Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Em 10 anos, ‘aposentadoria’ de militares cresce em 41,7% https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/10/11/em-10-anos-aposentadoria-de-militares-cresce-em-417/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/10/11/em-10-anos-aposentadoria-de-militares-cresce-em-417/#respond Sun, 11 Oct 2020 13:12:07 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/10/diferente-do-projeto-para-civis-proposta-de-aposentadoria-para-militares-mantem-beneficios-de-integralidade-e-paridade-1571652594587_v2_900x506-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1539 O Brasil contava, em 2018, com mais de 4,3 milhões de militares “aposentados”. E, ao mesmo tempo, pagava mensalmente, em média, R$ 6.528,46 para o seus policiais militares da ativa; R$ 11.472,93 para os policiais civis e federais; e, por fim, R$ 7.630,50 para os bombeiros militares.

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Ao se analisar os grandes números do Imposto de Renda Pessoa Física, disponibilizados pela Receita Federal, referentes aos anos-calendários de 2009 e de 2018, constata-se que o Brasil tinha, em 2018, 4.312.755 militares reformados, na reserva e/ou familiares pensionistas que pagaram imposto de renda (militares das FFAA, das Polícias e Bombeiros Militares estaduais). Esse é um número 41,7% superior ao observado em 2009, quando existiam 3.044.019 militares inativos, sem contar os com moléstias graves – que igualmente cresceram 38,1% no mesmo período e atingiram 387.850 pessoas.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública está conduzindo um estudo especial sobre o impacto da questão previdenciária das polícias e deve divulga-lo nos próximos meses. Mas, antes, os grandes números do IPRF permitem algumas estimativas preliminares. Em primeiro lugar, se separarmos os rendimentos das polícias civis, militares e bombeiros militares, iremos observar que, em 2018, os policiais militares que recolheram imposto de renda tiveram um rendimento médio mensal, incluindo o 13º salário, de R$ 6.528,46.

Já os policiais civis, cujo efetivo total é menor e incluí os delegados estaduais e federais, carreiras mais bem remuneradas, o rendimento médio mensal sobe para R$ 11.472,93. E, por fim, os bombeiros militares tiveram um rendimento médio mensal de R$ 7.630,50.

Como comparação, na média, cada integrante do Ministério Público teve uma remuneração mensal de R$ 34.749,90, com 13º salário. Esse valor é maior do que a média dos juízes, que receberam, segundo a Receita Federal R$ 33.550,01 como remuneração mensal em 2018, sem contar indenizações e rendimentos isentos.

Importante frisar que esses valores são médias e não consideram as disparidades internas de cada polícia, com policiais da base muitas vezes recebendo bem menos que os policiais do teto da categoria.  E isso é ainda mais emblemático pois pouco sabemos sobre a estrutura de financiamento das polícias brasileiras e não há dados sistematizados e/ou organizados que permitam análises mais detidas e precisas. E, na falta de tais informações, ganha quem grita primeiro e convence.

Em 2018, os policiais e bombeiros militares brasileiros pagaram 7,7% dos seus rendimentos, em média, a título de previdência social e/ou sistema de proteção social. Foram quase R$ 5 bilhões arrecadados dos policiais para custear suas aposentadorias. Como não temos dados desagregados por carreira e faixa salarial, que são definidores das novas alíquotas a serem aplicadas sobre os rendimentos dos policiais, podemos apenas estimar alguns impacto da reforma da previdência do ano passado.

Por essa simulação, na alíquota intermediária de incidência, a expectativa é gerar uma receita adicional de ao menos R$ 1,24 bilhão com as novas alíquotas. Assim, deve ocorrer um aumento de arrecadação da ordem de 24,9%, custeado pela retenção maior nos contracheques dos policiais. De R$ 4,97 bilhões  arrecadados a título de previdência em 2018, o valor deve passar para R$ 6,22 bilhões, em 2020, isso em uma média simples entre as diferentes carreiras.

Agora, se estes valores serão suficientes para equacionar o dilema previdenciário existente, ainda é cedo para afirmar apenas com os dados da Receita Federal. É preciso cruzar novas fontes de dados e aprofundar algumas informações. Todavia, este rápido panorama serve para jogar luz a números impressionantes e que precisam fazer parte do debate sobre os rumos e sentidos das políticas de segurança pública no Brasil. Mas, logo de cara, é possível chamar atenção para os dados sobre a quantidade de militares na reserva, que são fortes e exigem uma reflexão sobre a estrutura de carreiras e do tempo de serviço das Forças Armadas e Polícias Militares do país.

Outro dado que chama bastante a atenção é aquele que foca na proporção de membros dos Ministérios Públicos em relação ao número de policiais. Para cada um dos 14.365 promotores e procuradores dos Ministérios Públicos há, na média nacional, 41,3 policiais. Se considerarmos apenas os números das polícias civis e federal, responsáveis pela atividade de polícia judiciária, havia 9,1 policiais para cada promotor/procurador de justiça no Brasil em 2018. Já a proporção de juízes neste mesmo ano é levemente maior, de um juiz para cada 24,5 policiais.

Trata-se de um funil importante para compreendermos o fluxo do sistema de justiça criminal brasileiro e sobre os papéis e funções que cada uma destas instituições deve desempenhar para melhorar a eficiência da Justiça brasileira. Vale lembrar que tal número gera impactos diretos na capacidade de processar crimes e evitar impunidade.

 

Versão reduzida do artigo publicado originalmente no Boletim Fonte Segura 58, do FBSP,

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Vida, um compromisso ético inadiável https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/04/vida-um-compromisso-etico-inadiavel/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/11/04/vida-um-compromisso-etico-inadiavel/#respond Mon, 04 Nov 2019 14:04:30 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/11/Tuca-Vieira-Folhapress-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1155 Com Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP

Todas as pessoas têm o direito de sair de casa, andar nas ruas, ir ao trabalho ou à escola sem levar tiros dos helicópteros da polícia.Tamanha obviedade nem deveria estar em pauta, considerando que até os menos informados sabem que a Constituição garante o sagrado direito à vida. Mas os disparos do céu contra a própria população fazem parte das estratégias policiais no Rio de Janeiro desde o começo do ano, sem que nenhuma instituição consiga barrar este crime.

Até setembro deste ano, 21 operações policiais foram feitas usando helicópteros como plataforma de tiro no estado, segundo dados da plataforma Fogo Cruzado. Quando esses sobrevoos ocorrem, creches e escolas precisam ser fechadas. Moradores tem que faltar ao trabalho. Crianças são pegas no meio do fogo cruzado e precisaram se esconder para não serem atingidas. Apesar das escandalosas omissões institucionais, moradores de bairros pobres do Rio de Janeiro e do Brasil continuam apostando no Estado de Direito e lutando com instrumentos democráticos para não serem vítimas de autoridades que acreditam no extermínio e na morte como solução política.

Essa luta vem sendo articulada pela sociedade civil de comunidades pobres que vivem esse drama da violência, e que nos últimos anos estão conquistando vitórias importantes.

As Redes da Maré, por exemplo, no Rio de Janeiro, onde vivem 139 mil pessoas, começaram a trabalhar na região com cursinhos preparatórios que já ajudaram a formar mais de 1.200 universitários no bairro. Em 2017, diante das mortes recorrentes e dos abusos que eram promovidos pelas incursões policiais, se articularam com a Defensoria Pública do Rio de Janeiro e entraram com uma ação civil pública para limitar os excessos. Uma liminar foi obtida para exigir o respeito aos direitos básicos da população, como identificação de policiais, ingresso somente durante o dia, acompanhamento de ambulância para o caso de haver feridos. Essas exigências contribuíram para a diminuição das mortes no bairro e do número de aulas canceladas nas escolas.

As políticas públicas devem promover a vida e não o extermínio e a guerra contra a própria população. Esse consenso vem sendo uma das bandeiras políticas da sociedade civil do Jardim Ângela desde 1996, quando o bairro foi apontado como o mais violento do mundo em um estudo feito pela Organização das Nações Unidas. 

Nos anos que se seguiram, eles passaram a organizar uma caminhada anual, no dia de Finados, e montaram o Fórum em Defesa da Vida com mais de 200 entidades do território. Depois de muita luta, os resultados começaram a aparecer. Um hospital público e moderno chegou à região, polícias educacionais, de saúde e de assistência social passaram a ser acompanhadas de perto. Três bases policiais comunitárias foram criadas.

Essas lutas contribuíram para mudar a região e a cidade de São Paulo, que se tornou a capital brasileira com menor taxa de homicídios.

No último dia 2, no dia dedicado a lembrar dos nossos mortos, outros estados, periferias e quebradas se juntaram ao Jardim Ângela para marchar e promover atos em defesa de políticas públicas que promovam a vida. Esses atos ocorrem em oito estados brasileiros, como Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Espírito Santo, Acre, Minas Gerais, Brasília e São Paulo. Houve slans, movimentos organizados por mães, saraus, caminhadas, construção de memoriais, entre outras atividades. São manifestações culturais e articulações criadas nas periferias para ligar com o processo virulento de violência que muitos desses territórios acabaram vivenciando.

A ideia do movimento foi dar um primeiro passo para que as periferias de todo o Brasil possam trocar experiências e estratégias de luta para cessar esses ciclos de homicídios e levar aos territórios que mais sofrem com a violência políticas públicas que promovam a vida. Não se trata de um desafio utópico, mas é preciso acertar a estratégia e o foco, considerando que 2,1% dos municípios concentram 50% das mortes e que 10% dos bairros dessas cidades, também registram a metade das vítimas, segundo dados do Atlas da Violência, publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do IPEA.

Essa luta em defesa do Estado de Direito e por políticas que promovam a vida nos bairros mais atingidos é urgente, considerando a mentalidade genocida de algumas autoridades despreparadas e autoritárias. Se incentivar a violência é uma forma de corromper a sociedade em nome de projetos de Poder, valorizar a vida é compromisso ético inadiável. 

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Proibir o ex-presidente Lula de velar seu irmão é populismo penal https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/30/proibir-o-ex-presidente-lula-de-velar-seu-irmao-e-populismo-penal/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/30/proibir-o-ex-presidente-lula-de-velar-seu-irmao-e-populismo-penal/#respond Wed, 30 Jan 2019 12:44:57 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/Lula-e-Vavá-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=594 Em um momento de forte defesa da revalorização dos princípios judaico-cristãos do Ocidente, o trecho “[…] Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte”, da “Ave Maria”, uma das orações mais conhecidas do catolicismo, nos lembra que o Brasil ainda está longe, muito longe, de uma ética pública que interdite a violência enquanto linguagem e não confunda punição com vingança.

É na hora da morte que percebemos quem somos nós e quais valores norteiam nossas posturas e posições; percebemos que país estamos construindo para os nossos entes queridos. Não basta denunciar o “errado”.

Por isso, não precisamos ser “petistas” ou “lulistas” para criticarmos as razões alegadas para a proibição para que o ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva participe do velório e enterro de seu irmão mais próximo, Genival Inácio da Silva, conhecido como Vavá. Elas são reveladoras do profundo mal-estar civilizatório que tomou conta do país e do papel que o Poder Judiciário está tendo na reconfiguração política e ideológica em curso.

Estamos presenciando, a meu ver, uma profunda releitura jurisprudencial da legislação brasileira e que, no limite, pode nos levar ao quadro vivido pela Turquia e pela Hungria, que são democracias formais mas foram tragadas por tsunamis autoritárias que desprezam princípios e direitos fundamentais; que travam “guerras culturais” que sequestram a cidadania e a liberdade. A própria Transparência Internacional fez tal alerta esta semana, quando da divulgação da edição 2018 do seu Índice de Percepção da Corrupção.

Dados do Infopen, relatórios estatísticos (bastante desatualizados, por sinal) do Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, chefiado pelo ex-juiz Sérgio Moro, indicam que, em 2015 (último ano com dados completos disponíveis), tivemos 175.325 autorizações de saídas de presos para acompanhar velórios e enterros de parentes, nos termos do Artigo 120, da Lei de Execução Penal.

Esse número é equivalente a 25% da população prisional total daquele ano e, se olharmos apenas para os presos em regime fechado, ele salta para quase 63%. Ou seja, a autorização de saída pedida pelo ex-presidente Lula não seria, em nenhuma hipótese, um privilégio. Mais do que nunca, o STF tem uma enorme responsabilidade nesta “quadra histórica”, como gostam de dizer vários de seus ministros.

Em nome da “ordem pública”, conceito por sinal muito mal definido em nossa legislação e suscetível às interpretações jurisprudenciais e institucionais, estamos escancarando opções político-ideológicas que estão a mover parcela crescente dos integrantes das instituições de Estado no Brasil.

E, no caso, quero destacar que o episódio da proibição ao ex-presidente Lula velar seu irmão, é mais um reforço ao fato de que a vida no Brasil vale muito pouco, ainda mais quando vivemos um quadro agudo de violência, que vitima e viola a integridade e a dignidade de milhares de pessoas todos os anos e parece não mais sensibilizar muitas das nossas autoridades. A proibição ao ex-presidente Lula escancara o colapso de nossa política criminal e penitenciária e parece confirmar que o antagonismo é a forma escolhida de aprofundar a reconversão reacionária da sociedade brasileira.

Porém, acreditando na urgência de medidas para a redução da impunidade e da violência e que uma ética pública mais justa e menos cruel é possível, quero explicitar que não podemos resvalar para o populismo penal, que tão somente visa aplacar a vontade de vingança diante das injustiças, da corrupção e do crime. A Justiça é para todos!

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A esquerda não é o maior inimigo do governo Bolsonaro https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/03/a-esquerda-nao-e-o-maior-inimigo-do-governo-bolsonaro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/03/a-esquerda-nao-e-o-maior-inimigo-do-governo-bolsonaro/#respond Fri, 04 Jan 2019 01:42:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/07/Troche-2-150x150.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=544 Hoje (3), Fernando Canzian, repórter da Folha, defendeu em coluna que Bolsonaro reúne todas as condições para ser duplamente cruel com as esquerdas. Segundo o texto do colunista, o maior desafio do governo do capitão reformado do Exército será o de encontrar recursos para tapar o rombo de R$ 300 bilhões nas contas públicas. Caso isso ocorra, o ciclo de crescimento da economia tende a ser longo e fortalecer o projeto de poder do atual ocupante da Presidência da República, alijando as esquerdas por muitos anos do poder.

Até aí, a análise é perfeita. Mas, na sequência, Canzian argumenta que o caminho mais rápido para a redução do déficit passa pela redução da máquina pública e que, se esta redução for efetivamente realizada, ela afetaria a base de sustentação sindical da esquerda, reforçando o seu isolamento e o seu enfraquecimento.

Olhando pela economia, o texto de Fernando Canzian é provocativo e coloca na mesa, de fato, os riscos corridos pela esquerda brasileira (não muito diferentes do que ocorre nos EUA e na Europa). Também coloca um cenário de oportunidades para o novo governo que, se aproveitadas, reverterão o quadro de crise sistêmica em nosso modelo de organização econômica.

Todavia, se olharmos na perspectiva de quem tem exercido o papel de fiadores da ordem e da narrativa bolsonarista, veremos que a redução do déficit público enfrentará estamentos de poder, para utilizar um conceito clássico da Sociologia, na administração pública que em nada são simpáticos à esquerda e que acumulam enorme capacidade de pressão e reação político-institucional.

Estou falando dos militares federais, dos policiais, dos juízes e dos integrantes do Ministério Público. Na verdade, o duplo risco para a esquerda identificado pelo colunista também se apresenta, na mesma intensidade, ao governo Bolsonaro. No caso, o maior desafio de Jair Bolsonaro será equilibrar interesses econômicos e corporativos antagônicos sem desequilibrar a sua base de sustentação política e, com isso, retroalimentar o cenário de falta de confiança dos agentes econômicos.

Em um exemplo nítido, as maiores resistências à reforma da previdência, em última instância, virão destas carreiras públicas, que nunca foram base sindical das esquerdas, e cujos benefícios têm um impacto nas contas públicas muito maior do que qualquer outro segmento. A discussão sobre o aumento dos salários e a proibição/recriação do auxílio moradia de juízes segue na mesma direção. A leitura do colunista desconsidera, portanto, que a máquina pública não é homogênea e é perpassada por inúmeras disputas e culturas organizacionais.

Dito de outra forma, o desmonte da máquina, para ter legitimidade social, exigirá, entre outras frentes, um debate transparente sobre eficiência e custo do sistema de justiça e segurança e de manutenção da ordem que talvez o governo Bolsonaro, por suas alianças e opções ideológicas, não queira e/ou não consiga levar adiante.

Ao contrário, se analisarmos as primeiras medidas do novo governo, veremos que a sua estratégia de ação desenhada passa pela aposta dobrada na captura de tais instituições para a guerra cultural que o clã Bolsonaro, Ônix Lorenzoni, Damares Alves, Vélez-Rodrigues e Ernesto Araújo instituíram visando a desconstrução da agenda da quarta onda de direitos fundamentais (onda que deságua no reconhecimento de identidades e no pluralismo democrático), esta sim muito cara aos movimentos sociais e principal eixo de atuação da esquerda até agora (o foco sindical perdeu força faz algum tempo e não é mais a base de sustentação principal da esquerda, a meu ver).

Bolsonaro está fazendo um esforço enorme para anunciar ou se apropriar de medidas que julga de restabelecimento da ordem e da moral sem se dar conta que, no modo pragmático petista de governar, muitas delas ou foram criadas nas gestões petistas ou são consequência da tentativa lulista de compor o tempo todo (assistência jurídica para policiais envolvidos em ocorrências com resultado morte, medida já vigente no Maranhão e na Bahia, redutos da esquerda; sistema prisional lotado em função da lei de drogas aprovada em 2006 durante a gestão Lula e que pode ser vista como uma das responsáveis pelo aprisionamento crescente no país de jovens e pelo fortalecimento das facções criminais; regulamento das Operações de GLO – Garantia da Lei e da Ordem, que mobilizam as Forças Armadas para funções de segurança pública; aprovação da lei que tipifica o terrorismo, entre várias outras medidas que muitos imaginam necessárias de setem postas em prática pelo novo governo mas já em vigor).

O fato é que seu governo está se escudando na agenda moral e ideológica para se blindar dos profundos dilemas econômicos que o país vive; está usando o discurso de ordem para manter o controle da narrativa, evitando que os riscos postos se avolumem. E, para isso, ele precisa do apoio das instituições acima mencionadas. Aliás, narrativa que tem encontrado eco em muitos políticos oriundos das fileiras de tais instituições.

Em suma, eu concordo que as esquerdas vivem um enorme vácuo de liderança e que seus projetos políticos precisam passar por profundas transformações caso queiram reconquistar corações e mentes da população. Os dilemas por elas vividos são intrínsecos a elas próprias e fruto de opções equivocadas quando acreditavam que eram as porta-vozes dos pobres e oprimidos. A ênfase no reconhecimento de direitos, na voz e nas identidades é corretíssima mas precisa vir acompanhada por um projeto de inclusão político amplo o suficiente para ser admirado e desejado pelos milhões de brasileiros e brasileiras órfãos das políticas públicas e reféns do medo e da violência.

A direita soube explorar o medo e venceu. Porém, o que o Fernando Canzian não coloca é que as contradições ideológicas e econômicas do governo de Jair Bolsonaro estão em uma etapa de precário equilíbrio (não à toa simbolizadas nas figuras “indemissíveis” de Sérgio Moro e Paulo Guedes), e que o maior inimigo de sua gestão, no curto prazo, é ele próprio. Identificar os problemas da esquerda é central, mas não podemos minimizar os dilemas do novo governo.

No curto prazo, a esquerda não é o maior inimigo ideológico e econômico do governo Bolsonaro. Sua agenda moral é que pode colocar as oportunidades econômicas em risco real e imediato, por mais que seja ela que, paradoxalmente, o fortaleça e o blinde em um primeiro momento. Que as instituições do sistema de justiça e segurança saibam manter a autonomia e o pensamento estratégico que as têm marcado nos últimos anos.

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O ideal de Justiça e os julgamentos morais da soldado PM Juliane Santos e de Fernanda Camargo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/06/o-ideal-de-justica-e-os-julgamentos-morais-da-soldado-pm-juliane-santos-e-de-fernanda-camargo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/06/o-ideal-de-justica-e-os-julgamentos-morais-da-soldado-pm-juliane-santos-e-de-fernanda-camargo/#respond Thu, 06 Sep 2018 15:05:56 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/Moral-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=250 Com Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Juliane dos Santos, 27 anos, foi morta no dia 2 de agosto de 2018. Juliane era Soldado da Polícia Militar e estava em um bar em Paraisópolis em seu horário de folga quando teve seu celular furtado. Identificou-se como agente da lei na esperança de que recuperasse o bem perdido. Foi brutalmente assassinada por ser policial.

Juliane era também conhecida como “garota sorriso”. Sempre alegre e bem-humorada, Juliane não era apenas uma jovem soldado, mas alguém que sempre sonhou em ser policial e atuar na defesa da lei. Seu corpo ficou desaparecido por cinco dias, o que impediu inclusive que a família pudesse se despedir de forma adequada. O caixão teve que ser lacrado.

Mas a tragédia para a família de Juliane não termina aí. Como se não bastasse seu assassinato, os julgamentos morais passaram a permear o noticiário sobre sua morte. Juliane era lésbica, negra e de família humilde, mas a imprensa achou por bem destacar que, antes de morrer, ela se divertia e namorava uma “ruiva” em um bar. Qualquer pessoa minimamente atenta ao tema da segurança sabe que Juliane se expôs ao identificar-se como Policial Militar em um território dominado pelo PCC, mas sua orientação sexual e a cerveja precisavam constar das análises de seu assassinato.

O julgamento moral que a família de Juliane teve que assistir atônita é vivido hoje por Fernanda Camargo, 40 anos, viúva do mecânico Eduardo Alvos dos Santos. Eduardo, 42 anos, faleceu em 16 de janeiro de 2017 após uma ocorrência de violência doméstica. Fernanda chamara a Polícia Militar porque o marido tornava-se agressivo quando bebia e ela queria tirar seus pertences de casa. Quando a guarnição da PM chegou à residência, Eduardo bateu boca com um dos soldados, e, nitidamente embriagado, caiu segurando-se na farda do policial, que acabou rasgando. O trâmite usual de uma ocorrência como essa era adotar procedimentos de uso progressivo da força, imobiliza-lo e leva-lo para a delegacia para ser autuado. Mas Eduardo foi agredido antes de ser colocado na viatura e, três horas depois, Eduardo morreu dentro da delegacia de Itapevi. O laudo do IML identifica como causa de sua morte uma hemorragia interna traumática, provocada por agente contundente.

Como se este caso não fosse suficientemente trágico, ontem, dia 05 de setembro, a absolvição do soldado responsável pelas agressões adiciona mais uma pitada sádica a este enredo. Em sua decisão, o juiz militar José Alvaro Machado Marques não reconhece o nexo entre os dois fatos e destaca diversas vezes que Eduardo tinha passagens pela polícia e histórico de comportamento violento, como se isso fosse justificativa para ser espancado pelos policiais. Prossegue à sua argumentação, em um processo no qual todas as testemunhas são policiais, afirmando que relatos indicam que Eduardo tinha apenas um “discreto” ferimento no olho e que deve ter morrido de cirrose hepática.

Mas a cereja do bolo de sua conclusão é o parágrafo em que fala sobre a viúva, Fernanda, e os motivos pelo qual continuava a acusar o policial. Sugere o juiz que a viúva pode ser motivada pelo “interesse em buscar indenizações…”. Afinal, o natural não seria esperar que a viúva quer justiça, e sim que ela quer lucrar com o assassinato do marido.

Para não dizer que o eminente juiz foi completamente injusto, ele também afirma em sua decisão que Fernanda pode estar influenciada por “um sentimento de culpa por seus desentendimentos com o marido…”. Bingo! Imagine só, senhor juiz, o que significa para uma mulher vítima de violência doméstica, com uma filha de 17 anos, ver o homem com quem estava casada há quase duas décadas ser espancado por um policial na garagem de casa após uma ligação dela; ver o marido morrer dentro de uma delegacia de polícia em seu colo e ainda ter que lidar com os julgamentos morais do Estado, especulando sobre os motivos de sua busca por justiça.

Quando valores coletivos consagrados nas cláusulas pétreas da nossa Constituição são reduzidos a concepções morais privadas, como podemos compreender que a Justiça adote como símbolo a imagem de Têmis, divindade grega que busca estar acima das paixões humanas para permitir que a verdade não seja apenas a lei do mais forte? Triste momento vivido pelo país…

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