Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Medo das milícias supera medo dos traficantes em favelas e bairros nobres do Rio, diz Datafolha e FBSP https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/02/18/medo-das-milicias-supera-medo-dos-traficantes-em-favelas-e-bairros-nobres-do-rio-diz-datafolha-e-fbsp/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/02/18/medo-das-milicias-supera-medo-dos-traficantes-em-favelas-e-bairros-nobres-do-rio-diz-datafolha-e-fbsp/#respond Mon, 18 Feb 2019 16:28:11 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/02/info_mapa_desk2-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=624 Os milicianos, que ganharam as manchetes nacionais neste início de 2019 com o caso de Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro, são hoje mais temidos que os traficantes de facções criminosas dentro das comunidades e entre os moradores da zona sul da cidade do Rio de Janeiro.

Segundo o Datafolha, que ouviu 843 pessoas na capital fluminense entre os dias 23 e 25 de janeiro deste ano em pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgada nesta segunda (18), 29% dos entrevistados nas comunidades têm mais medo das milícias do que de traficantes e policiais – 25% têm mais medo do tráfico, 18% da polícia e 21% de todos na mesma proporção.

Na zona sul, onde se concentram os bairros mais ricos da cidade, esse índice é ainda maior: 38% temem mais as milícias contra 20% dos traficantes, 24% de todos, e 12% da polícia.

O fato é que as milícias não são um fenômeno recente e já há vários estudos e reportagens sobre como elas funcionam e, basicamente, vão ganhando legitimidade política; vão dominando cada vez mais territórios pela violência e pelo terror; e vão almejando o poder do Estado. Em época em que o debate sobre terrorismo volta à tona no Brasil, as milícias seriam as organizações que, no país, mais se assemelham a grupo terroristas à luz do direito internacional, pois almejam rivalizar e substituir o Estado de Direito.

Seja como for, uma pesquisa rápida na web conseguirá localizar boas análises de pesquisadores como Alba Zaluar e Ignácio Cano, ambos da UERJ, que aprofundam esta discussão. Afinal, este é um tema que merece toda a dedicação das autoridades comprometidas com a manutenção do Estado de Direito e com a integridade da nação e do seu território nacional.

E esse dado chama ainda mais a atenção pois aparece em uma pesquisa que foi elaborada para avaliar o impacto da intervenção federal na segurança pública, encerrada em 31 de dezembro do ano passado. Ou seja, surge em um momento em que o Rio de Janeiro poderia estar vivendo uma reversão positiva do cenário de medo e violência, após inúmeros esforços feitos ao longo dos quase 11 meses de ação das Forças Armadas na cidade.

Mas a intervenção federal fez com que os militares tenham trabalhado muito mas não tenham conseguido mudar o quadro de medo, risco e insegurança encontrado no Rio de Janeiro antes da ação das Forças Armadas, já que esteve, conforme relatório do Observatório da Intervenção, em muito baseada na premissa do enfrentamento e que, resultados de médio e longo prazo, ainda demorarão a chegar e estão em risco pelas posições ideológicas do novo governador.

Se forem levados em consideração os dados colhidos em toda a cidade, o medo dos traficantes de facções ainda supera o das milícias, com 34% e 27%, respectivamente. Outros 12% tem mais medo de policiais e 22% tem medo de todos na mesma proporção. Entre as pessoas que declaram ter mais medo dos traficantes, 39% são favoráveis à intervenção federal na cidade, 17% foram contra e 16%, indiferentes. No caso de quem teme as milícias, foram 27% a favor, 30% contra e 18% mostraram-se indiferentes.

O levantamento também questionou se os entrevistados foram de fato vítimas de algum tipo de violência nos últimos 12 meses. Os dados mostram um contraste entre o medo e a realidade dos cariocas. Nesse caso, 29% se viram no meio de fogo cruzado entre policiais e criminosos, em um indicativo de que há algo de muito equivocado nas políticas de segurança implementadas na cidade.

Diante de tais números, não é difícil compreender o quanto é ineficiente e, até mesmo, tosco, investir em receitas que não coordenem esforços e que não articulem, simultaneamente, prevenção da violência e repressão qualificada da criminalidade. Pacotes ou medidas que não levem isso em consideração e/ou apostem na lógica do confronto só agravarão o cenário de devastação moral do Rio de Janeiro – e, sendo sincero, do Brasil todo.

Aliás, não adianta nos indignarmos de cima dos nossos pedestais acadêmicos e sociais e falarmos que as favelas são lugares que amontoam gente e são abandonados pelo Estado. Isso é importante para fazer a sociedade refletir, mas soluções efetivas precisam ser construídas em conjunto e ouvindo as próprias comunidades. Do contrário, não seremos em nada diferentes dos higienistas do começo do século XX.

A pesquisa do Datafolha é a segunda do gênero realizada a pedido do FBSP para monitorar os resultados da intervenção federal no Rio de Janeiro, que terminou em dezembro do ano. Uma primeira foi realizada poucos dias depois do início da operação. Os dados de 2019 não diferem muito desta primeira. Ou seja, os levantamentos realizados em março do ano passado e em janeiro deste ano mostram um aspecto pouco debatido no que diz respeito à segurança pública que é a dimensão do medo. As pessoas continuam apavoradas e de nada adiantará políticas criminais e penitenciárias que foquem apenas na esfera penal e processual penal.

Se queremos superar as anacrônicas e ineficientes políticas criminais e penitenciárias brasileiras, temos que começar dando voz para as comunidades e para os policiais que estão na ponta da linha atendendo a população. A sapiência das leis reside não em silenciar as vozes da cidadania, mas em potencializá-las em um novo modelo de segurança pública e justiça criminal que seja capaz de verdadeiramente reduzir a violência e o medo; seja capaz de tornar o Brasil mais seguro sem atalhos ou soluções mágicas.

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A vez da ‘mão amiga’ do Exército Brasileiro na segurança pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/13/a-vez-da-mao-amiga-do-exercito-brasileiro-na-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/13/a-vez-da-mao-amiga-do-exercito-brasileiro-na-seguranca-publica/#respond Sat, 13 Oct 2018 18:54:43 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/15191328575a8c20b9b3277_1519132857_3x2_rt-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=326 Com Arthur Trindade Maranhão Costa, membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Professor da UNB. Ex-Capitão do Exército Brasileiro e Ex-Secretário de Segurança Pública e da Paz Social do Distrito Federal.

Quando se fala no envolvimento das Forças Armadas na segurança pública, quase sempre, lembramos das custosas e pouco efetivas operações de ocupações de comunidades no Rio de Janeiro. Operações que estão em muito lastreadas na doutrina penal militarizada do inimigo, cujos objetivos é conquistar territórios e derrotar o inimigo, incapacitando-o seja pelo tratamento distinto no campo penal, pelo “abate” ou pela prisão.

O atual debate eleitoral, seja para a Presidência da República ou seja para Governadores de Estado, tem reforçado esta perspectiva e mostra-se profundamente ideologizado pelos representantes, por mais estranho que possa parecer ao leitor atualmente, da direita conservadora. Ao gritar “pega ladrão” escondemos aquilo que não queremos mostrar, por mais que a repressão qualificada da criminalidade é urgente e pouco debatida nos planos de governo de quase todos os candidatos no país.

Valorizar as polícias e as Forças Armadas virou sinônimo de autorizar enfrentamentos abertos, sem que pensemos na efetividade de ações que são tentadas faz décadas e que só agravam o quadro de pânico moral e social vivido pela população do país. O problema da área é muito mais de governança do que de leniência e frouxidão legal; a segurança pública ganharia muito mais se deslocasse seu olhar para o direito administrativo do que para o direito penal.

Ao mesmo tempo, não falamos sobre as condições de vida e trabalho dos milhares de policiais brasileiros e não nos preocupamos com a dupla vitimização a que são submetidas milhões de pessoas reféns da tirania do crime organizado, das milícias e dos confrontos e tiroteios com “forças de segurança”, que na reprodução de um mesmo padrão e emulando narrativas de combate de grupos terroristas no mundo já passaram todas as serem chamadas assim sem maiores distinções entre funções e competências institucionais.

Tudo foi colocado na mesma embalagem, sem que os problemas de governança e de modelo de organização do sistema de justiça criminal e de segurança pública sejam enfrentados. Prefere-se atribuir as mazelas da área à influência da teoria de Antonio Gramsci e não se avança na implementação de mudanças previstas na Constituição de 1988 e que, passados 30 anos, continuam sendo promessas do texto constitucional.

Normas, Leis e Regulamentos que hoje dão forma e sentido ao funcionamento das instituições de segurança pública brasileira são anteriores à Constituição e não foram produzidos pela esquerda, que por sinal sempre preferiu fugir deste tema ou fazer mais do mesmo. Os problemas da área não são problemas ideológicos. São omissões ou falhas de modelagem jurídica e institucional que até hoje o Congresso Nacional não quis solucionar.

E, sem que tivéssemos feito nenhuma consulta prévia ao Exército Brasileiro, queremos demonstrar com evidências que, se olharmos de forma menos ideologizada e mais profissional, iremos perceber que os dilemas da segurança pública podem ser mais bem endereçados para a conquista da paz e da cidadania se trabalharmos a partir do espírito do que está previsto na nossa Constituição Federal.

Ou seja, a eficiência democrática das instituições exige capacidade de mobilização e inovação e não nos permite confundir a agenda de partidos e candidatos, mesmo que tenham sido eles vinculados a qualquer uma das “forças de segurança”, com a missão das instituições de Estado, que são a garantia da estabilidade política e institucional do país. Elas não pertencem a nenhum espectro político ou a nenhum indivíduo ou grupo, mesmo que egresso delas próprias.

Feita esta introdução, este texto propõe uma inversão absoluta do engajamento que é dado ao Exército Brasileiro na segurança pública do país. Ao invés de pressionar a Força Terrestre com ações reconhecidamente tópicas e de baixo impacto temporal, nossa ideia é aproveitar uma faceta pouco valorizada da Força e que pode gerar ganhos de longo prazo na prevenção da violência e, até mesmo, no combate à corrupção.

Estamos falando da utilização dos Batalhões de Engenharia de Construção (BEC) na urbanização de territórios dominados pelo crime e pela violência.

E como fazer isso? De acordo com o Diagnóstico dos Homicídios no Brasil, do Ministério da Justiça, em 2015, apenas 111 municípios concentram 76,5% do total de homicídios. Este percentual não mudou muito desde 2015. Boa parte dessas mortes estão localizadas na região Nordeste e, via de regra, concentram-se em 2 ou 3 bairros de cada cidade. Ou seja, as mortes violentas são um fenômeno altamente concentrado territorialmente.

Se atuássemos prioritariamente em cerca de 300 bairros/distritos dos municípios com maior número de mortes violentas intencionais teríamos, no curtíssimo prazo, uma redução bastante significativa da violência e a inclusão de milhões de pessoas no Estado de Direito. Afinal, estes bairros abrigam a população de baixa renda e negra que reside na periferias dos grandes e médios municípios e que são as maiores vítimas da violência.

Esses bairros têm, em geral, uma fraca infraestrutura urbana: precárias ou inexistentes condições de pavimentação, saneamento básico, iluminação e equipamentos para esporte, lazer, cultura e educação. A vida dos jovens moradores destas localidades é marcada pela exclusão social e pela falta de perspectivas de renda e trabalho. A prisão é uma das poucas políticas universais reservadas a estes jovens e, bem sabemos, ao serem presos nas condições prisionais existentes, esses jovens viram mão de obra barata e descartável das organizações criminosas.

O emprego dos BEC significaria uma revolução por lidar, simultaneamente, com as causas e com as consequências do crime, do medo e da violência. A ideia de confronto aberto seria substituída pela ocupação permanente dos territórios dominados pelo crime com políticas públicas. O Exército poderia evitar, ainda, que quadrilhas ou milícias tomassem conta das unidades do “Minha Casa, Minha Vida” antes mesmo que elas sejam entregues à população. Quase o Plano Marshal brasileiro para a reconstrução da esfera pública nestas localidades e a garantia de cidadania.

Caso o leitor não saiba, os BEC são um dos grandes orgulhos do Exército Brasileiro, cujo lema é “Braço Forte, Mão Amiga”. Esta mão amiga vem ajudando o desenvolvimento nacional há mais de 100 anos. Durante os governos Lula e Dilma, os engenheiros militares foram empregados para obras de duplicação de rodovias, transposição do rio São Francisco e construção de aeroportos, dentro outras. Exército não serve apenas para matar o inimigo, como alguns salvadores da pátria gostam de anunciar.

Em função deste recente emprego, os Batalhões de Engenharia de Construção (BEC) estão muito bem equipados e treinados. Entretanto, sua capacidade está ociosa, dada a atual situação fiscal do país e as prioridades dos atuais dirigentes do país. Atualmente existem 12 BEC’s, sendo 5 na região Nordeste, 4 na Norte, 2 na Centro Oeste e 1 na Sul.

O emprego dos BEC’s é coordenado pelo Departamento de Engenharia e Construção do Exército. Ele é feito através de convênios como os governos municipais e estaduais, ou diretamente junto ao governo federal. Dependendo da obra, os militares do Exército podem contratar civis para auxiliar os trabalhos e podem atuar, em parceria com TCU ou Ministério Público, na fiscalização e prevenção da corrupção que infelizmente tem marcado o setor de infraestrutura do país desde tempos imemoriais.

Seu emprego não depende de intervenção federal, que tem impactos no funcionamento regular do Congresso Nacional, ou Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). E as obras poderão ser custeadas com os recursos já existentes no Ministério das Cidades. Não se trata aumentar os gastos, mas de dar foco e efetividade a eles.

Dito de outro modo, se valorizarmos o pensamento estratégico que marca da doutrina militar das Forças Armadas no mundo, mostra-se muito mais eficiente em termos de conquista dos objetivos de pacificação e incorporação cidadã de milhões de jovens à sociedade da “ordem” investirmos na desconstrução dos ambientes que possibilitam que territórios fiquem à mercê de quadrilhas, milícias e facções criminosas. Segurança Pública não pode ficar reféns de teses equivocadas, desprovidas de evidências e saturadas por um novo ciclo de doutrinação ideológica, mesmo que este seja de direita, que muitos confundem com o lado do “bem”.

O lado da Segurança Pública é a nossa Constituição e é nela que as instituições de Estado balizam suas condutas e missões.

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6 meses depois, qual o balanço da intervenção federal no Rio de Janeiro? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/08/16/6-meses-depois-qual-o-balanco-da-intervencao-federal-no-rio-de-janeiro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/08/16/6-meses-depois-qual-o-balanco-da-intervencao-federal-no-rio-de-janeiro/#respond Thu, 16 Aug 2018 13:03:53 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/08/17269233-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=197 A Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro completa seis meses de vigência hoje. A meu ver, como balanço, temos parcos ganhos na redução de crimes patrimoniais, sobretudo os roubos de cargas, e imensos problemas, como o recrudescimento dos confrontos, dos tiroteios e dos homicídios, como revelou reportagem de Júlia Barbon e Lucas Vettorazzo, da Folha de S.Paulo. Isso para não falar do limbo ao qual foram enviados os recursos destinados à operação e que Iara Pietricovsky e José Antônio Mororni, do INESC, tão bem analisaram em artigo sobre o tema.

Em março, o FBSP e o Datafolha divulgaram a pesquisa “Rio Sob Intervenção“, que mostrava um pouco do contexto que deflagrou tal iniciativa. No fundo, temos um enorme desafio civilizatório, que assusta até o chefe da maior máquina de guerra do mundo, o secretário de Defesa dos EUA, que visitou o Rio de Janeiro esta semana em meio aos já “naturalizados” tiroteios.

Mais do que nunca, os militares das Forças Armadas foram levados a um protagonismo ingrato; uma enorme encalacrada que os pressiona a atingir objetivos que, a bem da verdade, não são deles, mas do Poder Público como um todo, incluindo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; o Ministério Público; as Polícias. E em todas as suas esferas (União, Estado e Município).

A segurança pública tem sido tratada no Brasil de forma descoordenada e caótica faz anos e não seriam poucos meses que mudariam este quadro. E, se lembrarmos a própria lógica militar, um dos elementos de sucesso de uma operação desta envergadura é a gestão de expectativas, que também tem deixado a desejar… A melhor “arma” para lidar com todas estas questões seria a transparência e a prestação de contas, mas o Comando da Intervenção resiste a adotá-la e prefere exercitar musculatura bélica. Os erros e omissões históricos na segurança acabarão contaminando a credibilidade das Forças Armadas? Espero sinceramente que não.

Mas, para fazer um balanço destes seis meses de Intervenção, reproduzo, com a devida anuência, a introdução do relatório “Vozes da Intervenção”, de autoria de Silvia Ramos, uma das coordenadoras do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes e responsável pelo Observatório da Intervenção, um consórcio da sociedade civil estruturado para monitorar esta inédita iniciativa do Governo Federal. E, além do texto, sugiro que todos assistam a este vídeo, dirigido por Bebeto Abrantes, com roteiro de Anabela Paiva. Ele toca fundo a todos e todas que acreditam na vida como valor máximo a ser preservado em um Estado de Direito.

O RIO PRECISA DE UMA POLÍTICA DE SEGURANÇA QUE SALVE VIDAS, por Silvia Ramos

Seis meses após o início da intervenção, já é possível fazer uma avaliação dessa experiência, com base no que foi realizado. Olhando os números, vemos um quadro desalentador. Os índices mais sensíveis permanecem altos, como mortes violentas, tiroteios e chacinas. Houve um crescimento preocupante de ocorrências que denotam descontrole no sistema de segurança pública, como mortes decorrentes de intervenção militar ou policial. A vitimização dos próprios agentes de segurança continua alta.

Depois de seis meses, também é difícil entender os caminhos dos recursos prometidos pelo Governo Federal, e se esse montante será usado, ou não, durante a intervenção. As dezenas de operações militares, que o próprio Exército chama de “faraônicas” e, segundo os porta-vozes da intervenção federal, chegam a mobilizar cinco mil agentes, ao custo de mais de um milhão de reais cada, arrecadaram poucas armas e tiveram efeito reduzido na desarticulação de quadrilhas até agora.

Não bastassem os números, nossa memória da intervenção tem, até aqui, a marca indelével de episódios traumáticos, como os tiros disparados de helicópteros da polícia sobre favelas e a morte do estudante Marcos Vinícius, abatido por tiros originados em um blindado, no Complexo da Maré, quando seguia para a escola. Depois de seis meses, a polícia fluminense, com sua fraca cultura investigativa, não elucidou o crime contra Marielle Franco; não explicou como se deu a chacina da Rocinha, em que oito pessoas foram executadas durante uma operação do Batalhão de Choque, em março; nem investigou as quatro mortes durante operação na Cidade de Deus, em maio. A verdade é que o Gabinete da Intervenção não deu respostas sobre as mais de 600 mortes decorrentes de ação policial ocorridas sob sua gestão. E qual é a taxa de elucidação dos mais de dois mil homicídios ocorridos no estado durante o mesmo período? Ninguém sabe.

O Gabinete da Intervenção continua sem a capacidade de integrar os agentes do sistema de segurança pública do Rio. Oficiais da Polícia Militar pouco são ouvidos nos processos de diagnóstico e planejamento estratégico da intervenção.

A Polícia Civil, responsável pela Inteligência no sistema, tem obtido poucos avanços na investigação de quadrilhas, tráfico de armas, chacinas e facções. Em compensação, faz suas próprias operações, multiplicando ações redundantes e tiroteios inúteis. Um balanço de uma das medidas chamadas de “estruturantes” do Plano revela que só quatro, entre os 39 batalhões da PM do Rio de Janeiro, foram vistoriados pelo Exército. Apenas 11 das 66 metas do Plano Estratégico da Intervenção foram cumpridas.

Após seis meses, nos damos conta de que a intervenção federal está testando um modelo de segurança pública baseado em uma concepção militar, que pensa desafios de violência e criminalidade como problemas de guerra, a ser enfrentados por generais e batalhas, e não a partir de mudanças na gestão, fortalecimento da integração, inteligência e foco na redução dos crimes contra a vida. O que está em questão é um modelo de segurança dependente de munições, tropas e equipamentos de combate.

Do nosso ponto de vista, violência e criminalidade são problemas sociais e policiais que podem ser melhor enfrentados com base em diagnósticos, prioridades, definição de metas e prestação de contas. Para isso, capacidade de gestão, transparência e apoio da sociedade são recursos tão essenciais quanto armamentos.

O comando da intervenção não entende que, mesmo ganhando batalhas e mobilizando milhares de agentes em operações, está perdendo a guerra – e, com ele, toda a sociedade do Rio de Janeiro. Estamos perdendo vidas preciosas. Estamos perdendo a disputa moral contra o crime. E estamos perdendo o ânimo com a violência. Mas o Rio de Janeiro não é um caso perdido. É um caso de políticas de segurança erradas. Violência tem solução e políticas de segurança podem salvar vidas – em vez de exterminá-las.

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O Caveirão Voador e os Zumbis à Procura de Corpos Frescos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/21/o-caveirao-voador-e-os-zumbis-a-procura-de-corpos-frescos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/21/o-caveirao-voador-e-os-zumbis-a-procura-de-corpos-frescos/#respond Thu, 21 Jun 2018 21:49:10 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/15293656155b28446f8ea4c_1529365615_3x2_xl-150x150.jpg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=65 Em mais uma sequência de confrontos e tiroteios que estão sendo banalizados por décadas de descaso com a população das comunidades cariocas, Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos de idade, morreu nesta quarta-feira (20) após ser baleado a caminho da escola durante operação policial no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro.

Nesta operação, segundo várias imagens que estão circulando pela Internet, a Polícia Civil do Rio de Janeiro mobilizou o uso de um helicóptero blindado apelidado de “Caveirão Voador”. A aeronave foi usada como o que tecnicamente é chamado “plataforma de tiro”. Policiais Civis atiravam em direção ao chão em sobrevoos rasantes, indicando uma operação de neutralização e combate. É necessário uma apuração isenta para saber se a morte de Marcos Vinícius foi provocada por algum disparo originado da aeronave.

Para além da indignação que uma operação desta deveria provocar em todos nós, o episódio chama atenção para alguns procedimentos que valem ser trazidos à luz do debate nacional. Esta é uma questão nacional e precisa ser tratada enquanto tal. Em primeiro lugar, mesmo em um contexto de intervenção federal liderada por um General de Exército, a operação foi conduzida pela Polícia Civil, que, em tese, não teria prerrogativa constitucional de operações táticas como as levadas a cabo na Maré.

A lógica do confronto naturaliza a confusão de competências quando feita em territórios pobres, mas, à luz do direito, a Polícia Civil deve uma explicação sobre qual a justificativa legal para o uso desta aeronave. Que investigação esta ou estava sendo conduzida que exigiu o apoio de equipes táticas especializadas? Aliás, para que a Polícia Civil precisa de uma aeronave blindada? Quais as explicações técnicas para esta aquisição e qual o custo envolvido em sua manutenção e operação?

A ideia de confronto está tão banalizada que poucos notaram que não foi a Polícia Militar que interveio na situação. Ou seja, que a discussão sobre o fim das polícias militares como antídoto à violência institucional tem desconsiderado que o padrão de enfrentamento não é exclusivo a estas e está enraizado nas concepções de ordem e comandos de política criminal do país.

Mas, concedendo o benefício da dúvida, fui verificar como é regulada a ação de aeronaves policiais no Brasil. Para tanto, consultei o Coronel José Vicente da Silva, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública e um dos mais renomados especialistas em segurança pública do país, com mais de 50 anos de profissão.

Segundo o que me explicou o Coronel José Vicente, as polícias podem operar aeronaves em confrontos e se utilizarem delas como plataforma de tiro atendidas duas condições, uma técnica e outra legal. A primeira destas condições é que, para poderem atirar com garantia de que estão mirando corretamente, o helicóptero precisa estar estabilizado no ar, quase sem movimentos.

Diferentemente de uma operação de guerra, um helicóptero policial precisa ter condições operacionais para atuar com o máximo de precisão. Já a segunda condição para o uso de um helicóptero policial como plataforma de tiro é legal. O uso de armamento letal só pode ser empregado se, em terra, existirem riscos à integridade de civis e/ou policiais (legítima defesa do policial ou de outrem).

Ambas as alternativas, pelas imagens disponíveis, não estavam totalmente claras ou presentes, indicando a urgência do Interventor Federal, General Braga Neto, instaurar procedimento investigatório, sem prejuízo de competência concorrente do mesmo ser feito pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, que tem a obrigação de exercer o controle externo da atividade policial.

Ao contrário do que tem sido a regra do Interventor Federal, que tem evitado e/ou, mesmo, vetado a imprensa, a morte de Marcos Vinicius deveria provocar um choque de transparência na segurança pública carioca. É necessário dar a máxima transparência para os protocolos adotados (se é que eles existem), as filmagens disponíveis e a cadeia de comando da operação.

Afinal, em uma população apavorada, com mais de 30% declarando que ficou no meio de um tiroteio entre policiais e bandidos, o debate sobre o absurdo em torno desta situação está longe de ser ideológico ou político. É técnico e civilizatório mesmo. Não devemos dar ouvidos a determinados políticos que atuam como zumbis à procura dos corpos frescos para se manterem eleitoralmente viáveis. Segurança Pública se faz com evidências, planejamento e inteligência.

Não há justificativa para um padrão tão obsoleto e letal. Mas, para manter o mínimo de confiança, ou a Polícia Civil Carioca mostra que não errou grosseiramente ou, somados aos mais de 100 dias sem sabermos quem matou e quem mandou matar Marielle Franco e Anderson Gomes, o episódio será o atestado que faltava para a completa falência das polícias e da incapacidade de se fazer políticas públicas inteligentes de segurança no Rio de Janeiro.

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