Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A Operação Lava Jato e as Ciências Sociais https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/04/a-operacao-lava-jato-e-as-ciencias-sociais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/04/a-operacao-lava-jato-e-as-ciencias-sociais/#respond Tue, 04 May 2021 14:34:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/975036-09-09-2015-dsc_2143-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1754 A essa altura, já não se sabe mais o que é crítica à obra de Faoro, o que é crítica às palavras de Barroso, ou à ação dos integrantes da Lava Jato. Ou o que é pura e simplesmente uma tese sem pé nem cabeça, lançada de forma leviana, para aproveitar a debacle da Lava Jato para acertar contas com um dos grandes intérpretes do Brasil

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*

 

A importância da Operação Lava Jato para os destinos políticos do país, assim como para o funcionamento da justiça penal e o combate à corrupção, tem dado margem a muitas publicações, não apenas no campo do processo penal, mas também no das ciências sociais. A partir do reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da incompetência do juízo de Curitiba para julgar os processos envolvendo o ex-presidente Lula, e do reconhecimento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para o julgamento do ex-presidente, uma nova leva de artigos tem sido publicados, representando estas diferentes e muitas vezes conflitantes interpretações sobre a operação, seu final melancólico e seu significado.

Entre seus defensores, críticos das recentes decisões do Supremo, se encontra, em lugar de destaque, o jurista e sociólogo do direito Joaquim Falcão. Em recente artigo publicado no Estadão (23.04.2021 – O que o STF não respondeu ao declarar Moro suspeito), fazendo coro ao voto do ministro Barroso, Falcão sustenta que as recentes decisões do STF são fruto de “vingança judicializada” contra os avanços do que considera um “direito processual sistêmico”. Segundo ele, não há estado democrático de direito sem um direito processual eficiente (para condenar, e não para garantir o exercício pleno do direito de defesa). Trata-se, portanto, de uma leitura que considera os métodos da Lava Jato adequados e necessários para alcançar os fins desejados.

Semelhante visão tem sido apresentada por Cláudio Beato, sociólogo e professor da UFMG, que em artigo publicado no O Globo (20.03.2021 – Os (des)caminhos da justiça criminal brasileira) contrapõe a perspectiva garantista, que “busca esgotar todos os ritos legais, dando amplo direito de defesa, a fim de minimizar erros ao longo do sistema”, a um outro modelo emergente, que buscaria, “ao contrário, a celeridade processual e o julgamento por evidências”. Sustentando que o caminho para a modernização da justiça para o combate à corrupção passa por essa segunda alternativa, promovida por “aguerridos membros do Ministério Público ou novas versões de algumas polícias estaduais e federais”, Beato critica o aparato legal defasado (sem dizer quais mudanças deveriam ocorrer, e sem considerar o grande número de reformas legais ocorridas a partir de 88). Beato reconhece que abusos foram cometidos (“ações arbitrárias”, “excessos”) e critica o ex-juiz e seus aliados no MP e na PF por “cometeram o erro primário de confundir-se com esse movimento político em ascensão” (o bolsonarismo). A derrota da Lava Jato seria fruto da mistura de ação judicial e interesses políticos, que levou seus protagonistas ao confronto com “uma curiosa congruência de interesses aparentemente opostos de direita e esquerda, para que, como sempre ocorreu, o braço da lei não alcance os poderosos”. Ou seja, não foram os abusos praticados, mas a inabilidade política dos seus operadores, que teria viabilizado a nova maioria no STF e o fim da operação.

Uma outra chave de leitura é aquela apresentada por pesquisadores vinculados ao Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, entre os quais o professor Roberto Kant de Lima, para quem, historicamente, “a ética dos operadores do direito naturaliza a proximidade organizacional e social entre promotores e juízes sem se questionar sobre as razões inquisitoriais de sua organização”(JOTA, 05.03.21). Para Kant de Lima e Pedro Heitor Barros Geraldo, a mudança de regimes políticos ao longo da história do Brasil produziu uma transformação das finalidades das instituições judiciais, mas não necessariamente das práticas de tomada de decisão. O que caracteriza para estes autores o “espírito da Lava Jato” é a obsessão persecutória contra uma suposta e atávica corrupção “sistêmica” entre os políticos e empresários, que os procuradores buscavam demonstrar a todo custo.  O “espírito da Lava Jato” encarnou em práticas conhecidas e naturalizadas pelos atores da justiça. A recorrente corroboração destas práticas, inclusive pelos órgãos correcionais, produziu um ambiente propício para o uso ilimitado dos poderes judiciários. Neste sentido, a Lava Jato seria a reiteração do modus operandi da justiça brasileira, inquisitorial e seletiva.

Na mesma linha, mas destacando a dimensão da inovação frente às permanências, destacamos, em artigo publicado no blog Faces da Violência, da Folha (Azevedo e Costa, 01.04.2021 – Lava Jato: Crônica de uma morte anunciada) que a Lava Jato, assim como outras operações e processos não tão midiáticos de combate à corrupção, foram a resultante de mudanças institucionais introduzidas a partir da CF de 88, que transformou a Polícia Federal em Polícia Judiciária, criou o Ministério Público Federal e a Justiça Federal. Ou seja, a CF 88 criou o Sistema de Justiça Criminal no âmbito federal. Juntamente com uma série de inovações legislativas em matéria penal e processual penal, concluímos que a Operação Lava Jato foi o resultado ambíguo de um processo de aperfeiçoamento institucional, distorcido pela ambição de seus operadores, de refundar o sistema político a partir de um processo judicial.

Uma nova interpretação veio à tona recentemente, em artigo publicado pelo cientista político Leonardo Avritzer no blog “A Cara da Democracia”, publicado pelo UOL (24.04.2021 – O fim da Lava Jato e o patético Barroso). Comemorando a decisão do STF, por 7 votos a 2, que reconheceu a suspeição de Sérgio Moro, Avritzer sustenta que a derrota da Lava Jato constituiria também a derrota de uma interpretação equivocada do Brasil, apresentada por Raymundo Faoro em sua obra “Os Donos do Poder”, lançada originalmente em 1959, que teria sido, segundo ele, “resgatada” pelos justiceiros de Curitiba. Para sustentar a responsabilidade de Faoro pela Lava Jato, Avritzer desqualifica a obra, acusando-a de reduzir os problemas do Brasil à corrupção, de realizar operações de “qualidade acadêmica duvidosa”, e de representar “o pior texto já escrito sobre a história do Império” (segundo “alguns”). Com base nesta argumentação (de qualidade acadêmica bastante duvidosa), Avritzer extrai a conclusão de que a Lava Jato poderia ser entendida como um “faorismo judicial”, caracterizado pelo ativismo judicial e o punitivismo seletivo. Sustenta, assim, que o verdadeiro projeto (de Faoro ou de seus “seguidores”?) seria “a destruição sistemática do Estado brasileiro”, e na falta de outro caminho teria pavimentado a militarização do governo conduzida por Bolsonaro. Avritzer vai além, sustentando que o “faorismo judicial” estaria disposto a deixar de lado quaisquer “arroubos ligados ao liberalismo”, como o direito de defesa, para destruir o “estamento burocrático”. Através, diga-se, de um braço do próprio estamento burocrático.

A essa altura, já não se sabe mais o que é crítica à obra de Faoro, o que é crítica às palavras de Barroso, ou à ação dos integrantes da Lava Jato. Ou o que é pura e simplesmente uma tese sem pé nem cabeça, lançada de forma leviana, para aproveitar a debacle da Lava Jato para acertar contas com um dos grandes intérpretes do Brasil. Não cabe aqui fazer a defesa da obra de Faoro, ou precisar os conceitos que ela apresenta, embora os ataques que vem sofrendo denotem a importância dessa discussão, já feita, e de forma brilhante, por um outro professor da UFMG, Juarez Guimarães, por ocasião da passagem dos 50 anos de “Os Donos do Poder” (Guimarães, 2009 – Raymundo Faoro, pensador da liberdade).

Basta aqui, seguindo os argumentos de Guimarães, lembrar que “o centro da narrativa de Faoro, sinal expressivo de sua importância na formação de nossa cultura política, é entender por que prevaleceu em nossa história, no chamado período monárquico ou no republicano, um Estado assentado em uma soberania não resultante de um contrato livre entre cidadãos”. Faoro encontra a explicação na formação patrimonialista estamental do Estado português, que no contexto particular da Independência do Brasil, promovida por membros da própria família real portuguesa, transmitiu-se como instância estruturadora da cultura política brasileira em formação, “cindindo e deformando a formação de uma cultura liberal de direitos e passando por vários processos históricos transformativos e adaptativos até a contemporaneidade”. Compreendendo a dimensão do autor e da obra, Guimarães reconhece que Faoro “foi o primeiro entre nós a construir uma narrativa de longa duração a partir do critério da liberdade política, entendida em sua chave republicana, como autogoverno de cidadãos autônomos”. Ou seja, o que pretende Faoro “é a crítica histórica do Estado fundado sem contrato social democrático, encerrado em uma lógica patrimonial, sem uma ordem simétrica de direitos e deveres, que se atualiza de forma permanente pela particularização arbitrária da sua ação política e pela privatização de suas funções econômicas. O que resulta dessa crítica não é propriamente a negação do Estado ou a sua ausência, mas a necessidade da democratização de seus fundamentos, uma ordem simétrica de direitos e deveres de cidadania e a afirmação de critérios universalistas de sua ação política econômica”.

A forma como os procuradores da Lava Jato, que já confundiram Hegel com Engels, interpretam e utilizam a obra de Faoro para legitimar suas ações, diz muito pouco sobre a obra de Faoro. Que um ministro do Supremo se utilize dos “Donos do Poder” para fundamentar seu consequencialismo, subvertendo os meios pelos fins do processo penal, diz muito sobre certa matriz autoritária de decisionismo jurídico, mas responsabilizar por isso um tribuno da liberdade e dos direitos e garantias fundamentais, inclusive em tempos obscuros, seria o mesmo que responsabilizar Cristo pela Santa Inquisição.

Mas, ainda com Guimarães, é importante lembrar que aquele que, na condição de presidente nacional da OAB, em discurso memorável, afirmou o princípio de que “o Estado não pode ser o inimigo da liberdade”, continua sendo uma referência central para que possamos compreender a longa duração dos processos históricos e os desafios colocados para a afirmação da democracia no Brasil. Não faremos isso acreditando que o clientelismo, o apadrinhamento, o direcionamento de recursos públicos de forma seletiva e pouco republicana, as rachadinhas e os caixas 2 para financiamento de campanhas eleitorais são um problema menor ou já superado. Muito menos desacreditando ou minimizando a importância dos mecanismos institucionais para o esclarecimento e a responsabilização criminal dos que pretendem perpetuar sinecuras e dinastias de poder político patrimonial.

 

Sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS

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Na edição desta semana, leia também “Covid-19 e morte de policiais: crônica de uma tragédia anunciada” e “Tráfico de drogas na percepção policial e os custos para a sociedade”.

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Lava Jato: crônica de uma morte anunciada https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/01/lava-jato-cronica-de-uma-morte-anunciada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/01/lava-jato-cronica-de-uma-morte-anunciada/#respond Thu, 01 Apr 2021 22:49:52 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/lava-jato-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1710 “O julgamento da suspeição de Moro e a decisão sobre a incompetência da Vara Federal de Curitiba para julgar os processos contra o ex-Presidente Lula foram somente a pá-de-cal sobre a cova já coberta. “

Arthur Trindade M. Costa*

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo**

 

Para muitos, as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal marcaram o fim da operação Lava Jato. Na verdade, o fim da operação começou bem antes, com a adesão do ex-juiz Sergio Moro ao governo Bolsonaro, como Ministro da Justiça e Segurança Pública e fiador da confiabilidade do ex-capitão. O julgamento da suspeição de Moro e a decisão sobre a incompetência da Vara Federal de Curitiba para julgar os processos contra o ex-Presidente Lula foram somente a pá-de-cal sobre a cova já coberta. Contribuíram para o sepultamento as revelações da Vaza Jato (Intercept Brasil) sobre as relações promíscuas entre integrantes do MP Federal e o juiz do caso, assim como os acordos entre Bolsonaro e Centrão, pouco interessados no efetivo combate à corrupção.  

Com o fim da operação Lava Jato se iniciou um debate sobre qual seria o seu legado. Não há dúvida que a Lava Jato foi um marco no combate à corrupção, ao levar ao banco dos réus importantes empresários e políticos. Mas é necessário lembrar que tivemos outras operações bem-sucedidas nesse tema. Entre 2003 e 2020, a policial federal realizou mais de 1000 operações com foco no desvio de dinheiro público, que levaram à prisão de governadores, deputados e gestores públicos. 

Todas essas operações, incluindo a Lava Jato, foram resultado de mudanças institucionais introduzidas a partir de 1988. A Constituição Federal transformou a Polícia Federal em Polícia Judiciária, criou o Ministério Público Federal e a Justiça Federal. Ou seja, a CF 88 criou o Sistema de Justiça Criminal no âmbito federal. A medida teve enorme impacto no combate à corrupção, uma vez que, dada a proximidade com o poder local, dificilmente a Polícia Civil, o Ministério Publico e o Poder Judiciário nos estados conseguem investigar, processar e punir políticos corruptos.

A década de 1990 foi marcada pela construção e reconfiguração dessas instituições. Foram implantadas Varas Federais e realizados os primeiros concursos para juízes federais. Sérgio Moro foi aprovado num dos primeiros concursos, realizado em 1996. A Polícia Federal aumentou seus efetivos e mudou seu plano de carreiras, para dar mais autonomia às investigações. O Ministério Público Federal começou a ser estruturado a partir de 1993, com a promulgação da Lei Complementar 75/1993. 

O período foi marcado também por uma série de leis de combate à corrupção, tipificando de forma mais específica estas condutas e prevendo novos mecanismos de persecução penal. Essas leis são os principais instrumentos utilizados pelos policiais e procuradores para investigar e denunciar esse tipo de delito. Dentre elas destacam-se a Lei 7492/86, sobre crimes financeiros, a Lei 8666/93, que trata dos crimes licitatórios, e a Lei 9618/98 sobre lavagem de ativos. 

A década de 1990 também foi marcada pela criação de outras instituições fundamentais para investigação dos crimes de desvio de dinheiro público. Em 1998 foi criado o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), originalmente vinculado ao Ministério da Fazenda. O COAF é um órgão de inteligência financeira destinado a monitorar todas a transações financeiras realizadas no país. Antes disso, em 1996, foi criada a Coordenação-Geral de Pesquisa e Investigação (Copei), a unidade de inteligência da então Secretaria da Receita Federal (SRF). Em 2013, o Banco Central implantou o sistema BACEN JUD, para melhorar a comunicação com o Poder Judiciário. Isso conferiu celeridade no cumprimento das decisões judiciais de requerimento de informações, bloqueio de valores e de monitoramento de transações financeiras. 

A operação Lava Jato foi resultado de um processo de aperfeiçoamento institucional. Portanto, o combate à corrupção não começou com ela a Lava Jato e tampouco irá acabar com a sua extinção. Mesmo assim, é interessante analisar como isso aconteceu.

Foi inglório o fim da operação que pretendia livrar o país da corrupção sistêmica. Foram poucos os grupos que lamentaram sua morte. Fosse Lula ou Haddad o Presidente da República, e anunciasse o fim da operação, haveria uma revolta. Grupos iriam para as ruas protestar. Generais fariam discursos e tuites em tom ameaçador. Autoridades do judiciário iriam se manifestar sobre os perigos que isso poderia acarretar.

Não foi o que aconteceu. Muitos apoiadores de Bolsonaro passaram a considerar Sérgio Moro, o super-juiz, um traidor, desde que se voltou contra a criatura. E acreditam que de fato não há mais corrupção no governo, ou que não é relevante frente à ameaça comunista e globalista. Para eles, o país não precisa mais de uma Lava Jato, mas sim de um novo mandato para Bolsonaro, de preferência com salvo conduto para ele e seus filhos contra a interferência do Poder Judiciário.

Os apoiadores de Lula, por motivos óbvios, sempre consideraram Moro um inimigo. Um juiz que perseguiu o partido e sua maior liderança, e criminalizou a atividade política, a serviço de interesses político-partidários. O vazamento dos diálogos entre o juiz e os demais integrantes da força tarefa deslegitimou suas decisões. Entretanto, não se pode esquecer que muitos dos condenados pelo ex-juiz confessaram seus crimes e devolveram o dinheiro roubado. Não custa lembrar que Antônio Palocci, ministro todo poderoso dos governos Lula e Dilma admitiu seus crimes, delatou Lula, e hoje não tem quem o defenda no PT.

Muitos que não nutriam simpatia pelo ex-Presidente ficaram chocados com o vazamento das conversas entre Moro e os procuradores. Até a Ministra Carmen Lúcia, anteriormente defensora da operação, teve de mudar seu voto e admitir a parcialidade do juiz, dando o voto decisivo para a anulação de suas decisões contra Lula. O argumento apresentado por alguns estudiosos do campo jurídico, de que a Lava Jato representava uma salutar renovação das práticas jurídicas, deixando de lado as tendências garantistas em nome de uma maior eficiência no combate ao crime, mostrou-se frágil diante das evidências de que agir de forma ilícita no processo acaba por produzir efetivamente a impunidade, quando as irregularidades são finalmente reconhecidas pelos tribunais superiores.

Uma das poucas vozes que se ouviu lamentando o fim da Lava Jato foi a da grande mídia, especialmente a Rede Globo. Também pudera, ela foi o principal apoiador da operação, cumprindo um papel fundamental para sua legitimação, e sempre alimentada a articulada por Moro. Seria constrangedor ter que fazer mea-culpa nos editoriais dos jornais ou ao vivo nos telejornais. É importante notar que o apoio à operação não foi só uma decisão dos proprietários e editores dos jornais. Vários jornalistas aderiram de forma quase religiosa aos ideais lavajatistas. Publicavam as informações vazadas pelos promotores, policiais, e até pelo juiz, sem ao menos verificar sua veracidade sobre datas, valores, fontes, etc. Aderiram ao discurso dos fins justificam os meios, colocando por terra direitos e garantias sem os quais o processo penal perde sua base de sustentação e legitimidade democrática.

O lavajatismo é uma espécie de tenentismo do século XXI. Como Prestes, Cordeiro de Farias e Juarez Távora, os membros da Lava Jato criaram um movimento de salvação nacional. A exemplo dos tenentes, sua causa era combater a corrupção política. Em ambos os casos, os métodos se revelaram antidemocráticos. A proximidade entre o juiz e os promotores, revelada nas mensagens vazadas, fere o princípio do devido processo legal, previsto na constituição de 1988 e base do Estado de Direito. Da mesma forma, a escuta nos telefones dos advogados de defesa é crime previsto no Código Penal.

Curioso que um dos remédios para estes problemas foi aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro de 2020. Trata-se da criação do juiz de garantias. Embora muitos duvidem, policiais e promotores são capazes de produzir provas robustas através de investigações legais, realizadas sob supervisão de um juiz. Garantindo a lisura da investigação, e afastando provas ilícitas, esta nova figura, já existente em outros ordenamentos, fortaleceria a investigação preliminar ao processo, dando a ela maior valor probatório.

Boa parte das medidas para a melhoria do combate à corrupção se originaram nos debates da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Ativos. Criada em 2003, a ENCCLA é coordenada pelo Ministério da Justiça e reúne representantes de mais de 70 órgãos dos três poderes, tanto em âmbito federal quanto estadual. A partir dos debates entre os diferentes órgãos foi possível articular as atividades do COAF com os trabalhos do Secretaria de Receita Federal e do Banco Central. Também partiram da ENCCLA sugestões para aperfeiçoar a cooperação internacional sobre investigação e recuperação de ativos. Portanto, fortalecer a ENCCLA é fortalecer o combate à corrupção. 

Obviamente não basta fortalecer a ENCCLA e as instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal no âmbito nacional. Embora necessárias, as medidas não são suficientes. É preciso aprovar uma reforma do sistema eleitoral que aumente a accountability dos partidos e parlamentares. As normas que regem o financiamento de campanha também precisam ser aperfeiçoadas.

O combate à corrupção depende muito mais do aperfeiçoamento institucional do que dos ideais de um movimento salvacionista. Ao contrário, posturas voluntaristas, à margem do Estado de Direito, minam a legitimidade das instituições e provocam reações entre aqueles que, embora apoiem o objetivo, não podem compactuar com os meios impeditivos do exercício pleno do direito de defesa. Os maiores interessados em desmontar os mecanismos de controle e repressão agradecem.

 

* Arthur Trindade Maranhão Costa é Professor da UnB, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e editor do Fonte Segura.

** Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é sociólogo, professor titular da Escola de Direito da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Morte em Salvador: reflexões sobre as fragilidades da ordem social brasileira” e “Mortes violentas de crianças e adolescentes caem 31%; índice ainda é elevado”

 

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