Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Lava Jato: crônica de uma morte anunciada https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/01/lava-jato-cronica-de-uma-morte-anunciada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/01/lava-jato-cronica-de-uma-morte-anunciada/#respond Thu, 01 Apr 2021 22:49:52 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/lava-jato-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1710 “O julgamento da suspeição de Moro e a decisão sobre a incompetência da Vara Federal de Curitiba para julgar os processos contra o ex-Presidente Lula foram somente a pá-de-cal sobre a cova já coberta. “

Arthur Trindade M. Costa*

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo**

 

Para muitos, as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal marcaram o fim da operação Lava Jato. Na verdade, o fim da operação começou bem antes, com a adesão do ex-juiz Sergio Moro ao governo Bolsonaro, como Ministro da Justiça e Segurança Pública e fiador da confiabilidade do ex-capitão. O julgamento da suspeição de Moro e a decisão sobre a incompetência da Vara Federal de Curitiba para julgar os processos contra o ex-Presidente Lula foram somente a pá-de-cal sobre a cova já coberta. Contribuíram para o sepultamento as revelações da Vaza Jato (Intercept Brasil) sobre as relações promíscuas entre integrantes do MP Federal e o juiz do caso, assim como os acordos entre Bolsonaro e Centrão, pouco interessados no efetivo combate à corrupção.  

Com o fim da operação Lava Jato se iniciou um debate sobre qual seria o seu legado. Não há dúvida que a Lava Jato foi um marco no combate à corrupção, ao levar ao banco dos réus importantes empresários e políticos. Mas é necessário lembrar que tivemos outras operações bem-sucedidas nesse tema. Entre 2003 e 2020, a policial federal realizou mais de 1000 operações com foco no desvio de dinheiro público, que levaram à prisão de governadores, deputados e gestores públicos. 

Todas essas operações, incluindo a Lava Jato, foram resultado de mudanças institucionais introduzidas a partir de 1988. A Constituição Federal transformou a Polícia Federal em Polícia Judiciária, criou o Ministério Público Federal e a Justiça Federal. Ou seja, a CF 88 criou o Sistema de Justiça Criminal no âmbito federal. A medida teve enorme impacto no combate à corrupção, uma vez que, dada a proximidade com o poder local, dificilmente a Polícia Civil, o Ministério Publico e o Poder Judiciário nos estados conseguem investigar, processar e punir políticos corruptos.

A década de 1990 foi marcada pela construção e reconfiguração dessas instituições. Foram implantadas Varas Federais e realizados os primeiros concursos para juízes federais. Sérgio Moro foi aprovado num dos primeiros concursos, realizado em 1996. A Polícia Federal aumentou seus efetivos e mudou seu plano de carreiras, para dar mais autonomia às investigações. O Ministério Público Federal começou a ser estruturado a partir de 1993, com a promulgação da Lei Complementar 75/1993. 

O período foi marcado também por uma série de leis de combate à corrupção, tipificando de forma mais específica estas condutas e prevendo novos mecanismos de persecução penal. Essas leis são os principais instrumentos utilizados pelos policiais e procuradores para investigar e denunciar esse tipo de delito. Dentre elas destacam-se a Lei 7492/86, sobre crimes financeiros, a Lei 8666/93, que trata dos crimes licitatórios, e a Lei 9618/98 sobre lavagem de ativos. 

A década de 1990 também foi marcada pela criação de outras instituições fundamentais para investigação dos crimes de desvio de dinheiro público. Em 1998 foi criado o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), originalmente vinculado ao Ministério da Fazenda. O COAF é um órgão de inteligência financeira destinado a monitorar todas a transações financeiras realizadas no país. Antes disso, em 1996, foi criada a Coordenação-Geral de Pesquisa e Investigação (Copei), a unidade de inteligência da então Secretaria da Receita Federal (SRF). Em 2013, o Banco Central implantou o sistema BACEN JUD, para melhorar a comunicação com o Poder Judiciário. Isso conferiu celeridade no cumprimento das decisões judiciais de requerimento de informações, bloqueio de valores e de monitoramento de transações financeiras. 

A operação Lava Jato foi resultado de um processo de aperfeiçoamento institucional. Portanto, o combate à corrupção não começou com ela a Lava Jato e tampouco irá acabar com a sua extinção. Mesmo assim, é interessante analisar como isso aconteceu.

Foi inglório o fim da operação que pretendia livrar o país da corrupção sistêmica. Foram poucos os grupos que lamentaram sua morte. Fosse Lula ou Haddad o Presidente da República, e anunciasse o fim da operação, haveria uma revolta. Grupos iriam para as ruas protestar. Generais fariam discursos e tuites em tom ameaçador. Autoridades do judiciário iriam se manifestar sobre os perigos que isso poderia acarretar.

Não foi o que aconteceu. Muitos apoiadores de Bolsonaro passaram a considerar Sérgio Moro, o super-juiz, um traidor, desde que se voltou contra a criatura. E acreditam que de fato não há mais corrupção no governo, ou que não é relevante frente à ameaça comunista e globalista. Para eles, o país não precisa mais de uma Lava Jato, mas sim de um novo mandato para Bolsonaro, de preferência com salvo conduto para ele e seus filhos contra a interferência do Poder Judiciário.

Os apoiadores de Lula, por motivos óbvios, sempre consideraram Moro um inimigo. Um juiz que perseguiu o partido e sua maior liderança, e criminalizou a atividade política, a serviço de interesses político-partidários. O vazamento dos diálogos entre o juiz e os demais integrantes da força tarefa deslegitimou suas decisões. Entretanto, não se pode esquecer que muitos dos condenados pelo ex-juiz confessaram seus crimes e devolveram o dinheiro roubado. Não custa lembrar que Antônio Palocci, ministro todo poderoso dos governos Lula e Dilma admitiu seus crimes, delatou Lula, e hoje não tem quem o defenda no PT.

Muitos que não nutriam simpatia pelo ex-Presidente ficaram chocados com o vazamento das conversas entre Moro e os procuradores. Até a Ministra Carmen Lúcia, anteriormente defensora da operação, teve de mudar seu voto e admitir a parcialidade do juiz, dando o voto decisivo para a anulação de suas decisões contra Lula. O argumento apresentado por alguns estudiosos do campo jurídico, de que a Lava Jato representava uma salutar renovação das práticas jurídicas, deixando de lado as tendências garantistas em nome de uma maior eficiência no combate ao crime, mostrou-se frágil diante das evidências de que agir de forma ilícita no processo acaba por produzir efetivamente a impunidade, quando as irregularidades são finalmente reconhecidas pelos tribunais superiores.

Uma das poucas vozes que se ouviu lamentando o fim da Lava Jato foi a da grande mídia, especialmente a Rede Globo. Também pudera, ela foi o principal apoiador da operação, cumprindo um papel fundamental para sua legitimação, e sempre alimentada a articulada por Moro. Seria constrangedor ter que fazer mea-culpa nos editoriais dos jornais ou ao vivo nos telejornais. É importante notar que o apoio à operação não foi só uma decisão dos proprietários e editores dos jornais. Vários jornalistas aderiram de forma quase religiosa aos ideais lavajatistas. Publicavam as informações vazadas pelos promotores, policiais, e até pelo juiz, sem ao menos verificar sua veracidade sobre datas, valores, fontes, etc. Aderiram ao discurso dos fins justificam os meios, colocando por terra direitos e garantias sem os quais o processo penal perde sua base de sustentação e legitimidade democrática.

O lavajatismo é uma espécie de tenentismo do século XXI. Como Prestes, Cordeiro de Farias e Juarez Távora, os membros da Lava Jato criaram um movimento de salvação nacional. A exemplo dos tenentes, sua causa era combater a corrupção política. Em ambos os casos, os métodos se revelaram antidemocráticos. A proximidade entre o juiz e os promotores, revelada nas mensagens vazadas, fere o princípio do devido processo legal, previsto na constituição de 1988 e base do Estado de Direito. Da mesma forma, a escuta nos telefones dos advogados de defesa é crime previsto no Código Penal.

Curioso que um dos remédios para estes problemas foi aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro de 2020. Trata-se da criação do juiz de garantias. Embora muitos duvidem, policiais e promotores são capazes de produzir provas robustas através de investigações legais, realizadas sob supervisão de um juiz. Garantindo a lisura da investigação, e afastando provas ilícitas, esta nova figura, já existente em outros ordenamentos, fortaleceria a investigação preliminar ao processo, dando a ela maior valor probatório.

Boa parte das medidas para a melhoria do combate à corrupção se originaram nos debates da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Ativos. Criada em 2003, a ENCCLA é coordenada pelo Ministério da Justiça e reúne representantes de mais de 70 órgãos dos três poderes, tanto em âmbito federal quanto estadual. A partir dos debates entre os diferentes órgãos foi possível articular as atividades do COAF com os trabalhos do Secretaria de Receita Federal e do Banco Central. Também partiram da ENCCLA sugestões para aperfeiçoar a cooperação internacional sobre investigação e recuperação de ativos. Portanto, fortalecer a ENCCLA é fortalecer o combate à corrupção. 

Obviamente não basta fortalecer a ENCCLA e as instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal no âmbito nacional. Embora necessárias, as medidas não são suficientes. É preciso aprovar uma reforma do sistema eleitoral que aumente a accountability dos partidos e parlamentares. As normas que regem o financiamento de campanha também precisam ser aperfeiçoadas.

O combate à corrupção depende muito mais do aperfeiçoamento institucional do que dos ideais de um movimento salvacionista. Ao contrário, posturas voluntaristas, à margem do Estado de Direito, minam a legitimidade das instituições e provocam reações entre aqueles que, embora apoiem o objetivo, não podem compactuar com os meios impeditivos do exercício pleno do direito de defesa. Os maiores interessados em desmontar os mecanismos de controle e repressão agradecem.

 

* Arthur Trindade Maranhão Costa é Professor da UnB, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e editor do Fonte Segura.

** Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é sociólogo, professor titular da Escola de Direito da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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O reconhecimento fotográfico em delegacias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/05/o-reconhecimento-fotografico-em-delegacias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/05/o-reconhecimento-fotografico-em-delegacias/#respond Fri, 05 Mar 2021 13:51:11 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/presos-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1688 Apesar da ausência de previsão legal para utilização como prova, recurso é muito empregado. Debate sobre possíveis erros judiciais precisa ser ampliado

Mauricio Garcia Saporito*

A pedido do Programa Fantástico, da TV Globo, o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege), com o indispensável apoio da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), realizou um estudo sobre a utilização de reconhecimentos fotográficos em sede policial. O objetivo era apontar possíveis falhas na utilização daquele meio de prova enquanto formador da culpa em processos criminais.

Durante os meses de novembro e dezembro de 2020, defensoras públicas e defensores públicos estaduais com atuação criminal encaminharam à diretoria de pesquisas da DPRJ casos que envolvessem necessariamente três requisitos: o reconhecimento pessoal em sede policial ter sido feito por fotografia; o reconhecimento não ter sido confirmado em juízo; a sentença ter sido de absolvição.

Cabe ressaltar que o recorte da pesquisa tinha que envolver absolvição, logo, em 100% dos processos analisados houve o reconhecimento e acusação formal de uma pessoa declarada inocente por sentença judicial.

Foram relacionados na pesquisa 28 processos com 32 acusados, já que em quatro processos haviam dois acusados. A lista dos processos abrangeu dez estados brasileiros, sendo 13 casos do Rio de Janeiro, três da Bahia; dois casos cada para os estados de Goiás, Minas Gerais, Santa Catarina e São Paulo; e um caso por estado para Mato Grosso, Paraíba, Rondônia e Tocantins. A distribuição dos processos aconteceu entre 2012 e 2020.

Quanto aos crimes imputados, a pesquisa encontrou dois homicídios consumados, um homicídio tentado e um furto. Os demais foram acusações pelo crime de roubo.

Digno de ser muito ressaltado foi a cor da pele das pessoas reconhecidas por fotografia e posteriormente absolvidas. Apenas 17% dos submetidos aos reconhecimentos fotográficos eram brancos. Todos os demais 83% eram de cor negra que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), inclui pretos e pardos.

Outro dado alarmante se refere ao uso da prisão preventiva. Em 19 casos a prisão cautelar foi decretada. O tempo de segregação variou muito, de 24 a 851 dias, o que significa que um dos acusados ficou preso por aproximadamente dois anos e três meses com base apenas em um reconhecimento pessoal por fotografia realizado durante a investigação policial.

Durante a análise, ganharam destaque três episódios que demonstraram como o reconhecimento, pessoal ou fotográfico, mesmo com todos os riscos inerentes às provas dependentes da memória, acaba sendo considerado suficiente para se levar alguém a julgamento.

No primeiro caso destacado, a vítima reconheceu uma pessoa que estava presa na data do crime. A autoridade policial responsável pela investigação sequer diligenciou junto ao sistema informativo da Secretaria de Administração Penitenciária para descobrir que aquela pessoa indiciada não poderia ter participado de nenhum fato criminoso fora do ambiente carcerário.

No segundo destaque,  a vítima teria reconhecido a fotografia de uma pessoa monitorada eletronicamente. Novamente o delegado de polícia poderia ter pedido o rastreamento da tornozeleira para comprovar a hipótese acusatória, o que não aconteceu.

Por fim, o estudo destacou o reconhecimento de uma pessoa que estava no exterior na data do crime apurado. Tudo comprovado nos autos. Não é crível que o delegado de polícia responsável pela investigação não pudesse ter acesso a esses dados, que poderiam ter sido facilmente entregues pela Polícia Federal.

A verdade é que, analisando todos os processos relacionados, podemos concluir, sem nenhum medo de errar, que apesar da ausência de previsão legal para a realização de reconhecimentos fotográficos como prova, ele ainda é muito empregado e, ressalte-se, sem nenhum critério. Sequer sabemos como essas fotos foram tiradas e como são apresentadas.

Outro ponto importantíssimo é que, realizado o reconhecimento, as autoridades policiais desistem de outras diligências necessárias à elucidação do crime, entendendo que materialidade e autoria estão devidamente comprovados.

A intenção do relatório não foi e nem é atribuir culpa a esse ou àquele ator do sistema de justiça penal, mas sim que seja ampliado o debate sobre a possibilidade de erro judicial e da limitação do que hoje é considerado prova no processo penal. Que estudos com tamanha profundidade sejam o ponto de partida para preenchermos a lacuna deixada pelo livre convencimento motivado, permitindo seu melhor controle em todas as fases da persecução penal.

 

*Defensor Público do Estado da Bahia, coordenador da Comissão Criminal Permanente do Condege (Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais).

 

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Na edição desta semana, leia também “Fundo Nacional de Segurança Pública tem gasto recorde em 2020” e “Violência doméstica e Covid: desafios para o acesso das mulheres à Justiça”.

 

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