Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os riscos da institucionalização da Operação Vingança https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/os-riscos-da-institucionalizacao-da-operacao-vinganca/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/11/23/os-riscos-da-institucionalizacao-da-operacao-vinganca/#respond Tue, 23 Nov 2021 13:57:18 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/11/foto-salgueiro-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1845 Moradores, familiares e ativistas têm classificado o caso de Salgueiro como uma chacina cometida por policiais durante uma “operação vingança” pela morte de um sargento PM.

David Marques*

 

Entre a madrugada de domingo e a manhã de segunda-feira (21/11) 8 corpos foram retirados de uma área de mangue no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio. As notícias sobre o caso dão conta de que os corpos apresentavam com sinais de tortura. Entre os sete mortos identificados, dois não possuíam antecedentes criminais.

No sábado, o sargento PM Leandro Rumbelsperger da Silva, de 40 anos, havia sido morto por criminosos em um ataque a uma base da PM. A operação foi então desencadeada, com participação do BOPE.

O caso se dá no contexto da vigência da chamada ADPF das Favelas, que restringiu e condicionou a realização de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de Covid-19 à previa autorização judicial. O MP-RJ diz ter sido informado da operação. Vale lembrar, no entanto, que um dos casos citados na decisão do ministro Edson Fachin, do STF, nesta ADPF foi o de João Pedro, adolescente de 14 anos morto durante operação policial no mesmo Complexo do Salgueiro, em junho de 2020. Além disso, cabe mencionar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro em 2017 no caso da Favela Nova Brasília, no qual 26 pessoas foram mortas e 3 mulheres foram vítimas de violência sexual durante operações policiais entre 1995 e 96.

Moradores, familiares e ativistas têm classificado o caso de Salgueiro como uma chacina cometida por policiais durante uma “operação vingança” pela morte do sargento PM.

O Projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, buscou estudar as chacinas no Brasil – casos com três ou mais vítimas fatais na mesma ocorrência – a partir de notícias da imprensa. Foram sistematizados 408 casos entre 2015 e 2019. Destes, em 97 houve suspeita ou certeza da participação de policiais em sua execução (23,8%). Estes casos foram identificados em 16 estados, com destaque para RJ, PA e SP, nos quais em mais de 43% do total de casos identificados houve participação de policiais. Segundo este levantamento, somados, os casos nos quais há suspeita ou certeza de participação de policiais ou de outros agentes ou ex-agentes estatais (categorizados como atuação policial, operações policiais, grupos de extermínio ou milícia) são a segunda motivação mais frequente de chacinas no país.

Na tese recentemente defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, estudei em maior detalhe a participação de policiais em chacinas, com foco em um caso ocorrido em Osasco e Barueri, região metropolitana de São Paulo, em 2015. O estudo demonstrou que as chacinas com participação de policiais podem ser divididas em três tipos principais:

  1. Chacina cometida por policiais em serviço, em ações policiais de rotina ou em operações policiais planejadas, cujas mortes podem ser intencionalmente lícitas ou intencionalmente abusivas (podendo as abusivas serem ainda dissimuladas de legítimas);
  2. Chacina cometida por policiais fora de serviço, relacionadas com o oferecimento de serviços de segurança privada;
  3. Chacina cometida por policiais fora de serviço com o objetivo de extorquir traficantes de drogas, demonstrar poder, exercer controle e auferir benefícios financeiros com as dinâmicas criminais locais.

Na pesquisa, a realização vingança pela morte de outro agente de segurança pública foi mais frequentemente associada às ações letais de policiais em serviço, as chamadas “resistências seguidas de morte” e por meio de operações policiais planejadas. Estas mortes geralmente são cometidas por policiais que querem ver seus nomes associados a morte de pessoas que consideram criminosos, dentro de uma lógica de limpeza social, de “fazer justiça”.

O caso do Salgueiro parece corresponder em grande medida à análise acima, no que é chamado pelos moradores de “operação vingança”. Embora não se perca de vista a séria crise de segurança pública enfrentada pelo Rio de Janeiro nos últimos anos, é preciso questionar primeiramente o modelo de policiamento baseado no enfrentamento militarizado. O princípio da experiência da política de pacificação no Rio, na segunda metade dos anos 2000, mostrou que é possível fazer segurança de um modo diferente, e com resultados melhores, apostando em uma polícia que permaneça nas comunidades e nos territórios, se aproximando de sua população, e não apenas passe por eles. Ao fracasso da política de segurança segue-se o fortalecimento do crime organizado e das milícias, vastamente documentado em estudos e notícias. O resultado desse processo continua sendo a alta produção de letalidade, com suas mais diferentes vítimas, incluindo crianças, como João Pedro, e o Sargento Leandro.

Pesquisa do FBSP mostrou que de uma amostra de 316 casos de mortes decorrentes de intervenção policial ocorridas no Rio e em São Paulo em 2016, 90% foram objeto de pedido de arquivamento por parte do Ministério Público. Se o controle da atividade policial não é exercido de forma constante, incluindo os casos de mortes decorrentes de intervenção policial em serviço, ele torna-se virtualmente impraticável nos casos mais extremos e com isso temos a deterioração das instituições e do sistema democrático de segurança e justiça, que se torna refém do arbítrio.

 

*David Marques é doutor em sociologia e coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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O mercado da Segurança Privada no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/o-mercado-da-seguranca-privada-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/28/o-mercado-da-seguranca-privada-no-brasil/#respond Wed, 28 Jul 2021 22:43:53 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/Imagem-Amanda-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1821 Susana Durão*

Como se caracteriza o setor da segurança privada no Brasil? Qual a evolução em número de empresas e de vigilantes nos últimos anos? Em que regiões há mais segurança privada? Qual o perfil socio-profissional dos vigilantes? Aqui pode ler a resposta a estas e outras perguntas, a partir da análise dos dados publicados no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em julho de 2021. Não podemos ser indiferentes a esta área de atuação. A segurança privada é uma atividade expressiva no país, visível nos espaços urbanos, presente nos mais diversos ambientes industriais, comerciais e residenciais. Para se ter apenas uma ideia da sua importância, em 2020 o setor teve um faturamento estimado de R$ 35,7 bilhões.

Volume de empresas e mercado

Hoje o mercado de segurança privada no Brasil, regulado e fiscalizado pela Polícia Federal, é constituído por 2.471 empresas especializadas — que prestam serviços de vigilância mediante contratação — e 1.154 orgânicas, empresas que contratam diretamente os vigilantes.

A quantidade de vigilantes com vínculos ativos aponta um volume de 502.318 trabalhando em empresas especializada e 23.790 em empresas orgânicas. Se compararmos o número de empresas com o número de vigilantes ao serviço, verificamos que, apesar da extrema variação e pluralidade interna, as empresas especializadas são maiores e contratam mais e as orgânicas são mais pequenas e restritas. Se uma empresa especializada pode ter em média 203 vigilantes, uma orgânica não terá mais de 20.

A vigilância patrimonial constitui o grande volume de atividade da segurança privada no Brasil. Mais de 50% nas empresas especializadas e 99,1% nas empresas orgânicas operam exclusivamente na proteção patrimonial. No caso das empresas especializadas, o restante do mercado se distribui por estabelecimentos que, além de vigilância patrimonial, têm autorização para exercer a atividade de escolta armada, segurança pessoal e transporte de valores. Um outro setor também presente são as empresas de formação.

Mercado de trabalho na vigilância e regiões

A evolução estatística ao longo dos últimos anos aponta uma queda do número de vigilantes contratados. Em 2015 eram 631.028 e em 2021 são 526.108. A queda de mais de 100,000 nesse período é em geral atribuída à crise econômica no país, especialmente aguda em 2020, com encolhimento de -4,5% do PIB em todo o setor de serviços. Mas pode também significar uma reorganização interna da segurança privada e avanço de novas soluções de segurança eletrônica no Brasil.

Só entre 2020 e 2021, também devido à pandemia, houve uma redução de 7.239 vagas para vigilantes. Estima-se que em 2021 apenas 50% dos vigilantes aptos a trabalhar estão atualmente empregados. Ou seja, embora exista mais de um milhão com a carteira nacional de vigilante, o curso de vigilante de 200 horas ou as reciclagens obrigatórias realizadas, metade não tem oportunidade de emprego no setor.

Onde a segurança privada está mais presente no Brasil? Indiscutivelmente, na região Sudeste, com quase metade do efetivo total (48,7%), sendo a segunda maior região o Nordeste (19,8%). Noutras regiões a segurança privada é menos expressiva, como no Sul (14,9%) e Centro-Oeste (9,9%), ou mesmo residual, como no Norte (6,7%). Tudo indica que nas regiões onde existem mais armas nas mãos dos cidadãos, a segurança privada formal é mais incipiente.

É de assinalar que São Paulo representa 36,3% do total do setor. Neste estado se concentra grande volume do mercado de emprego da segurança privada. Este e outros mercados de serviços ajudam a estimular o afluxo tradicional de cidadãos de outros estados à capital paulista em busca de emprego.

Perfil socio-profissional dos vigilantes

A vigilância é um mercado de emprego ainda de reserva masculina. Mesmo se a maior parte da vigilância é de âmbito patrimonial, com menor potencial para uso da força, no setor há uma sobre-representação de homens (91%) e um percentual baixo de mulheres (9%).

A população de vigilantes está distribuída nas várias faixas etárias ativas, mas com incidência entre os 30 e 49 anos (representando 69% do total). Isto aponta um mercado não juvenil e a hipótese de que o emprego na atividade se dê mais por necessidade e esgotamento de outras possibilidades de trabalho do que por opção vocacional. O percentual de vigilantes por faixa etária no primeiro emprego acompanha de perto essa mesma tendência.

É notório que a maioria dos vigilantes tenha o ensino médio completo (73%), qualificação muito superior ao mínimo exigido pela Lei 7.102/1983, que é a 4ª série do ensino fundamental.

Uso potencial da força

É de notar que as empresas de segurança privada no Brasil trabalham preferencialmente com armamento letal e menos com armamento não letal. Para dar um exemplo, no ano de 2020, na Região Sudeste, as empresas adquiram 4.438 armas letais para 563 não letais.

Se compararmos, grosso modo, a distribuição das armas de fogo no Brasil em números absolutos, verificamos que o total de armas nas mãos das polícias militares (quase 511 mil armas) já foi ultrapassado pelo número de armas nas mãos dos cidadãos (quase 527 mil). A segurança privada tem registradas quase 260 mil armas. Em vários estados da federação, o registro de armas de fogo de empresas da segurança privada é muito inferior ao dos cidadãos. Isto permite entender que a distribuição potencial de uso da força armada pela sociedade é maior do que nos setores formalmente delegados ou controlados pelo Estado. O quase “exército privado” entre os cidadãos é um dos fatores que ajuda a entender a profusa informalidade dos mercados de proteção privada e os impasses da regulação e fiscalização do uso da força no Brasil.

A sombra da clandestinidade

Desde os anos 90, a segurança patrimonial privada cresceu galopantemente e é parte da malha que compõe a segurança urbana, facilitando e complementando o trabalho dos operadores da segurança pública. Nas últimas décadas, formas de proteção patrimonial redefiniram estilos de vida. A oferta de serviços e possibilidades de contratação direta cresceu de tal modo que a segurança se tornou uma quase mercadoria. Todavia, sem se substituir a outras formas de proteção, variadas, ilícitas e sem fiscalização, o setor de segurança privada no Brasil enfrenta diariamente a sombra competitiva da clandestinidade. Como evidencia o Anuário, hoje podemos ter dados robustos para analisar o setor formal. Mas continuamos reféns do desconhecimento acerca do que se passa do lado das proteções privadas desreguladas. Sem reformas profundas, esse estado de coisas permanecerá assim por muito tempo.

 

*Professora de Antropologia na UNICAMP e Coordenadora Executiva da Secretaria de Vivência nos Campi

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O soldado e o Estado no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/o-soldado-e-o-estado-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/o-soldado-e-o-estado-no-brasil/#respond Fri, 11 Jun 2021 21:05:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/ppp-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1794 Precisamos que o pensamento democrático balize, de fato, as instituições públicas, mormente as que detém o exercício do poder coercitivo do Estado. 

Catarina Corrêa*

 

Pagamos por nossas escolhas. Não há maior verdade, quando falamos de política. E o Brasil tem um histórico de adiar o futuro, de deixar os conflitos para depois, porque estamos em crise. Mas sempre estamos em crise. Então, a reforma das instituições sempre fica para depois.

No final do século XIX, passamos de uma monarquia institucionalmente falida para uma república disfuncional. E não é nenhuma novidade que sistemas presidencialistas, sobretudo quando dependem de amplas coalizões, oferecem poucas ferramentas para manejar crises políticas. Não temos “recall”, nem dissolução de governos politicamente ineptos. Temos o “impeachment”, que depende da existência de crimes de responsabilidade. Nome infeliz, já que, tecnicamente, não parece muito com o que vemos no Direito Penal. Mas, no final, para quem perde, “impeachment” sempre será golpe.

Pois o Brasil, quando iniciou sua história republicana – e lembre-se, por meio de um golpe militar –, adotou uma estrutura institucional que oferece, como dito, poucas ferramentas para debelar crises. E, para nosso infortúnio, temos, desde o fim do século XIX, uma superposição de crises constitucionais.

Temos a crise da federação – que já existia quando ainda éramos um país unitário –, em que todos os seus membros estão sempre descontentes, culpando-se mutuamente por seus infortúnios. 

Temos a crise do sistema representativo, gerada por partidos sem permeabilidade, que não permitem que a sociedade participe de suas estruturas, que se estabelecem como feudos, e cujo único interesse é, em regra, a manipulação da política mais rasteira ou simplesmente a divisão do butim chamado fundo eleitoral.

Temos mais crises do que o espaço desse artigo permite relatar. Importante mesmo é lembrarmos como essas crises (não) foram administradas.

No momento em que a debilidade institucional – que inviabiliza a construção do futuro, ao sonegar a implementação de políticas públicas de longo prazo coerentes – toma conta do Estado, não há nada que ele possa fazer além de permanentemente tentar apagar incêndios.

O resultado desse quadro é impaciência e frustração com a falta de resultados. O que os cidadãos percebem é tão-somente injustiça. Injustiça na cobrança dos impostos, na repartição das receitas tributárias, na distribuição dos serviços públicos, na criação da desejada igualdade de oportunidades.

Em nossa experiência histórica, essas situações de profunda frustração política acabam sendo mediadas, em seus momentos mais agudos, pelos militares. Quando as instituições não dão conta, os militares se sentem legitimados a oferecer uma solução. 

Não houve força institucional ou social que fosse suficientemente poderosa para estabelecer um limite claro para essas intervenções. Refiro-me a todos os tipos de intervenções, até mesmo tweets em véspera de julgamento no STF.

Voltando à nossa história política, a própria república surgiu também de uma crise militar, a do Império. A República Velha, por sua vez, revelou a presença quase permanente dos militares no protagonismo político. A Revolução de 1930, primeiro ímpeto de modernização (para o bem e para o mal) na história do Brasil, teve o dedo do tenentismo. O fim do Estado Novo se deu pela mão dos militares, que, depois de lutar pela democracia (dos europeus), desistiram de Getúlio Vargas. Depois disso, a precária democracia brasileira continuou precisando da tutela de militares (antigolpistas): Marechal Lott, por mais de uma vez, e Leonidas Pires Gonçalves, só para citar os mais destacados.

Certamente, o clima de intransigência e de intolerância política, que, de tempos em tempos, nos assola, alimenta a disfuncionalidade mais grave de todas: a perda da fé de que o sistema político, com todas as suas imperfeições, seja capaz de ajudar-nos a enfrentar a tempestade. 

Certamente, o General no palanque nos serve de alerta. Precisamos de limites institucionais mais claros. Precisamos que o pensamento democrático balize, de fato, as instituições públicas, mormente as que detém o exercício do poder coercitivo do Estado. 

Samuel Huntington, em “O Soldado e o Estado” (1957), sustenta que os militares operam em uma esfera separada, mas subordinada. Sua teoria – criticada como excessivamente idealizada – ensina que os líderes políticos fazem a política e fornecem a orientação abrangente do que deve ser feito, enquanto os militares se atêm à sua área de competência – a aplicação do poder militar. Essa estrutura oferece uma orientação clara e precisa, mas exige musculatura institucional, que, aparentemente, ainda não temos.

 

Juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios

Acompanhe as edições semanais integrais do Fonte Segura, a newsletter com dados e análises sobre segurança pública. Acesse: fontesegura.org.br

Na edição desta semana, leia também “A política entrou nos quartéis” e “Autonomia financeira e o impacto da violência contra as mulheres brasileiras“.

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A Polícia Federal resiste? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/a-policia-federal-resiste/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/a-policia-federal-resiste/#respond Fri, 28 May 2021 14:02:31 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Salles-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1783 Ao manter sua expertise na manutenção da qualidade da investigação e ao demonstrar, via operação, que continua fazendo seu trabalho, a PF emite sinais de resistência

Andréa Lucas Fagundes*

Nos últimos tempos, a Polícia Federal tem estado no centro de disputas que envolvem diretamente o campo político. Para relembrar, os casos mais ilustrativos:

a) caso Bivar (2019), ocasião em que fizemos para o Fonte Segura uma breve revisão da PF e seu possível aparelhamento político;

b) a exoneração do então Diretor Geral, Mauricio Valeixo, alvo de acontecimentos políticos que implicaram a saída do então Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro, Sergio Moro;

c) a nomeação relâmpago do delegado Alexandre Ramagem, que não chegou a tomar posse do cargo;

d) episódio envolvendo a família Bolsonaro (esquema das rachadinhas), que coloca em xeque a independência de investigação da Polícia Federal com acusações de vazamento de informações por um delegado da PF;

e) a mudança ocorrida recentemente no Ministério da Justiça e Segurança Pública, em que assume a pasta Anderson Torres, delegado de Polícia Federal que há alguns anos vem exercendo atividades políticas e automaticamente troca o comando da Polícia Federal, hoje dirigida por Paulo Gustavo Maiurino, também delegado com perfil de articulação política;

f) o afastamento do então Superintendente da PF no Amazonas, Alexandre Saraiva, após ter enviado ao STF pedido de investigação contra Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente;

g) nos últimos dias, a deflagração da operação Akuanduba, que tem entre seus investigados o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, Eduardo Bim, com autorização do STF, e;

h) na última sexta-feira, a notícia de proposição ao STF, pelo Diretor Geral Paulo Maiurino, de um documento propondo reestruturação interna do órgão e “implementação de mecanismos de supervisão administrativa e estruturação organizacional, nos moldes dos adotados pela PGR”, após a solicitação ao STF, pela Polícia Federal, de autorização para investigar o ministro Dias Toffoli.

Contudo, observa-se uma peculiaridade nos dois últimos casos, pois, ao contrário dos demais, a operação Akuanduba não se configura como uma ação do Executivo com tom de interferência política na instituição e sim a atuação da Polícia Federal realizando operação que tem como investigado um ministro de Estado, seguida da notícia de uma tentativa do Diretor Geral de controlar a autonomia dos delegados após pedido da PF para investigar ministro do STF. Cogita-se, então, a hipótese de uma possível resistência institucional, ou de ao menos uma parcela da instituição, à crescente interferência política na Polícia Federal. O que nos leva a revisitar alguns argumentos que vêm sendo apresentados nos últimos anos sobre o desenvolvimento institucional da PF, configurando o que acadêmicos e os próprios policiais federais consideram a independência administrativa e investigativa da Polícia Federal, frequentemente “testada” ultimamente.

Nos últimos 20 anos a instituição passou por significativo processo de mudança e desenvolvimento que envolveu reestruturação e modernização organizacional,  renovação e qualificação de seu quadro, fortalecimento da imagem institucional e especialização, culminando no refinamento da investigação via um processo que fortaleceu a capacidade de investigação e a qualidade da prova. Avanços que ocorreram mesmo enfrentando desafios como a disponibilidade orçamentária, que teve incremento na primeira metade dos anos 2000, mas que na última década e até os dias atuais passou a enfrentar cortes e restrições impostas pelo Poder Executivo.

Tal reestruturação interna colocou a PF em outro patamar institucional, tanto pelos resultados apresentados nas operações, como pela articulação com demais instituições do sistema de controle e pela imagem e confiança junto à sociedade brasileira. Entretanto, a independência administrativa e investigativa atingida parece não garantir bloqueio contra eventual ingerência do Poder Executivo, por sua subordinação ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), condição necessária em democracias.

Tais características institucionais e a insistente interferência do Executivo têm resultado em tensas relações entre a PF e o governo Bolsonaro, que parecem refletir a resistência de quadros do órgão, que ao longo dos anos 2000 e até o primeiro ano do governo atual, teve em sua cúpula lideranças com fortes características de atuação técnica, defensores da autonomia de investigação, que influenciaram a formação de novas gerações. Perfil que, muito provavelmente, opõe a resistência interna à gestão atual – representada pelo perfil político -, por meio da utilização de sua “maior/melhor arma”: a capacidade investigativa e qualidade da prova. Até aqui parece-nos que a instituição vem resistindo. Seja ao manter sua expertise na manutenção da qualidade da investigação e da prova, seja por demonstrações constantes, via operações, de que a PF continua fazendo seu trabalho mesmo contra grupos ligados ao presidente da República.

Contudo, os últimos acontecimentos, em especial após as mudanças no Ministério da Justiça e Segurança Pública e a entrada do Diretor Geral, Paulo Maiurino, exigem atenção. Primeiro o DG afasta um superintendente regional que opôs resistência pública e solicitou pedido de investigação envolvendo ministro e, em seguida, propõe reestruturação interna do órgão que pode tirar a autonomia dos delegados em investigações de autoridades com foro especial.

Sabe-se das clássicas disputas entre classes na PF, principalmente entre delegados e agentes. Entretanto, delegados sempre foram ferrenhos defensores da autonomia investigativa, sua principal bandeira e forte argumento de “blindagem” institucional. Movimentos como este podem acirrar disputas internas que pareciam latentes, como uma divisão entre delegados: de um lado o perfil técnico, de outro o perfil político. As manifestações de representações de classe e reações internas merecem acompanhamento e atenção. Cabe observar e verificar se a trajetória de desenvolvimento institucional da Polícia Federal, de fato, resistirá às novas diretrizes.

 

*Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas na UFRGS. Mestre em Sociologia pela UFRGS.

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Na edição desta semana, leia também “Medidas estratégicas reduzem a letalidade da Polícia Militar de São Paulo” e “Dia internacional de Combate à Homofobia: o que celebrar?

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As mulheres nos quartéis também sofrem violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/25/as-mulheres-nos-quarteis-tambem-sofrem-violencia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/25/as-mulheres-nos-quarteis-tambem-sofrem-violencia/#respond Tue, 25 May 2021 14:05:10 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/fotofaces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1758 Casos recentes de assédio e importunação sexual contra profissionais de segurança em suas corporações revelam a necessidade de ampliar o debate sobre o tema no país

Camila Paiva*

Ser mulher no ambiente militar não é nada fácil. Afinal, as instituições militares foram feitas por homens e para os homens. Nesse sentido, as mulheres muitas vezes são vistas com “invasoras” desse espaço, não sendo incomum ouvir que ali não é o lugar delas. Se, em uma sociedade machista e patriarcal, que vê o corpo da mulher como propriedade do homem ou algo público, já é difícil para a mulher lidar com certas situações, imaginem dentro de uma corporação composta por apenas 10% de mulheres. Some-se a isso uma estrutura rígida hierarquizada, cheia de regulamentos, que coloca um superior hierárquico numa posição de poder absoluto acima do seu subordinado, e o resultado não poderia ser outro: casos frequentes de assédio e importunação sexual dentro dos quartéis.

Acompanhamos o caso recente da Soldado Jéssica, da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que foi assediada sexualmente pelo seu Comandante de Batalhão, a maior autoridade em seu local de trabalho. Casada e com filhos, ela negou as investidas e, em consequência disso, enfrentou um terror de perseguição, ameaças, humilhações e violência psicológica indescritíveis. Jéssica saiu de sua terra natal para São Paulo em busca do sonho de ser PM, mas se viu dentro de um pesadelo. No final, teve que se afastar do trabalho, inicialmente por dispensa médica em virtude de sua saúde mental ter sido destruída por seu assediador. Mas, sem apoio institucional nenhum, foi além e entrou de licença por dois anos, tendo seu salário suspenso em razão de ser vítima de um crime. Existe alguma lógica nisso? Claro que não, e, como se não bastasse, a única saída que passa pela cabeça dela agora é sair da corporação pela qual tanto lutou para fazer parte, abrindo mão não só de sua carreira, mas também do próprio sustento.

A situação é extremamente revoltante, mas é uma realidade que grita dentro da caserna. Ao mesmo tempo, é um assunto proibido, um tabu, afinal precisamos preservar a “imagem das Instituições”. Mas, diante disso, quem está preservando nossas profissionais? Zelar pela imagem da corporação é, acima de tudo, coibir e punir com rigor qualquer tipo de prática nesse sentido, é defender as mulheres que estão ali arriscando suas vidas para proteger a sociedade e que não estão sendo protegidas. Mais do que nunca, precisamos encarar que esse problema existe e desenvolver políticas institucionais urgentes para combater o assédio sexual dentro dos muros dos quartéis.

Ano passado aconteceu um episódio na Polícia Militar do Ceará, em que um sargento postou um áudio em um grupo de Whatsapp dizendo que as mulheres nos quartéis deveriam servir exclusivamente para “desestressar ” os homens, com o cunho sexual e pejorativo. A mensagem prosseguia com o sargento dizendo que era muito estressante ser policial militar para o homem, e que as mulheres militares deveriam ficar esperando eles retornarem ao quartel para ficar mais uma hora com um, depois meia hora com outro, sugerindo a prestação de favores sexuais por parte delas. Tomada por extrema indignação, fiz um vídeo reproduzindo o referido áudio e compartilhei nas redes sociais, servindo de gatilho para várias mulheres que o assistiram. O resultado foi uma enxurrada de mais de 300 depoimentos em minhas redes sociais de mulheres relatando os casos mais absurdos possíveis de machismo, assédio e importunação sexual sofridos dentro da sua corporação; mulheres que foram aposentadas como loucas, pacientes psiquiátricas incapazes de continuar no serviço ativo; mulheres que foram estupradas, perseguidas, ameaçadas, transferidas, sofreram aborto, perderam o emprego, tentaram suicídio e todo tipo de situação bizarra decorrente dessa prática.

Para tentar enfrentar esse tipo de horror, criamos um movimento nas redes sociais chamado Somos Todas Marias, em que reproduzimos muitos desses relatos para que o poder público e a sociedade tomassem ciência da gravidade dessa realidade e que assim buscássemos uma solução efetiva para tal. Que a repercussão do caso da Jéssica venha fortalecer essa luta e inspirar outras mulheres a não se calarem e a denunciarem esses criminosos. Não descansaremos enquanto nossas mulheres e profissionais de segurança pública possam também sentirem-se seguras em seu ambiente de trabalho, sem qualquer tipo de molestação, e com o respeito e a vigilância de toda a nossa sociedade.

*Tenente-coronel do Corpo de Bombeiros Militar de Alagoas e Presidente da Comissão Mulher Segura da Secretaria de Segurança Pública de Alagoas.

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Na edição desta semana, leia também “Ciência e erro na investigação policial” e “Uma milícia no Rio Grande do Sul?”.

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O aumento das agressões às mulheres em dias de partidas de futebol https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/o-aumento-das-agressoes-as-mulheres-em-dias-de-partidas-de-futebol/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/11/o-aumento-das-agressoes-as-mulheres-em-dias-de-partidas-de-futebol/#respond Thu, 11 Feb 2021 16:56:45 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/fotofutebol-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1665 Estudos apontam relação entre derrotas e aumento nas agressões e demonstram que atos não podem ser vistos como descontrole ou fruto de explosão emocional, mas antes como um dispositivo que fortalece a ideia de um gênero dominante.

Amanda Pimentel*

 

Os primeiros dias do mês de fevereiro deste ano foram marcados não apenas pela comemoração da vitória do Palmeiras na final da Copa Libertadores da América, mas também, e infelizmente, por um caso de homicídio ocorrido em razão de um desentendimento originado por causa do jogo. Um casal que acompanhava a partida em sua casa em um condomínio na Vila Mangalot, zona norte de São Paulo, iniciou uma discussão após comemorações da esposa, palmeirense, pelo título do clube, o que incomodou seu marido, torcedor do Corinthians.

Apesar de parecer uma exceção, casos de violência contra mulheres ocorridos após o término de partidas de futebol são muito mais comuns do que imaginamos. A relação entre consumo de esportes televisionados e o aumento do número de casos de violência contra a mulher começou a receber atenção do público em geral, profissionais de saúde e comunidade acadêmica, já em 1993, quando a rede de televisão NBC transmitiu um programa de combate à violência contra a mulher durante sua cobertura do Super Bowl, a final do campeonato de futebol americano, em razão do aumento de mais de 40% de casos de violência doméstica ocorridos neste dia (Holler, 1993).

Desde então, importantes pesquisas que abordam a relação entre esporte e violência começaram a ser desenvolvidas (ver: Card e Dalh, 2011; Gantz, Bradley e Wang, 2006). A maioria desses novos estudos concentrou-se em analisar os impactos das partidas de futebol no comportamento violento dos seus telespectadores, buscando entender como isto contribui com o aumento de casos de violência doméstica. Controlando as expectativas pré-jogo das torcidas, isto é, se o público esperava que o seu time ganharia ou perderia, e o tamanho da audiência das partidas, a maior parte dos autores descobriram que as perdas fortuitas de times da casa, quando era esperado que ganhassem, aumentavam os incidentes de violência contra a mulher.

Um aumento de 10% das taxas de violência doméstica foi identificado nesses casos e se concentrou, sobretudo, nos momentos mais próximos ao final das partidas. O incremento é ainda maior em disputas entre times tradicionalmente rivais ou ainda em partidas decisivas ou eliminatórias, apresentando 1/3 a mais de alargamento nas taxas de violência do que dias de grandes feriados nacionais, por exemplo. Desse modo, não são todas as partidas de futebol que contribuem para o aumento dos índices de violência doméstica, mas majoritariamente aquelas que ocorrem em finais de semana e em que uma derrota ou vitória contrariam o resultado esperado pela torcida, especialmente em jogos ocorridos dentro da casa e contra times rivais. A mensuração “ganho ou perda” adquire grande importância nesse contexto, assim como a tradição de um time e a rivalidade que ele mantém com outros.

Nas pesquisas realizadas, essas variáveis são importantes porque são capazes de produzir fortes choques emocionais nos homens, principais fãs do esporte, contribuindo assim para o aumento de ações indesejadas, como a violência perpetrada contra a própria parceira. Outrossim, a natureza violenta do esporte futebol americano, constantemente referenciada pelos canais de televisão que os transmitem, parece ter capacidade para influenciar o comportamento dos seus telespectadores.

Em razão dessa intensa associação entre homens, esporte e violência, realizada por grande parte da bibliografia especializada, muitos pesquisadores começaram também a analisar a relação entre masculinidades e perpetração de violência física, em um campo conhecido como “Men’s studies” (estudos de masculinidades). Desconstruindo as narrativas que argumentam que esse tipo de comportamento é natural, esse campo de estudos defende que o cometimento de violência perpassa necessariamente a construção social de uma identidade de gênero. Para eles, esse tipo de violência não pode ser visto como um ato descontrolado ou como mero fruto de uma explosão emocional, mas antes como um dispositivo que fortalece a ideia de um gênero dominante.

Apesar de haver um debate internacional sobre o assunto, no Brasil a relação entre futebol e violência doméstica ainda carece de informações e dados qualificados. É nesse sentido que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Instituto Avon, está desenvolvendo um projeto inédito que visa compreender como essa relação ocorre, a partir da coleta e análise cruzada de dados dos registros oficiais de violência doméstica com informações sobre partidas de futebol em alguns estados brasileiros. A expectativa é que os resultados encontrados nesta pesquisa possam contribuir para um maior entendimento sobre o cenário de ocorrências de violência contra a mulher no Brasil.

 

*Mestre em Direito pela PUC-Rio e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

 

Referências citadas no texto:

Card, David, and Gordon B. Dahl, “Family Violence and Football: The Effects of Unexpected Emotional Cues on Violent Behavior,” National Bureau of Economic Research Working Paper no. 15497, 2009.

Gantz, Walter, Samuel D. Bradley, and Zheng Wang, “Televised NFL Games, the Family, and DomesticViolence,” pp. 365–382 in Handbook of Sports and Media, ed. ArthurA.RaneyandJenningsBryant, (Mahwah, NJ: Erlbaum, 2006).

Hohler, B. Super Bowl Gaffe. The Boston Globe, p. 1, 1993, February, 2.

 

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Na edição desta semana, leia também “O legado político da Lava Jato” e “A letalidade como método de ação policial”.

 

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Violência e desmatamento caminham juntos na Amazônia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/violencia-e-desmatamento-caminham-juntos-na-amazonia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/28/violencia-e-desmatamento-caminham-juntos-na-amazonia/#respond Thu, 28 Jan 2021 14:48:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/fotoprincipal-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1643 Territórios desmatados têm maior taxa de assassinatos rurais por 100 mil habitantes. Mais do que nunca, as áreas de segurança pública e meio ambiente precisam se integrar. 

Sofia Reinach*

Isabela Sobral**

A discussão sobre crimes ambientais na Amazônia é urgente e vem se aprofundando nos últimos anos. As evidências apontam que a situação se agrava rapidamente e que a atenção para o assunto deve ser prioridade nacional. Ao mesmo tempo, o país assiste a um cenário alarmante nos índices de violência rural e urbana. As taxas de mortes violentas intencionais, estupros e agressões justificam o medo que a população sente ao sair de casa ou definir seus trajetos cotidianos.

Apesar de ambos os cenários trágicos serem objeto de diferentes esforços e trabalhos analíticos, o olhar para a forma como crimes ambientais e crimes violentos estão relacionados na região amazônica ainda é incipiente no país. O intuito desse texto é, portanto, demonstrar como avançam os crimes violentos nas diferentes regiões amazônicas, considerando o grau de desmatamento das áreas.

Em 2007, Celentano e Veríssimo publicaram o estudo “O Avanço da Fronteira na Amazônia: do Boom ao Colapso”, em que dividem a Amazônia em quatro zonas de cobertura: “não-florestal”, “desmatada”, “sob pressão” e “florestal”. As áreas “não florestais” são regiões cobertas por cerrados e campos, onde as principais atividades são pecuária extensiva e agricultura. As áreas “desmatadas” foram cobertas por florestas, mas já possuem mais de 70% da sua área desflorestada. As regiões “sob pressão” constituem aquelas localizadas nas novas fronteiras de ocupação e, portanto,  com maior risco de desmatamento atualmente. Por fim, as áreas “florestais” compreendem regiões mais conservadas, com apenas 5% de desflorestamento. A publicação mostra que, naquele período, havia uma maior incidência de homicídios e maior taxa de assassinatos rurais por 100 mil habitantes nas zonas “sob pressão”.

Recentemente, em conjunto com pesquisadores do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia), em um esforço de contribuir com o trabalho da Revista Piauí num artigo sobre a Amazônia, buscamos atualizar essa informação. Para tanto, foram recalculadas as divisões das zonas de cobertura para cada ano analisado. Além disso, outros dados foram utilizados para a análise. Primeiramente, vale observar como se dá a distribuição de crimes na região da Amazônia Legal no momento mais recente. A tabela abaixo apresenta dados relacionados à violência em 2018, provenientes de diferentes fontes de dados.

Conforme é possível verificar na tabela, as zonas “sob pressão” possuem maiores taxas de violências não letais registradas pelo Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação). Tanto violência sexual, como violência física apresentam maior quantidade de notificações por 100 mil habitantes do que as outras áreas. No entanto, ao tratar de violência letal, é a zona “desmatada” que responde pela maior taxa de homicídios, seguida pela zona “sob pressão”. Considerando a conclusão do estudo de Celentano e Veríssimo (2007), houve uma mudança importante no comportamento dos índices de violência letal na zona “desmatada”. O gráfico abaixo apresenta o comportamento das taxas de homicídio nas diferentes categorias nos dois períodos.

O gráfico traz as médias das taxas de homicídio em dois períodos: 2004 a 2007 e 2015 a 2018. Ou seja, entre um conjunto de barras e o outro existe um intervalo de oito anos. É possível verificar que no primeiro período as taxas de homicídio eram significativamente maiores nas zonas “sob pressão”. No entanto, passados oito anos, a violência subiu nas áreas “não florestal”, “desmatada” e “florestal”, praticamente se igualando à taxa das zonas “sob pressão”. As áreas desmatadas apresentaram até uma média superior à taxa da zona “sob pressão”. Ou seja, é possível verificar que a violência se tornou um fenômeno mais frequente em todas as áreas amazônicas.

Apesar de todas as áreas terem visto um crescimento significativo das taxas de violência, também é digno de nota que as maiores taxas de homicídios estão em áreas que tem algum grau de desmatamento. Ou seja, apesar de essa não ser uma constatação de causalidade, pode-se afirmar que violência e desmatamento são fenômenos que caminham juntos.

O que se debate aqui, portanto, é a urgência de aprofundar os estudos e análises que relacionam crimes violentos e crimes ambientais. Existem fortes indícios de que os fenômenos possuem convergências, como apontam os dados acima. A compreensão de como a área de segurança pública pode se relacionar com a área ambiental e estas, juntas, contribuírem para a compreensão desse contexto é um desafio a ser enfrentado no país.

 

*Mestre em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas – SP. Graduada em Administração Pública na mesma escola. Pesquisadora do Centro de Administração Pública e Governo da Fundação Getulio Vargas e pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

**Graduada em Ciências Sociais pela USP, mestranda em Administração Pública e Governo pela Fundação Getulio Vargas e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “A atuação da PRF nas operações do Ministério da Justiça e Segurança Pública” e “Acidentes aeronáuticos: aspectos periciais

 

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O mito do policial herói e a farsa do reconhecimento profissional https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/o-mito-do-policial-heroi-e-a-farsa-do-reconhecimento-profissional/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/25/o-mito-do-policial-heroi-e-a-farsa-do-reconhecimento-profissional/#respond Mon, 25 Jan 2021 14:27:06 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/Fernando-Frazão-Agência-Brasil-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1635 O policial não precisa morrer no cumprimento do dever; necessita reconhecimento pelo serviço público que executa e não pelo sangue que é derramado em falsas batalhas.

Alexandre Pereira Rocha*

Ganhou grande repercussão o assassinato do policial militar Derinalto Cardoso dos Santos ao tentar impedir um assalto na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, no dia 5 de dezembro de 2020. O caso se espalhou rapidamente pelas redes sociais, especialmente no meio policial. Chamou atenção a frieza de um dos assaltantes, que não titubeou em disparar um tiro à queima-roupa na cabeça do policial. Mais um agente de segurança pública se foi. Restam a dor e a indignação de familiares e amigos. Condolências e salvas de tiros. Nada mais.

O caso ficou registrado em filmagens do estabelecimento comercial. O policial Derinalto se depara com um assalto e não declina de sua missão. Assim, ele adentra bravamente na cena do crime. Pelas imagens, parece que Derinalto identifica um suspeito. Mesmo com o delinquente sob sua mira, ele não dispara imediatamente. Por sua vez, um comparsa se aproveita da situação e surpreende Derinalto com um tiro na cabeça. Pessoas correm em desespero. Os assaltantes fogem. Derinalto fica caído no chão.

Por fatalidade, o policial se tornou a vítima no cumprimento do dever. Por isso, ele ganha o reconhecimento póstumo de herói. Ele também seria visto como herói, só que num estágio mais fantasiado, caso tivesse obstado o assalto com tiroteio e morte dos delinquentes. Nessa hipótese, é bem provável que fosse elogiado pessoalmente pelo atual presidente da República Jair Bolsonaro, condecorado pela polícia militar e aplaudido pelo jornalismo pinga-sangue. Não obstante, a realidade é outra: Derinalto foi morto e a designação de mito heróico não muda isso.

A morte do policial Derinalto não é um mito. Da mesma forma, não são lendas os frequentes embates entre criminosos e policiais pelas periferias do Brasil afora. Do mesmo modo não é mito o fato de policiais terem de colocar suas vidas em risco no enfrentamento a delinquentes fortemente armados. Pelo contrário, tudo isso é uma trágica realidade. Mas o mito está nos discursos de certas autoridades, políticos e setores sensacionalistas da imprensa, que lucram com o mantra da guerra contra o crime. O mito está nas representações sociais que idealizam o martírio como próprio do exercício policial.

O mito do policial herói é parte do imaginário social e revigorado por filmes, histórias e romances ao estilo Tropa de Elite. Isso, em si, não é problema. A questão é quando isso se torna parte intrínseca das políticas de segurança pública no Brasil. Esse mito não encontra lastro na realidade, mas em narrativas criadas e replicadas que mascararam dramas da segurança pública. É fato. O mito do policial herói – que é capaz de se imolar em prol da proteção da sociedade – é conveniente para ocultar as precárias condições de trabalho, baixos salários e desvalorização da maioria dos policiais brasileiros.

Esse mito desvirtua o papel do policial como profissional de segurança pública. Isso porque ele consolida conceitos autoritários, seja, em nível individual, ao estimular a agressividade e a coragem visceral como padrão de ser policial; ou ainda, em nível institucional, ao incentivar prioritariamente estratégias bélicas e violentas como formas eficazes de policiamento.

A verdade é que o mito do policial herói é uma farsa de reconhecimento profissional, o qual desconsidera inúmeras discriminações entre cargos e patentes no âmbito das corporações; além das gritantes distorções entre polícias civis e militares em níveis estadual e nacional. Em suma, disfuncionalidades em termos de remunerações, carreiras, organizações, legislações e condições de trabalho, as quais evidenciam que há várias realidades policiais no Brasil, mas todas equivocadamente interpretadas pelo mito do policial herói.

O policial brasileiro não precisa do distintivo de herói. Afinal, isso não agregou nada ao policial Derinalto, bem como para tantos outros policiais que trabalham em situações adversas e desvalorizados profissionalmente. De fato, o que o policial precisa é ser avaliado como oficial de segurança pública, o que implica reformas nas arcaicas estruturas verticalizadas das polícias. Enfim, o que o policial necessita é de profissionalização, para ser reconhecido integralmente pelo serviço público que executa e não pelo sangue que é derramado em falsas batalhas.

Além disso, o tenente-coronel ainda acrescentou que o PM deve adaptar-se ao meio no qual ele está inserido no momento de sua atuação, de forma que ele não pode ser “grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando”.

A partir da fala do referido oficial, nos parece óbvio que os episódios que envolvem o abuso de autoridade, de poder e o excesso de violência por parte das instituições de segurança pública, em especial das PMs, e que são divulgadas pela mídia constantemente, como ocorreu em dois casos neste mês junho de 2020 em SP, corroboram a lógica ideológica da atuação policial no Brasil, que vê no pobre e negro da periferia o seu inimigo a ser combatido e “domado” e, neste sentido, nada melhor que os exemplos da vida nua e crua para desvelar esta realidade.

Que o diga o caso dos PMs que foram solicitados para atender a uma ocorrência de violência doméstica na casa de um empresário morador de Alphaville, um condomínio de alto padrão na Grande São Paulo, e que foram recebidos por ele aos xingamentos, insultos e todos os tipos de grosserias e destemperos típicos de uma elite raivosa e demagógica que, diga-se de passagem, “defende” os policiais nas redes sociais. Importante frisar que todo o rompante autoritário do dito empresário foi gravado, assim como também foi clara a passividade dos policiais militares para agir diante do explícito desacato cometido por parte do “cidadão de bem”.

Por mais que discursos corporativistas de outros policiais queiram defender os PMs utilizando-se do argumento do controle emocional necessário, dificilmente o medo do empresário por sua condição econômica aparece como o fator determinante para o corpo inerte dos policiais diante de uma imagem que exigia uma ação enérgica para conter um agressor em potencial.

No outro caso, ao contrário, imagens gravadas revelaram em cadeia nacional os espancamentos cometidos por PMs a um jovem em uma periferia da zona norte de São Paulo. Na cena, oito PMs usam da brutalidade para cometer a violência contra um jovem passivo que diz “não ter feito nada” e ainda por cima trata os PMs por “senhor”, afirmando ser “trabalhador”. Em uma patrulha com oito policiais, em que todos estão dispostos a usar da violência contra o jovem pobre, fica difícil pensarmos em uma situação de exceção quanto à forma como as PMs atuam nas periferias.

Recordemos do caso “Rambo”, ocorrido na Favela Naval, em Diadema, em 1997, no qual policiais militares foram filmados por um cinegrafista amador violentando e extorquindo moradores em uma blitz, o que resultou na morte do mecânico Mário José Josino, de 29 anos. O PM conhecido por Rambo atirou nas costas do mecânico, que se encontrava em um carro em movimento. Passados quinze anos, e após cumprir oito anos de prisão, Rambo deu uma entrevista à TV afirmando que agiu “para consertar uma sociedade que não tem jeito de consertar”, de certa forma eximindo-se da culpa e racionalizando sua justificativa como se a morte de um homem pobre e inocente não significasse nada.

De um lado, um jovem na periferia paulista, um Josino, um Amarildo e tantos outros que têm em comum o fato de pertencerem aos estratos sociais menos abastados da sociedade, bem como o fato de receberem do Estado, nestes casos representados por suas PMs, os tiros, porradas e bombas. De outro o empresário e a elite como um todo que, para além de já receberem do Estado as PMs para fazer valer seu status quo, também desrespeitam o profissional e, neste contexto, a não ser que sejamos acéfalos ou que tenhamos interesses, fica difícil não ter uma visão crítica sobre a atuação do Estado através dos aparatos de segurança pública, principalmente de suas policias militares, sobretudo no que diz respeito à violência contra os menos favorecidos.

Portanto, quem precisa de polícia e é parado no Brasil, em grande medida, são os “periferizados”, em grande parte negros, vítimas de um processo histórico de abandono, que têm de suportar a autoridade impositiva de uma polícia que foi criada e se desenvolveu para lidar com os pobres e estigmatizados. Pensando por uma lógica psicanalítica, como os PMs em sua maioria se originam das classes médias e baixas, talvez, inconscientemente, eles ajam para exercer poder contra aqueles que representam a projeção deles mesmos, como uma forma de destruir uma imagem que deixa explícito que eles/elas estão também na base maior e inferior da hierarquia social.

Mas, em conjunto, só podemos reproduzir aquilo que aprendemos a fazer pela formação profissional que passamos, pelo machismo e ideal de masculinidade e virilidade, pela pressão grupal, pelo desejo de potência, pelo sadismo em impingir sofrimento ao outro. Tudo isso só revela o quanto a violência policial demonstra ser um problema distante de resolvermos em nossa cada vez mais frágil democracia.

 

*Alexandre Pereira da Rocha é Doutor em Ciências Sociais (UnB), Policial Civil no Distrito Federal (PCDF) e Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

 

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Na edição desta semana, leia também “Saída temporária na execução penal: o paradoxo” e “A sucessão nos Estados Unidos e o perigo das forças de segurança politizadas”

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A proposta de reforma policial afeta o federalismo* https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/12/a-proposta-de-reforma-policial-afeta-o-federalismo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/01/12/a-proposta-de-reforma-policial-afeta-o-federalismo/#respond Tue, 12 Jan 2021 16:49:02 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/01/tanrg_abr_26042018_0438_1-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1629 Está em discussão no Congresso Nacional um substitutivo ao projeto de Lei 4363/2001, visando alterar a organização das Polícias Militares. A proposta altera fundamentalmente a estrutura do sistema federativo brasileiro, uma vez que reduz drasticamente o poder dos governadores para controlar as polícias militares estaduais. Como agravante, esta discussão ocorre num contexto em que o presidente Jair Bolsonaro, que têm significativo apoio entre policiais militares, trava disputas políticas com governadores em diversos estados do Brasil.

 

Arthur Trindade M. Costa**

Não é de hoje que se discute a necessidade de atualizar a legislação que organiza as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros, regidas ainda por um decreto-lei da ditadura de 1969. Nesses mais de 50 anos de vigência Decreto Lei 667/69, o país passou por significativas mudanças sociais e econômicas. No plano político, o regime militar deu lugar a um novo regime democrático conhecido como Nova República.

Por este motivo diversos projetos de lei têm sido apresentados para reorganizar as polícias. O atual projeto substitutivo, que foi elaborado com ajuda do Conselho Nacional dos Comandantes-Gerais das PMs e dos Corpos de Bombeiros, conta com apoio do governo federal e de algumas entidades de classe como a Federação Nacional de Entidades de Oficiais Militares Estaduais.

O projeto diminui drasticamente os poderes de governadores sobre o comando das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros, uma vez que cria uma lista tríplice para a escolha de comandantes-gerais. O mandato dos comandantes seria praticamente fixo, pois os governadores teriam que justificar a exoneração do comandante-geral. Na prática, além de diminuir o poder dos governadores, o projeto acentuará ainda mais a politização dentro das corporações, já que haveria disputa pela eleição para a lista tríplice.

No que se refere às carreiras, o projeto apresenta mudanças significativas. O texto prevê a criação da patente de general, tal qual nas Forças Armadas. Seriam criadas três novas patentes: brigadeiro-general, major-general e tenente-general. . É importante lembrar que, devido a brechas na legislação, em muitos estados há mais coronéis na ativa do que a quantidade prevista no quadro de efetivo. Nesses estados não faltam generais, mas sobram coronéis.

O projeto permitirá que militares indiciados em inquéritos policiais ou réus em processos possam ser promovidos. Também está prevista a promoção por bravura desde que seja comprovado risco real da própria vida. Além disso, será criado o quadro de oficiais e praças temporários. Na prática, os policiais afastados por corrupção poderão ser promovidos. A ideia de promoção por bravura pode se tornar em um incentivo a violência policial.

O substitutivo traz várias outras mudanças. Dentre elas estão previstas a equiparação salarial dos policiais militares do Rio de Janeiro e dos ex-territórios com os militares do Distrito Federal; alterações na organização e competências da justiça militar e a ampliação das competências do Conselho Nacional de Comandantes Gerais de Polícia Militar. O texto é bastante detalhista e prevê a padronização das cores das viaturas e dos uniformes. Ou seja, os governadores sequer poderiam opinar sobre a cor do fardamento das polícias.

O projeto tem importantes desdobramentos econômicos e jurídicos. Mas é no campo político que a proposta terá maior impacto. Se o projeto substitutivo for aprovado na forma como está, haverá uma significativa mudança no sistema federativo brasileiro.

Um traço marcante do federalismo brasileiro é a alternância entre períodos de centralização e descentralização. Nos períodos autoritários – Estado Novo e Regime Militar – houve grande concentração de poderes políticos e de funções administrativas nos governos federais. Nos demais períodos, observou-se um federalismo altamente descentralizado, no qual os estados guardaram grande autonomia política.

As polícias, embora um pouco ausentes das discussões sobre a federação brasileira, sempre foram instituições centrais para pensar as autonomias estaduais ou a concentração de poderes no governo federal. Ao longo da história republicana brasileira, o sistema policial brasileiro acompanhou as oscilações da federação. Ora as polícias estavam submetidas ao poder central, ora significavam a garantia da liberdade das elites políticas estaduais.

Durante o Estado Novo (1937-1945), as polícias estaduais foram controladas pelo governo federal. A Polícia Civil do Distrito Federal, subordinada ao Ministro da Justiça, era encarregada de controlar as demais policiais civis estaduais. Cabia ao Ministro da Justiça aprovar as indicações de Diretores-Gerais. A Constituição de 1934 tornou as Polícias Militares “forças auxiliares” controladas pelo Exército que passou a nomear seus comandantes. Desta forma, todo aparato policial foi posto sob o controle direto de Getúlio Vargas.

Durante o regime militar (1964-1985), o aparato policial esteve sob controle do Exército. As Forças Públicas foram extintas e seus efetivos incorporados às polícias militares, que passaram a ser as únicas forças policiais destinadas ao patrulhamento ostensivo das cidades. Em 1967 foi criada a Inspetoria-Geral das Polícias Militares do Ministério do Exército (IGPM), destinada a supervisionar e controlar as Polícias Militares Estaduais. Cabia à IGPM aprovar a nomeação dos Comandantes Gerais.

Com o fim do regime militar e a transição política, esse quadro voltou a ser alterado. A Constituição de 1988 assegurou que as polícias civis e militares estão sob o controle dos governadores. Entretanto, ficou estabelecido que a sua organização e funcionamento são regulados por legislação federal. Na prática, os governadores recuperaram a prerrogativa de nomear os comandantes e chefes das polícias, mas lhes foi vedada a possibilidade de reestruturar individualmente o aparato policial.

Discutir a reorganização das polícias militares é fundamental. Mas é preciso ter muita cautela para não desequilibrar a federação brasileira. Afinal de contas, o sistema federativo é um dos principais mecanismos de freios e contrapesos da democracia. As aventuras autoritárias sempre começam pelo controle das Polícias e das Forças Armadas. Foi assim que aconteceu na Venezuela, onde a reforma policial de 2006 colocou as 24 polícias estaduais sob controle do Presidente da República, além de criar outras 99 polícias municipais, também sob controle do governo bolivariano.

 

*Artigo inédito da edição 71 do Fonte Segura, que vai ao ar nesta quarta-feira, dia 13/01.

 

**Arthur Trindade Maranhão Costa é Professor da UnB, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e editor do Fonte Segura.

 

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Em meio ao caos prisional no país, imprensa faz seu papel mas ganha quem gritar mais alto https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/04/em-meio-ao-caos-prisional-no-pais-imprensa-faz-seu-papel-mas-ganha-quem-gritar-mais-alto/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/04/em-meio-ao-caos-prisional-no-pais-imprensa-faz-seu-papel-mas-ganha-quem-gritar-mais-alto/#respond Sun, 04 Aug 2019 15:02:58 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Altamira-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1007 Entre janeiro e junho de 2019 foram produzidas no Brasil, ao menos, 161.850 notícias, em 110 veículos de imprensa diferentes, a partir da expressão “segurança pública”. Dessas, 17.853 são conteúdos inéditos, gerados em sua maioria por redações e equipes do jornalismo profissional. Cada reportagem sobre segurança pública foi replicada, em média, 9 vezes, sem contar a interação das redes sociais, o que demonstra a importância da imprensa para o debate público do país.

Esses dados fazem parte de levantamento especial feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que nas próximas semanas irá lançar o “Fonte Segura”, uma newsletter semanal de análise sobre os rumos da segurança pública no Brasil e no mundo, e que usará tais dados para cruzá-los com a atuação governamental, considerando gastos públicos e agendas de autoridades públicas, entre outras dimensões.

O estudo utiliza a técnica de inteligência artificial conhecida como ‘Structural Topic Model’ para gerar tópicos a partir de agrupamentos de palavras presentes nos textos das reportagens. Pela técnica, foram encontrados 12 temas de segurança pública: decreto das armas; mortes violentas; Ministério da Justiça e Congresso; sistema prisional e organizações criminosas; educação; denúncias e investigações sobre Flávio Bolsonaro, Queiroz, Lula; pacote ‘anticrime’; Bolsonaro; Lava Jato; meio ambiente e questão indígena; outros temas do MJ; violência contra a mulher.

E aqui, uma conclusão importante em uma semana em que, mais uma vez, o massacre de presos em Altamira, no Pará, nos lembrou da profunda crise dos presídios brasileiros: a cobertura da imprensa sobre o caos prisional no Brasil foi responsável por, em média, 13,3% da cobertura sobre segurança pública no primeiro semestre. Ou seja, entre janeiro e junho, o tema não foi esquecido pela imprensa mas, em sentido inverso, pouco ou nada foi feito pelas autoridades para que a situação fosse evitada. Ao menos na segurança pública, nada mais parece chocar e mobilizar as autoridades.

Mas voltando aos dados do Fonte Segura, em janeiro a crise penitenciária no Ceará faz com que 17,6% da conteúdo da mídia fosse relacionada ao tópico sobre sistema prisional. Já em fevereiro, o pacote “Anticrime” ganha quase três vezes mais destaque na mídia, indo de 5,9% do conteúdo da mídia no mês de janeiro para 17,7% no mês seguinte. Em março, a prisão dos acusados pela morte de vereadora carioca Marielle Franco e o Dia Internacional da Mulher fizeram com que a conteúdo midiático no período estivesse concentrado nestes temas, com respectivamente 19,9% e 17,3% da conteúdo total do mês.

Em abril não houve um grande destaque que dominou a agenda da segurança. Os temas mantiveram-se equilibrados na cobertura de imprensa. Porém, percebe-se o crescimento de notícias relacionada às negociações do ministro Sergio Moro com o congresso de 4,3% em março para 11,1% em abril. E, em maio, o conteúdo sobre MJ e congresso ficou em evidência na mídia devido a readequação administrativa da COAF, com 36,9% do material jornalistico (esta foi a maior concentração temática em um único mês).

Por fim, em junho, a divulgação de diálogos de integrantes da força-tarefa da Lava Jato geraram um alto crescimento de materiais da mídia sobre a investigação. A porcentagem de do conteúdo sobre a operação foi de 1,9% em maio para 32,2%.

Já no Twitter, as notícias sobre segurança ganham outros sentidos e o factual cede espaço para a guerra de narrativas e que, sozinho, mais confunde do que informa o tomador de decisão. Em fevereiro, a legítima defesa que autorizaria a morte sumária de criminosos é a principal referência em tweets sobre o “Pacote Anticrime”, com 15%; sistema prisional e organizações criminosas são citadas em menos de 1% das postagens.

Em março, houve repercussão sobre o tiroteio em Suzano e a prisão dos acusados do assassinato da Marielle. Porém, o debate não conseguir sair do descrição dos fatos. Apenas 1% dos tweets sobre Suzano citavam o “desarmamento” e 8% dos tweets sobre Marielle citavam as “milícias”. As redes preocupam-se menos com as causas reais e mais com marcações ideológicas de opinião.

Em abril, em um sinal de movimento planejado, começam a surgir as hashtags de apoio a Moro com relação a COAF no MJ. Em, #CoafComMoro, há uma ligação com Bolsonaro, 11% de citações; e uma visão de que o congresso é visto como culpado por solicitar acordos, 5% de menções. Em maio, o debate no Twitter faz uma separação forte entre Sergio Moro e Jair Bolsonaro.

Existe uma personificação da questão da COAF em torno de Sergio Moro, sendo citado em 66% dos tweets, enquanto Bolsonaro é citado por 32%. Porém, na crítica às negociações com o congresso, essa relação é invertida. Na hashtag #CentrãoBlocodeLadrão, Bolsonaro é citado por 23%, enquanto Moro é lembrado em apenas 6% em dos tweets. Há uma percepção de que o congresso esta sabotando o governo Bolsonaro. Nas postagens sobre o Decreto das Armas (08/05), Bolsonaro é colocado em primeiro plano: 43% dos tweets o citam, Moro é citado em apenas 6%.

Os dados aqui apresentados mostram que, por trás das notícias e da interação nas redes, muitos temas e questões políticas circulam e que é necessário jogar luz para o que sido feito nos bastidores da segurança pública. A segurança pública continuou como uma das principais preocupações da sociedade brasileira e não foi esquecida pela imprensa e pelas redes sociais.

O drama, infelizmente, é que, em termos práticos, o governo fez muito pouco para reduzir o medo e a violência no país e, quando fez, foi contra as evidências, como no caso dos decretos para posse e porte de armas de fogo e/ou quando desconsidera o enorme esforço que os estados e o Distrito Federal estão fazendo e que, desde início de 2018, contribui [não exclusivamente, é claro] para a redução dos índices de violência no país.

Não é à toa que vivemos um tempo social que tem na indiferença uma de suas marcas registradas. Não existe empatia ou pressupostos éticos que gere indignação e ação frente à violência e às profundas desigualdades e vulnerabilidades sociais, econômicas, raciais, geracionais, de gênero e institucionais que nos acometem enquanto nação. Mesmo com forte cobertura da imprensa, o caos prisional e a crise da segurança pública são temas ainda pouco discutidos com base em evidências e planejamento estruturado de ações. Ganha quem gritar mais alto!

 

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