evidências obtidas na pesquisa são importantes. Ao contrário da percepção generalizada de senso comum, a manutenção da maioridade penal no atual patamar de 18 anos não é indutora necessariamente de impunidade.

Em outras palavras, o sistema socioeducativo previsto no ECA tem claro efeito inibitório sobre a criminalidade juvenil. Não é fato que o ECA produza impunidade, mesmo com a pesquisa indicando caminhos que possam dotá-lo de maior eficácia, eficiência e efetividade.

É óbvio que as evidências obtidas em Minas Gerais não podem ser generalizadas para o país como um todo. A despeito dessa limitação, não se pode ignorar que as medidas restritivas de liberdade combinadas a um tempo mais longo de cumprimento das medidas têm claro potencial de evitar que adolescentes infratores se tornem criminosos adultos, especialmente aqueles adolescentes que não iniciaram precocemente sua trajetória infracional.

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No debate sobre redução da maioridade penal, é falso dizer que os adolescentes que cometem crimes ficam impunes https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/11/30/no-debate-sobre-reducao-da-maioridade-penal-e-falso-dizer-os-adolescentes-que-cometem-crimes-ficam-impunes/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/11/30/no-debate-sobre-reducao-da-maioridade-penal-e-falso-dizer-os-adolescentes-que-cometem-crimes-ficam-impunes/#respond Fri, 30 Nov 2018 13:53:05 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/Fundação-Casa-150x150.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=464 Por Liana de Paula. Professora da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp, pesquisadora do sistema socioeducativo brasileiro há quase 20 anos e autora do livro Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo (Alameda Editorial).

Em vários cantos do Brasil, vivemos e convivemos com o medo da violência e a sensação de impunidade. E não é por acaso.

Os números da violência letal no Brasil são assustadores e são pífias as proporções de assassinatos solucionados pela polícia e de homicidas efetivamente processados e punidos pela justiça.

As respostas dadas pelas instituições de segurança pública e justiça têm sido insuficientes e fundadas em concepções de política criminal obsoletas, o que só alimenta nossa sensação de impotência diante dessa realidade. Não à toa, parte da população clama por mudanças e acredita nos discursos de reforma na lei penal para torná-la mais dura; mais efetiva. Acredita-se, assim, no que seria o poder de dissuasão das penas mais duras e no combate à impunidade.

Deixar impune quem cometeu um crime é algo que nos indigna e que alimenta a sensação de impotência e o medo diante da violência e da criminalidade. E é nesse caldo geral temperado pelo medo que surgem os defensores da redução da maioridade penal como solução mágica para enfrentar o crime e diminuir a violência. Contudo, para problemas complexos, infelizmente não há soluções mágicas.

Na verdade, há uma enorme confusão quando se discute a redução da maioridade penal, misturando-se impunidade e inimputabilidade.

Para evitar a linguagem jurídica empolada, vamos simplificar. Se impunidade significa não ser punido, a partir de qual idade uma pessoa que comete um crime pode ser punida no Brasil? A partir dos 12 anos!

Sim, essa é a chamada idade de responsabilidade penal, isto é, a idade a partir da qual uma pessoa pode ser responsabilizada penalmente pelos seus atos.

Segundo dados compilados pelo Unicef, temos a idade de responsabilidade penal mais baixa quando comparada a nossos vizinhos do Cone Sul: na Argentina é 16 anos, no Chile e no Paraguai, 14 anos, e no Uruguai, 13 anos. Esse é um debate mundial e que, mais uma vez, o Brasil parece chegar atrasado.

Se a idade para ser responsabilizado penalmente está fixada no Brasil em 12 anos, o que estamos discutindo, exatamente? Estamos, na prática, falando do tratamento dado aos que cometem crime a partir da sua idade. Ou seja, estamos falando sobre a maioridade penal, fixada atualmente em 18 anos, e que marca a idade a partir da qual a pessoa pode responder penalmente como um adulto, sendo processado pelo sistema de justiça criminal.

Os adolescentes, isto é, as pessoas entre 12 e 17 anos que cometem crime no Brasil não ficam impunes. Eles são responsabilizados e processados por um sistema especial e com base em legislação especial. E esse processamento penal especial não é novidade nem da Constituição Federal nem do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). A primeira legislação especial – o primeiro Código de Menores – que fixa o tratamento penal especial aos chamados menores de idade data de 1927.

O que o ECA muda em relação à legislação anterior são a concepção do que é um adolescente e a forma de tratamento aos infratores, que inclui um conjunto de sanções especiais a serem aplicadas.
Essas sanções são as chamadas medidas socioeducativas, que recebem esse nome por serem aplicadas especificamente a adolescentes e para enfatizar a importância de terem um caráter pedagógico.
Medidas socioeducativas bem executadas, isto é, que conseguem equilibrar responsabilização penal e reabilitação (o caráter pedagógico), contribuem para diminuir o número de adolescentes que reincidem no crime e que se tornam criminosos adultos.

O ECA não deixa de punir os responsáveis por atos infracionais. Porém, para que isso ganhe escala e eficiência, o sistema socioeducativo precisa de melhoras. E das muitas a serem feitas, destaco duas: avaliação e monitoramento das ações e qualificação dos profissionais, para sabermos e investirmos no que funciona e no que produz bons resultados, bem como para disseminarmos boas práticas.

Em suma, precisamos investir no que funciona e parar com discursos vazios que exploram o medo e a boa fé da população. Afinal, o que todas e todos queremos é poder andar na rua tranquilamente e não vivermos com medo constante de tantos perigos e ameaças.

Reduzir a maioridade penal pode saciar momentaneamente a sede de vingança de um ou outro, mas não contribuirá para tornar nossa sociedade pacífica e mais segura.

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