Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Em 2018, letalidade policial custou, ao menos, R$ 4,56 bilhões ao país; e matou 6,2 vezes mais do que nos EUA https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/19/em-2018-letalidade-policial-custou-ao-menos-r-456-bilhoes-ao-pais-e-matou-62-vezes-mais-do-que-nos-eua/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/19/em-2018-letalidade-policial-custou-ao-menos-r-456-bilhoes-ao-pais-e-matou-62-vezes-mais-do-que-nos-eua/#respond Fri, 19 Apr 2019 11:46:27 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/Witzel-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=781 Estimativa inédita feita para o Faces da Violência com base em estudo produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID , indica que, em 2018, as mortes decorrentes de intervenção policial geraram apenas em custos com a perda de anos de vida produtivos das 6.160 mortes registradas no ano passado, R$ 4,56 bilhões.

Esse é o dinheiro que, se não houvesse essas mortes, teria potencialmente entrado na economia brasileira nos próximos anos em função da participação destas pessoas no mercado de trabalho e na economia. A opção por manter tais padrões de uso letal da força não atinge apenas a segurança pública, mas tem efeitos em vários outros aspectos da vida das população e deveria ser mais bem refletida em termos econômicos, sociais, institucionais e éticos.

Por trás da ideia da morte como pacificadora, escondem-se gargalos profundos no nosso modelo de desenvolvimento e na forma como garantimos vida e cidadania para a sociedade brasileira. Vivemos um déficit ético e civilizacional que nos faz aceitar a violência como linguagem e jogar fora a ideia de um projeto de Nação justa e democrática.

Um déficit que, como afirmei em texto em coautoria com Samira Bueno, permite que ocorram situações como a dos 83 tiros de fuzil disparados pelo Exército, no Rio de Janeiro. Como dissemos no texto, o episódio revela que, naquele caso, “não só um carro com uma família que passeava em uma tarde de domingo foi fuzilado, mas, sinais dos tempos, além da morte do músico Evaldo Rosa, também foi morto Luciano Macedo, catador de lixo baleado ao tentar ajudar família. A morte de Luciano representa não só a morte da empatia. Ela é a prova de que a solidariedade foi punida com pena de morte“.

Vamos nos tornando insensíveis à dor e ao sofrimento. Diante do pânico imposto pela violência e pela falência das políticas sociais, é muito fácil banalizar o discurso de que a violência dos criminosos precisa ser combatida com mais violência, ainda mais quando feito a partir de um posts em redes sociais e/ou gabinetes de autoridades que não precisam ir para a ponta da linha para matar ou morrer.

Porém, só demagogia e irresponsabilidade política explicam tais discursos terem tanta ressonância nas políticas públicas. De acordo com o projeto Monitor da Violência, parceria do FBSP com o NEV/USP e o G1, as polícias brasileiras mataram 6.160 pessoas, em 2018, o que dá quase 17 pessoas por dia. Se compararmos com 2014, chama muito atenção que este número é mais do que o dobro do registrado naquele ano. Um crescimento de mais de 100% em 5 anos.

Nossas polícias, sob qualquer métrica, apresentam padrões de uso letal da força em muito superiores à média dos países da OCDE e/ou de países que temos como exemplos de qualidade de vida. Para usar duas comparações bastante comuns da nova “guerra cultural” travada pela ultradireita do país, hoje o padrão de uso da força das nossas polícias está mais parecido com o da Polícia Nacional Bolivariana, da Venezuela, do que as polícias dos EUA.

Isso porque, em 2018, as polícias brasileiras mataram 6,2 mais e morreram 1,9 vezes mais do que as polícias dos EUA. Enquanto aqui houve 6.160 mortes decorrentes de intervenção policial e 307 policiais mortos, nos Estados Unidos, que tem uma população maior do que a nossa, foram registradas 992 mortes decorrentes de intervenção policial e 158 policiais mortos.

Merece destaque que o número de policiais civis e militares vítimas de homicídio ao longo de 2018 teve redução de 18%, mas ainda preocupa pois os policiais continuam a morrer em folga. O Estado, cuja parcela de seus representantes opta por incentivar o morticínio, deveria criar programas de proteção efetiva aos policiais, como apoio social, de saúde mental, jurídico e/ou linhas de financiamento para moradia e escolas.

Dos 307 policiais assassinados no ano passado, ao menos 232 foram vitimados fora do horário de serviço, em situações pouco investigadas e transparentes. Dentre as múltiplas causas passíveis de serem mapeadas temos os policiais vítimas de latrocínios, que reagem a roubos e acabam sendo mortos, e aqueles que morreram enquanto faziam “bico”, a segunda jornada a que expressiva parcela dos policiais brasileiros está sujeita como forma de complementar renda. Mas não temos um esforço de produção de estudos e análises que poderia balizar novas estratégias e ações.

Em resumo, não é normal achar que os protocolos de uso da força das nossas polícias estão adequados e que as taxas altas de morte são consequência da vontade dos “bandidos” de enfrentarem as polícias. A métrica das polícias deve ser o direito e não o comportamento dos criminosos. Aliás, exatamente por isso eles são criminosos, pois estão atentando contra as leis e não podem ser exemplos de nada que guie as políticas públicas. Eles precisam ser identificados e responsabilizados nos termos da nossa legislação.

Sem dúvida, polícias podem matar de forma legítima em nome do Estado, mas, para que isso aconteça, é necessário que não reste dúvidas sobre os padrões de trabalho. Não se trata de decisões individuais de quem puxa o gatilho, mas de uma cadeia de comando e controle que precisa ser sempre diligente e contínua. O uso letal da força nunca é apenas uma decisão individual. É preciso reforçarmos supervisão e controle para que não percamos a mão e presenciemos mais uma vez na história do país a emergência de grupos de extermínio e da ampliação das milícias.

Isso só virá com o reforço das investigações e não com populismo penal, licenças para matar ou com histórias “para boi dormir”, que muitos contam para posarem de vingadores da moral e/ou protetores da ordem. O Poder Público tem que sinalizar que o uso letal da força não é vingança ou faz parte de uma espiral de vendetas, mas é uma possibilidade legítima mas que deve ser usada com muita moderação.

 

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João Doria herdará Polícia Civil com déficit de 13.169 policiais e sem projeto institucional atualizado https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/27/joao-doria-herdara-policia-civil-com-deficit-de-13-169-policiais-e-sem-projeto-institucional-atualizado/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/12/27/joao-doria-herdara-policia-civil-com-deficit-de-13-169-policiais-e-sem-projeto-institucional-atualizado/#respond Fri, 28 Dec 2018 00:35:48 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/12/1628697-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=532 Com Clóvis Bueno de Azevedo. Professor do Departamento de Gestão Pública da FGV-EAESP

De acordo com planilha do Sindicato de Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, apresentada em Trabalho de Conclusão do Curso de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, por Tatiana dos Santos Nogueira, a Polícia Civil paulista enfrenta, em 2018, um expressivo déficit de pessoal, considerando-se a diferença entre o número de vagas existentes e aquelas ocupadas.

São Paulo conta, segundo esta planilha, com 41.912 cargos fixados por lei para a polícia civil paulista. Contudo, só 28.743 estão ocupados, o que corresponde a 31,4% de defasagem, quase um terço do contingente responsável por conduzir as investigações e levar os criminosos à justiça. E isso se repete em várias outras das 14 carreiras existentes na Polícia Civil.

Em termos desagregados, entre as principais carreiras, o maior déficit é na de escrivães, que são os responsáveis por toda a burocracia da polícia civil e por registrarem boletins de ocorrência e inquéritos policiais. Nela, das 8.912 vagas previstas, só 5.973 estão ocupadas, com quase 3 mil não preenchidas (33% do total). Porém, esta não é a única defasagem: entre os delegados, a norma existente fixa em 3.463 vagas de delegados, sendo que 731 estão em aberto.

E o que este déficit nos conta?

A falta de investimento do Governo de São Paulo em repor os policiais que saem da corporação, seja por aposentadorias, expulsões, pedidos de demissão, ou mesmo mortes, revela que inexiste uma política adequada de recursos humanos para a corporação, em grande medida afetada pela decisão do Governo Alckmin de reduzir as despesas do governo ainda que às custas da qualidade das políticas públicas, entre elas a de segurança.

Mas também revela a falta de um projeto institucional que a fortaleça a Polícia Civil em sua missão e mostre, entre outras questões, que os números utilizados pelo planejamento que deu origem ao efetivo fixado e que serve de base para o cálculo do déficit são números críveis, atuais e alinhados às modernas necessidades de uma polícia judiciária – a Polícia Militar, por exemplo, atualiza e publica todos os anos no Diário Oficial seu quadro de efetivo e carreiras, com os números máximos de vagas em cada carreira e por tipo de unidade.

Em geral, as Polícias Civis cumprem o papel de polícia judiciária e é dirigida pela autoridade policial, que, segundo a Constituição, é uma função privativa do cargo de Delegado de Polícia. Cabe à polícia judiciária transformar uma ocorrência/denúncia, se houver evidências mínimas de que um crime fora cometido, em um inquérito policial (peça criada em 1871 e ainda hoje a base para todo o trabalho da Polícia Judiciária e do Sistema de Justiça Criminal) na tentativa de identificar autoria e motivação e, consequentemente, encaminhar os responsáveis por tais atos para apreciação das demais instituições do sistema de Justiça Criminal.

Isso, conforme discussão feita aqui no Faces da Violência em texto anterior, significa algo em torno de 8,4 milhões de casos registrados todos os anos no país, pressionando a capacidade de trabalho e a qualidade das investigações conduzidas. Ou seja, apenas focando no efetivo, dificilmente as polícias civis conseguirão dar conta deste volume de trabalho com padrões de qualidade e esclarecimento que contribuam para a redução da impunidade e da sensação de medo e insegurança da população.

Para resolver este dilema, se olharmos o exemplo da Polícia Federal (PF), veremos que, a partir de 2003, a corporação foi completamente renovada, com a realização de diversos concursos, contando, além disso, com altos investimentos em tecnologia e sistemas. Mas não é só: além da vontade governamental, havia um projeto. No caso da PF, foi priorizar os crimes de corrupção e do “colarinho branco”, com uma estratégia de forças-tarefa e de alta exposição midiática por trás, de modo a conquistar apoio e legitimidade junto à população. Por certo, atualmente a carência de recursos na Polícia Federal está em níveis preocupantes. Mas há um identidade organizacional que a fortalece em suas demandas e a blinda em relação às pressões políticas.

É necessário, portanto, que a Polícia Civil, não só em São Paulo, mas no país todo, tenha um projeto institucional e que ela não se deixe cair nas tentações do Poder. Não é raro, por exemplo, que cargos de direção sejam vistos como moeda de troca político-eleitorais. Assim, não se garante que tais cargos sejam ocupados por pessoal motivado e vocacionado para a função, já que muitos deles implicam o domínio de saberes que extrapolam o saber jurídico e demandam conhecimentos sobre ciência, tecnologia, entre outros.

Concordamos que não há a mínima condição da instituição prover um serviço de qualidade e reduzir as intermináveis horas de espera para a simples lavratura de um Boletim de Ocorrência em um distrito policial, se o quadro de pessoal não for suficiente. Mas também é verdade que os policiais civis precisam estar dispostos a investir pesado na blindagem da corporação em relação às pressões políticas, com metas transparentes e auditáveis de produtividade, execução financeira e orçamentária, esclarecimentos de crimes e melhoria no relacionamento com a população.

Se o governo Doria quiser que a Polícia Civil tenha papel efetivo na redução do medo, da violência e do crime no estado, terá de rever a política de recursos humanos da corporação e viabilizar que a maior polícia civil do Brasil seja também a mais moderna em termos de gestão de pessoas. Elevar a remuneração, hoje das mais baixas no país, é um bom começo. Mas não basta: além de elevar salários e de enfrentar o déficit de pessoal, é preciso promover valorização, motivação e capacitação; é preciso um novo marco de governança na Polícia Civil de São Paulo, com requisitos que garantam autonomia investigativa mas que cobrem transparência e maior controle sobre escalas de trabalho, saúde do policial e critérios de alocação do efetivo, entre outros indicadores.

A Polícia Civil é peça-chave na redução da violência e da impunidade e não pode ficar sucateada pela eterna crise de implementação e execução de políticas que acomete a segurança pública no Brasil.

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