Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Despolitizando as polícias https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/despolitizando-as-policias/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/08/02/despolitizando-as-policias/#respond Mon, 02 Aug 2021 18:09:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/17407680_PAZ-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1832 PEC 21/021 propõe restrições para militares da ativa das Forças Armadas ocuparem cargos civis. Iniciativa é boa, mas deveria ser estendida também a todos aos policiais brasileiros.

Arthur Trindade Maranhão Costa*

 

Tramita na Câmara dos Deputados uma proposta de emenda constitucional que visa impedir que militares da ativa ocupem cargos civis. A PEC 21, apresentada pela deputada Perpétua de Almeida (PCdoB – AC), foi motivada para impedir situações como a do general Pazuello, que ocupou o cargo de ministro da Saúde sendo militar da ativa. Embora proponha restrições apenas para militares da ativa das Forças Armadas, a PEC deveria ser estendida para todos os policiais brasileiros.

Pazuello não é o único caso. No atual governo federal, vários integrantes das Forças Armadas, Polícias Militares, Polícias Civis e Polícia Federal ocupam cargos civis. Mesmo estando na ativa, estes profissionais respondem por secretarias e departamentos nos diversos órgãos da administração federal como o Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Ministério da Ciência e Tecnologia e IBAMA.

A situação não é nova e tampouco se restringe à administração federal. Nos governos estaduais é comum que policiais da ativa ocupem cargos civis de natureza política. Também é frequente a presença de policiais da ativa trabalhando em gabinetes de parlamentares. Até no judiciário podemos encontrar policiais da ativa servindo como assessores de desembargadores.

A prática é ruim por dois motivos. Primeiro, porque desvia policiais das atividades fim. Em alguns estados o número de policiais cedidos – esse é o termo técnico – ultrapassa a casa dos milhares. A falta de efetivos não tem servido de justificativa para diminuir as cessões. As resistências são grandes, começando obviamente pelos policiais cedidos. Parlamentares e magistrados pressionam os governadores para manter policiais como assessores. Os próprios secretários de governo também demandam pela permanência desses policiais em cargos civis.

O segundo motivo é a indesejada politização dessas instituições. Os policiais e militares que ocupam cargos civis não emprestam apenas seus conhecimentos técnicos. Eles constroem também laços de lealdade política que se estendem por vários anos. Ao ocupar cargos civis, esses profissionais ingressam em grupos políticos seletos. Mesmo que retornem para suas instituições de origem, esses laços de lealdade política permanecem e são utilizados em dois sentidos. Eles permitem que as lideranças políticas estendam sua influência para dentro das instituições policiais. Além disso, a lealdade política é utilizada por alguns policiais para obter privilégios nas promoções e nomeações.

Há policiais que passaram a maior parte das suas carreiras em cargos civis de natureza política. É o caso atual ministro da Justiça Anderson Torres. Apesar de ser delegado federal da ativa, Torres passou a maior parte dos seus 18 anos de carreira cedido a outros órgãos. Ele foi assessor no gabinete do deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR) por oito anos e permaneceu mais dois anos como secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Não há dúvida que Anderson construiu uma carreira muito mais política do que policial.

Por esses motivos, a PEC 21/2021 é oportuna e deveria alcançar também os policiais. Seria um passo importante para despolitizar as polícias.

*Arthur Trindade M. Costa é professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Na edição desta semana, leia também “Proteção à narrativa policial distorce julgamentos na Justiça Militar” e “Violência armada atravessa a rua e entra em casa durante a pandemia“.

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Demonização dos povos tradicionais no caso Lázaro não surpreende https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/07/02/demonizacao-dos-povos-tradicionais-no-caso-lazaro-nao-surpreende/#respond Fri, 02 Jul 2021 19:51:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/07/terreiros-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1810 Em nome da luta contra o mal, mesmo com recursos tecnológicos à disposição, a polícia seguiu invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais

Ana Paula Mendes de Miranda*, Rosiane Rodrigues de Almeida** e Leonardo Vieira Silva***

A pressa em rotular Lázaro Barbosa de Souza fez com que ele fosse apresentado de muitas formas. Uma dessas classificações resultou em violações de direitos dos povos tradicionais por parte das polícias. Ao retratá-lo como um “fanático religioso”, as forças de segurança se tornaram os cruzados contemporâneos. As operações se transformaram em ações cristãs de “libertação do mal”, numa espécie de “batalha religiosa” acompanhada em tempo real pelas redes sociais.

Tudo começou com narrativas oficiais. O “boato” de que Lázaro estaria possuído por um “demônio” ou “espírito” foi veiculada pelo tenente Gérson de Paula, da PM de Goiás, através do site Metrópoles, no dia 15 de junho. O policial teria afirmado que o criminoso andaria com um “livro místico” que lhe garantiria “proteção espiritual”, razão pela qual “só poderia ser pego com auxílio de cães ou cavalos”. Na sequência, a entrevista do major Rio Branco, subchefe do Centro de Comunicação Social da Polícia Militar do Distrito Federal, ao UOL, que, ao analisar as dificuldades de prender o criminoso, afirmou: “se ele [Lázaro] é a força satânica, as forças de segurança são os anjos de Deus”.

A imprensa mordeu a isca e reconduziu a cobertura, deixando de lado o “perfil psicológico” e investindo na suposta prática demoníaca, mesmo com a ex-mulher e um amigo do suspeito afirmando que Lázaro era evangélico. O G1 reproduziu fotos, que teriam sido divulgadas pela polícia civil, de alguns assentamentos de Exu e pentagramas. Na reportagem, o delegado Raphael Barboza afirmou que os objetos foram encontrados na “casa” de Lázaro, sendo “indicativos de práticas de bruxaria e rituais”. Impressiona que, em pleno século XXI, o jornalismo brasileiro não saiba lidar com a diversidade religiosa. Mas o problema não parou aí.

A ação se voltou para investigar as suspeitas de acobertamento de Lázaro pelos terreiros da região. Diferentes grupos de policiais passaram a invadir, sem mandado judicial, cerca de 12 terreiros. Vídeos disponíveis nas redes sociais demonstram que antes do “combate” aos terreiros, os policiais oravam.

A “neoinquisição” utilizou-se de técnicas tradicionais de interrogatório e pressão dirigida aos suspeitos – os povos tradicionais de matrizes africanas. Em nome da luta contra o mal, com os meios tecnológicos mais modernos, seguiram invadindo os terreiros e violando direitos constitucionais.

As invasões, agressões físicas e verbais só cessaram quando as lideranças religiosas se mobilizaram, por meio das redes sociais, denunciando que as fotos não eram da “casa” de Lázaro, mas do babalorixá André de Oxum, que, após uma peregrinação, conseguiu registrar ocorrência policial sobre os abusos sofridos. Os afrorreligiosos buscaram os meios legais e parceiros que os apoiassem nas suas reivindicações: mandado de segurança para proteção das casas; apuração de responsabilidades das forças policiais pelas agressões; reparação dos danos/agressões; retratação dos meios de comunicação, e garantia do Estado para o direito à liberdade e integridade dos territórios tradicionais.

A pressão serviu ao menos para que o G1 e o UOL se retratassem, pedindo desculpas pelos “erros no processo de produção” das reportagens. O Metrópoles nada fez até o momento da redação deste texto. As instituições policiais seguiram caladas diante da violação que produziram.

Há mais de 30 anos se discute no Brasil que as instituições de segurança pública não têm o direito de dispor de forma ilimitada do uso da força. Há que se respeitar os limites legais que estabelecem que o mandato de uso da força, conferido aos agentes de segurança, não pode violar os direitos fundamentais.

Analisando os relatos e reportagens fica evidente que o início das agressões se deu pelas forças do Estado, difundindo a ideia de que se tratava de uma missão religiosa de libertação do mal. O que vimos é o desrespeito aos preceitos fundamentais basilares, com a invasão ilegal dos terreiros e a espetacularização midiática das operações. O episódio lembra “A Quebra de Xangô”, ocorrida em Alagoas, em 1912, quando terreiros foram invadidos e destruídos com a mesma intenção.

Inaceitável que as operações policiais funcionem como dispositivo publicitário de produção de medo e violação de direitos. Quem ganha com a encenação e espetacularização da insegurança? Trata-se de um fenômeno antigo que explora a violência como mercadoria – notícia – e transforma o público em mero espectador.

Mais uma vez negou-se a humanidade aos povos afroameríndios, para em seguida negar-lhes os direitos. A demonização dos terreiros pelas igrejas cristãs, pela mídia, pelas agências estatais, vem da colonização. Ela serve para generalizar o medo, para organizar moralmente a sociedade em torno de um modelo excludente da diversidade, que trata o mundo de modo dual (bem versus mal), no qual se inventam os “demônios” para que sejam sempre os culpados. Não se trata apenas de uma questão religiosa, mas sim de uma ética, um modo de pensar, sentir e agir que orienta práticas institucionais. Neste caso a demonização serviu para ocultar os interesses financeiros de um fazendeiro, que teria escondido o criminoso. Ele não permitiu a entrada das polícias em sua fazenda, mas não houve uma invasão tal como nos terreiros, pois ele foi preso mediante outro tipo de ação. Nada de novo na política e na polícia brasileiras.

 

*Professora de Antropologia (UFF); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF); Bolsista de Produtividade do CNPQ 2.

**Bolsista de Pós-Doutorado em Antropologia (FAPERJ); Pesquisadora do INCT-INEAC (UFF).

***Doutorando em Antropologia (UFF); Pesquisador do INCT-INEAC (UFF)

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Na edição desta semana, leia também “Vinte anos da criminalização do assédio sexual” e “Casos DG e Floyd, duas mortes e a mesma causa: a letalidade policial“.

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O soldado e o Estado no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/o-soldado-e-o-estado-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/11/o-soldado-e-o-estado-no-brasil/#respond Fri, 11 Jun 2021 21:05:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/ppp-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1794 Precisamos que o pensamento democrático balize, de fato, as instituições públicas, mormente as que detém o exercício do poder coercitivo do Estado. 

Catarina Corrêa*

 

Pagamos por nossas escolhas. Não há maior verdade, quando falamos de política. E o Brasil tem um histórico de adiar o futuro, de deixar os conflitos para depois, porque estamos em crise. Mas sempre estamos em crise. Então, a reforma das instituições sempre fica para depois.

No final do século XIX, passamos de uma monarquia institucionalmente falida para uma república disfuncional. E não é nenhuma novidade que sistemas presidencialistas, sobretudo quando dependem de amplas coalizões, oferecem poucas ferramentas para manejar crises políticas. Não temos “recall”, nem dissolução de governos politicamente ineptos. Temos o “impeachment”, que depende da existência de crimes de responsabilidade. Nome infeliz, já que, tecnicamente, não parece muito com o que vemos no Direito Penal. Mas, no final, para quem perde, “impeachment” sempre será golpe.

Pois o Brasil, quando iniciou sua história republicana – e lembre-se, por meio de um golpe militar –, adotou uma estrutura institucional que oferece, como dito, poucas ferramentas para debelar crises. E, para nosso infortúnio, temos, desde o fim do século XIX, uma superposição de crises constitucionais.

Temos a crise da federação – que já existia quando ainda éramos um país unitário –, em que todos os seus membros estão sempre descontentes, culpando-se mutuamente por seus infortúnios. 

Temos a crise do sistema representativo, gerada por partidos sem permeabilidade, que não permitem que a sociedade participe de suas estruturas, que se estabelecem como feudos, e cujo único interesse é, em regra, a manipulação da política mais rasteira ou simplesmente a divisão do butim chamado fundo eleitoral.

Temos mais crises do que o espaço desse artigo permite relatar. Importante mesmo é lembrarmos como essas crises (não) foram administradas.

No momento em que a debilidade institucional – que inviabiliza a construção do futuro, ao sonegar a implementação de políticas públicas de longo prazo coerentes – toma conta do Estado, não há nada que ele possa fazer além de permanentemente tentar apagar incêndios.

O resultado desse quadro é impaciência e frustração com a falta de resultados. O que os cidadãos percebem é tão-somente injustiça. Injustiça na cobrança dos impostos, na repartição das receitas tributárias, na distribuição dos serviços públicos, na criação da desejada igualdade de oportunidades.

Em nossa experiência histórica, essas situações de profunda frustração política acabam sendo mediadas, em seus momentos mais agudos, pelos militares. Quando as instituições não dão conta, os militares se sentem legitimados a oferecer uma solução. 

Não houve força institucional ou social que fosse suficientemente poderosa para estabelecer um limite claro para essas intervenções. Refiro-me a todos os tipos de intervenções, até mesmo tweets em véspera de julgamento no STF.

Voltando à nossa história política, a própria república surgiu também de uma crise militar, a do Império. A República Velha, por sua vez, revelou a presença quase permanente dos militares no protagonismo político. A Revolução de 1930, primeiro ímpeto de modernização (para o bem e para o mal) na história do Brasil, teve o dedo do tenentismo. O fim do Estado Novo se deu pela mão dos militares, que, depois de lutar pela democracia (dos europeus), desistiram de Getúlio Vargas. Depois disso, a precária democracia brasileira continuou precisando da tutela de militares (antigolpistas): Marechal Lott, por mais de uma vez, e Leonidas Pires Gonçalves, só para citar os mais destacados.

Certamente, o clima de intransigência e de intolerância política, que, de tempos em tempos, nos assola, alimenta a disfuncionalidade mais grave de todas: a perda da fé de que o sistema político, com todas as suas imperfeições, seja capaz de ajudar-nos a enfrentar a tempestade. 

Certamente, o General no palanque nos serve de alerta. Precisamos de limites institucionais mais claros. Precisamos que o pensamento democrático balize, de fato, as instituições públicas, mormente as que detém o exercício do poder coercitivo do Estado. 

Samuel Huntington, em “O Soldado e o Estado” (1957), sustenta que os militares operam em uma esfera separada, mas subordinada. Sua teoria – criticada como excessivamente idealizada – ensina que os líderes políticos fazem a política e fornecem a orientação abrangente do que deve ser feito, enquanto os militares se atêm à sua área de competência – a aplicação do poder militar. Essa estrutura oferece uma orientação clara e precisa, mas exige musculatura institucional, que, aparentemente, ainda não temos.

 

Juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios

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Na edição desta semana, leia também “A política entrou nos quartéis” e “Autonomia financeira e o impacto da violência contra as mulheres brasileiras“.

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A Operação Lava Jato e as Ciências Sociais https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/04/a-operacao-lava-jato-e-as-ciencias-sociais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/04/a-operacao-lava-jato-e-as-ciencias-sociais/#respond Tue, 04 May 2021 14:34:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/975036-09-09-2015-dsc_2143-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1754 A essa altura, já não se sabe mais o que é crítica à obra de Faoro, o que é crítica às palavras de Barroso, ou à ação dos integrantes da Lava Jato. Ou o que é pura e simplesmente uma tese sem pé nem cabeça, lançada de forma leviana, para aproveitar a debacle da Lava Jato para acertar contas com um dos grandes intérpretes do Brasil

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*

 

A importância da Operação Lava Jato para os destinos políticos do país, assim como para o funcionamento da justiça penal e o combate à corrupção, tem dado margem a muitas publicações, não apenas no campo do processo penal, mas também no das ciências sociais. A partir do reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da incompetência do juízo de Curitiba para julgar os processos envolvendo o ex-presidente Lula, e do reconhecimento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para o julgamento do ex-presidente, uma nova leva de artigos tem sido publicados, representando estas diferentes e muitas vezes conflitantes interpretações sobre a operação, seu final melancólico e seu significado.

Entre seus defensores, críticos das recentes decisões do Supremo, se encontra, em lugar de destaque, o jurista e sociólogo do direito Joaquim Falcão. Em recente artigo publicado no Estadão (23.04.2021 – O que o STF não respondeu ao declarar Moro suspeito), fazendo coro ao voto do ministro Barroso, Falcão sustenta que as recentes decisões do STF são fruto de “vingança judicializada” contra os avanços do que considera um “direito processual sistêmico”. Segundo ele, não há estado democrático de direito sem um direito processual eficiente (para condenar, e não para garantir o exercício pleno do direito de defesa). Trata-se, portanto, de uma leitura que considera os métodos da Lava Jato adequados e necessários para alcançar os fins desejados.

Semelhante visão tem sido apresentada por Cláudio Beato, sociólogo e professor da UFMG, que em artigo publicado no O Globo (20.03.2021 – Os (des)caminhos da justiça criminal brasileira) contrapõe a perspectiva garantista, que “busca esgotar todos os ritos legais, dando amplo direito de defesa, a fim de minimizar erros ao longo do sistema”, a um outro modelo emergente, que buscaria, “ao contrário, a celeridade processual e o julgamento por evidências”. Sustentando que o caminho para a modernização da justiça para o combate à corrupção passa por essa segunda alternativa, promovida por “aguerridos membros do Ministério Público ou novas versões de algumas polícias estaduais e federais”, Beato critica o aparato legal defasado (sem dizer quais mudanças deveriam ocorrer, e sem considerar o grande número de reformas legais ocorridas a partir de 88). Beato reconhece que abusos foram cometidos (“ações arbitrárias”, “excessos”) e critica o ex-juiz e seus aliados no MP e na PF por “cometeram o erro primário de confundir-se com esse movimento político em ascensão” (o bolsonarismo). A derrota da Lava Jato seria fruto da mistura de ação judicial e interesses políticos, que levou seus protagonistas ao confronto com “uma curiosa congruência de interesses aparentemente opostos de direita e esquerda, para que, como sempre ocorreu, o braço da lei não alcance os poderosos”. Ou seja, não foram os abusos praticados, mas a inabilidade política dos seus operadores, que teria viabilizado a nova maioria no STF e o fim da operação.

Uma outra chave de leitura é aquela apresentada por pesquisadores vinculados ao Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, entre os quais o professor Roberto Kant de Lima, para quem, historicamente, “a ética dos operadores do direito naturaliza a proximidade organizacional e social entre promotores e juízes sem se questionar sobre as razões inquisitoriais de sua organização”(JOTA, 05.03.21). Para Kant de Lima e Pedro Heitor Barros Geraldo, a mudança de regimes políticos ao longo da história do Brasil produziu uma transformação das finalidades das instituições judiciais, mas não necessariamente das práticas de tomada de decisão. O que caracteriza para estes autores o “espírito da Lava Jato” é a obsessão persecutória contra uma suposta e atávica corrupção “sistêmica” entre os políticos e empresários, que os procuradores buscavam demonstrar a todo custo.  O “espírito da Lava Jato” encarnou em práticas conhecidas e naturalizadas pelos atores da justiça. A recorrente corroboração destas práticas, inclusive pelos órgãos correcionais, produziu um ambiente propício para o uso ilimitado dos poderes judiciários. Neste sentido, a Lava Jato seria a reiteração do modus operandi da justiça brasileira, inquisitorial e seletiva.

Na mesma linha, mas destacando a dimensão da inovação frente às permanências, destacamos, em artigo publicado no blog Faces da Violência, da Folha (Azevedo e Costa, 01.04.2021 – Lava Jato: Crônica de uma morte anunciada) que a Lava Jato, assim como outras operações e processos não tão midiáticos de combate à corrupção, foram a resultante de mudanças institucionais introduzidas a partir da CF de 88, que transformou a Polícia Federal em Polícia Judiciária, criou o Ministério Público Federal e a Justiça Federal. Ou seja, a CF 88 criou o Sistema de Justiça Criminal no âmbito federal. Juntamente com uma série de inovações legislativas em matéria penal e processual penal, concluímos que a Operação Lava Jato foi o resultado ambíguo de um processo de aperfeiçoamento institucional, distorcido pela ambição de seus operadores, de refundar o sistema político a partir de um processo judicial.

Uma nova interpretação veio à tona recentemente, em artigo publicado pelo cientista político Leonardo Avritzer no blog “A Cara da Democracia”, publicado pelo UOL (24.04.2021 – O fim da Lava Jato e o patético Barroso). Comemorando a decisão do STF, por 7 votos a 2, que reconheceu a suspeição de Sérgio Moro, Avritzer sustenta que a derrota da Lava Jato constituiria também a derrota de uma interpretação equivocada do Brasil, apresentada por Raymundo Faoro em sua obra “Os Donos do Poder”, lançada originalmente em 1959, que teria sido, segundo ele, “resgatada” pelos justiceiros de Curitiba. Para sustentar a responsabilidade de Faoro pela Lava Jato, Avritzer desqualifica a obra, acusando-a de reduzir os problemas do Brasil à corrupção, de realizar operações de “qualidade acadêmica duvidosa”, e de representar “o pior texto já escrito sobre a história do Império” (segundo “alguns”). Com base nesta argumentação (de qualidade acadêmica bastante duvidosa), Avritzer extrai a conclusão de que a Lava Jato poderia ser entendida como um “faorismo judicial”, caracterizado pelo ativismo judicial e o punitivismo seletivo. Sustenta, assim, que o verdadeiro projeto (de Faoro ou de seus “seguidores”?) seria “a destruição sistemática do Estado brasileiro”, e na falta de outro caminho teria pavimentado a militarização do governo conduzida por Bolsonaro. Avritzer vai além, sustentando que o “faorismo judicial” estaria disposto a deixar de lado quaisquer “arroubos ligados ao liberalismo”, como o direito de defesa, para destruir o “estamento burocrático”. Através, diga-se, de um braço do próprio estamento burocrático.

A essa altura, já não se sabe mais o que é crítica à obra de Faoro, o que é crítica às palavras de Barroso, ou à ação dos integrantes da Lava Jato. Ou o que é pura e simplesmente uma tese sem pé nem cabeça, lançada de forma leviana, para aproveitar a debacle da Lava Jato para acertar contas com um dos grandes intérpretes do Brasil. Não cabe aqui fazer a defesa da obra de Faoro, ou precisar os conceitos que ela apresenta, embora os ataques que vem sofrendo denotem a importância dessa discussão, já feita, e de forma brilhante, por um outro professor da UFMG, Juarez Guimarães, por ocasião da passagem dos 50 anos de “Os Donos do Poder” (Guimarães, 2009 – Raymundo Faoro, pensador da liberdade).

Basta aqui, seguindo os argumentos de Guimarães, lembrar que “o centro da narrativa de Faoro, sinal expressivo de sua importância na formação de nossa cultura política, é entender por que prevaleceu em nossa história, no chamado período monárquico ou no republicano, um Estado assentado em uma soberania não resultante de um contrato livre entre cidadãos”. Faoro encontra a explicação na formação patrimonialista estamental do Estado português, que no contexto particular da Independência do Brasil, promovida por membros da própria família real portuguesa, transmitiu-se como instância estruturadora da cultura política brasileira em formação, “cindindo e deformando a formação de uma cultura liberal de direitos e passando por vários processos históricos transformativos e adaptativos até a contemporaneidade”. Compreendendo a dimensão do autor e da obra, Guimarães reconhece que Faoro “foi o primeiro entre nós a construir uma narrativa de longa duração a partir do critério da liberdade política, entendida em sua chave republicana, como autogoverno de cidadãos autônomos”. Ou seja, o que pretende Faoro “é a crítica histórica do Estado fundado sem contrato social democrático, encerrado em uma lógica patrimonial, sem uma ordem simétrica de direitos e deveres, que se atualiza de forma permanente pela particularização arbitrária da sua ação política e pela privatização de suas funções econômicas. O que resulta dessa crítica não é propriamente a negação do Estado ou a sua ausência, mas a necessidade da democratização de seus fundamentos, uma ordem simétrica de direitos e deveres de cidadania e a afirmação de critérios universalistas de sua ação política econômica”.

A forma como os procuradores da Lava Jato, que já confundiram Hegel com Engels, interpretam e utilizam a obra de Faoro para legitimar suas ações, diz muito pouco sobre a obra de Faoro. Que um ministro do Supremo se utilize dos “Donos do Poder” para fundamentar seu consequencialismo, subvertendo os meios pelos fins do processo penal, diz muito sobre certa matriz autoritária de decisionismo jurídico, mas responsabilizar por isso um tribuno da liberdade e dos direitos e garantias fundamentais, inclusive em tempos obscuros, seria o mesmo que responsabilizar Cristo pela Santa Inquisição.

Mas, ainda com Guimarães, é importante lembrar que aquele que, na condição de presidente nacional da OAB, em discurso memorável, afirmou o princípio de que “o Estado não pode ser o inimigo da liberdade”, continua sendo uma referência central para que possamos compreender a longa duração dos processos históricos e os desafios colocados para a afirmação da democracia no Brasil. Não faremos isso acreditando que o clientelismo, o apadrinhamento, o direcionamento de recursos públicos de forma seletiva e pouco republicana, as rachadinhas e os caixas 2 para financiamento de campanhas eleitorais são um problema menor ou já superado. Muito menos desacreditando ou minimizando a importância dos mecanismos institucionais para o esclarecimento e a responsabilização criminal dos que pretendem perpetuar sinecuras e dinastias de poder político patrimonial.

 

Sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS

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Na edição desta semana, leia também “Covid-19 e morte de policiais: crônica de uma tragédia anunciada” e “Tráfico de drogas na percepção policial e os custos para a sociedade”.

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As festas clandestinas são problemas políticos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/as-festas-clandestinas-sao-problemas-politicos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/as-festas-clandestinas-sao-problemas-politicos/#respond Thu, 08 Apr 2021 21:41:27 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1717 “Dificuldades para cumprir medidas de isolamento social evidenciam os problemas de exercício da autoridade no Brasil, uma vez que decretos estaduais têm sua eficácia confrontada.”

Alan Fernandes*

Polícia fecha festa clandestina em São Paulo durante a pandemia de Covid-19 (CJPRESS/FOLHAPRESS)

A crise mundial causada pela Covid-19 tem impactos inegáveis pelas mais de 300 mil mortes ocorridas somente no Brasil. Não fossem suficientemente desafiadoras as questões médicas envolvidas, as exigências para seu enfrentamento tocam em um ponto central da democracia: a liberdade. Isso porque a restrição de circulação e reunião das pessoas é reconhecida como uma medida relevantíssima para evitar a propagação do vírus.

As dificuldades para dar cumprimento às medidas de isolamento social evidenciam os problemas de exercício da autoridade no Brasil. A autoridade se assenta em regras politicamente legitimadas, escritas em documentos legais, definições essas escassas no que se refere à manutenção de uma ordem social, que, no limite, performam as medidas restritivas contra a pandemia.

Essas questões passaram interditadas nas discussões no país, que não estabelece consensos que possam definir os limites entre autoridade e autoritarismo. Assim, tanto os decretos estaduais, que impõem regras para a circulação e reunião de pessoas, têm sua eficácia constantemente confrontada, o que requer o acionamento do Poder Judiciário, como os instrumentos colocados à disposição dos órgãos encarregados da vigilância mostram-se ineficientes.

As festas clandestinas têm ocupado o noticiário nos últimos dias. Nelas se vê as pessoas se encontrarem em bares, boates, cassinos (?!) e festas a céu aberto, contrariando as normativas legais de proibição da realização desses eventos, pois tais eventos impulsionam a transmissão comunitária do vírus causador da doença. Para dar conta das decisões de enfrentamento à pandemia, o estado tem empenhado seus órgãos dotados de poder fiscalizatório para que evitar que tais reuniões ocorram ou que sejam encerradas.

Em São Paulo, no campo da polícia ostensiva, a Polícia Militar vem atuando em três frentes. Na “Operação Toque de Restrição”, são utilizados os equipamentos de alto-falante instalados nas viaturas para buscar convencer a população a retornar a suas casas no período compreendido entre as oito horas da noite e cinco horas da manhã.

Além disso, em conjunto com outros órgãos, atua no fechamento de estabelecimentos que promovem tais encontros, a cujos responsáveis são impostas multas de acordo com o Código Sanitário de São Paulo, além de medidas criminais relativas aos crimes de desobediência (artigo 330 do Código Penal) e de infração a determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa (artigo 268 do Código Penal).

Aliado a isso, a “Operação Paz e Proteção” busca intervir em reuniões em espaços públicos, mediante critérios que atendam uma conjugação dos riscos envolvidos aos frequentadores e os ativos operacionais disponíveis para o atendimento da ocorrência. Aqui, a estratégia adotada é a ocupação do espaço mediante a obtenção de informações prévias da realização do evento, de forma a evitar que se realize.

Muitas reuniões sociais, que ora constituem problema de saúde pública, tornam-se, para o cotidiano de inúmeras pessoas, um problema cujo enfrentamento é dificultado, porque os órgãos policiais dispõem de mecanismos legais incompletos, o que dá conta de como a questão do que ora denomina-se “festas clandestinas” é um problema já existente em nossa sociedade.

No atual momento, o amparo legal e a concertação de esforços proporcionado pelas regras legais de enfrentamento à pandemia têm trazido algum avanço na governança sobre essa questão, mas que tende a esvair-se tão logo a crise sanitária diminua. Isso em razão da incapacidade normativa do Brasil em estabelecer regras claras, gerais e politicamente legitimadas no que se refere à gestão da ordem pública. Uma das evidências mais assombrosas é o crescente número de mortes em razão do descumprimento do isolamento social, mas, também, a incapacidade de que as medidas adotadas sejam amplamente cumpridas.

A despeito da sempre presente limitação de recursos para um atendimento mais amplo das medidas, levanta-se a questão da própria capacidade institucional de o estado exercer autoridade. A questão da regulação de festas, em espaços públicos ou não, apenas foi evidenciada com a pandemia.

Tomando por base uma determinada região da cidade de São Paulo, as ocorrências cadastradas como “perturbação do sossego público” são a terceira maior em número de chamadas de emergência no ano de 2020. Para o enfrentamento a essa questão, a maior amplitude de medidas sancionatórias, trazida pelo decreto estadual ligado à pandemia, com a imposição de multas pela Vigilância Sanitária, permitiu que a regulação dessa questão fosse mais eficaz que em relação às medidas penais vigentes até então, ainda que se mostrem insuficientes.

A título de exemplo de outras medidas adotadas contra a disseminação do vírus, países como o Chile e a Itália adotaram a expedição de autorização de circulação, com a imposição de multas e prisões. Tais medidas são sequer contempladas no portfólio de ações disponíveis aos tomadores de decisão. Medidas mais severas como essas não encontrariam ambiente político para suas discussões em razão da interdição que temas como esse ocorrem no Brasil.

Se, no transcurso de nossas vidas, os limites entre as liberdades individuais e a coletividade eram mediadas pela informalidade da atuação policial, sem maiores repercussões, agora, as questões de regulação da vida social fazem emergir tais problemas, pois, afinal, os fatos da vida social que acontecem nas franjas da sociedade impactam a todos, indistintamente.

Assim, que a dimensão dessa crise deixe como lição a necessidade inaugurar um debate que construa regras sobre o a gestão da vida social, sem a qual, nem se consegue se promover razoáveis níveis de harmonia social, nem se coíbem os excessos do nível de rua, de forma que, pela sua ausência ou pela sua potência, troquemos autoridade por autoritarismo.

*Alan Fernandes é Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo, doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Na edição desta semana, leia também “Vacinação dos profissionais de segurança pública: mais vacina, menos politização” e “Caso Henry Borel remete a um roteiro guardado em algum lugar do passado”.

 

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Em defesa da democracia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/em-defesa-da-democracia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/em-defesa-da-democracia/#respond Thu, 25 Mar 2021 14:46:55 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/faces25.03-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1701 Com a ascensão de um populista autoritário ao poder, nos defrontamos com o ameaçador emprego de dispositivos da Lei de Segurança Nacional incompatíveis com a Constituição de 1988. A estratégia é restringir e constranger a liberdade de expressão de críticos e opositores do atual governo

Belisário dos Santos Jr.*

Jose Carlos Dias**

Oscar Vilhena Vieira***

Passados mais de trinta anos do processo de transição do regime militar, a democracia brasileira paga neste momento um alto preço por não ter sido capaz de substituir a Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7170/83) por uma robusta legislação de proteção das instituições do Estado Democrático de Direito.

Com a ascensão de um populista autoritário ao poder, estamos nos defrontamos com o ameaçador emprego de alguns dispositivos da LSN – incompatíveis com a Constituição de 1988 – para restringir e constranger a liberdade de expressão de críticos e opositores do atual governo.

Na ausência de uma nova lei de proteção às instituições do Estado Democrático de Direito, no entanto, é prudente que sejam preservados aqueles dispositivos da velha lei que se demonstrem compatíveis com o sistema constitucional de 1988. De forma que os inimigos da democracia não se beneficiem de lacunas em nosso ordenamento jurídico para provocar a erosão de nossa constituição.

O emprego sistemático da Lei de Segurança Nacional pelo governo Bolsonaro, com o objetivo exclusivo de coagir e intimidar seus críticos e opositores, tem se tornado cada vez mais preocupante. Jornalistas, lideranças sociais, políticos e magistrados, como Ricardo Noblat, Helio Schwartzman, Rui Castro, Sonia Guajajara, Luiz Inácio Lula da Silva, Ciro Gomes e Gilmar Mendes são apenas alguns exemplos dessa determinação do governo de calar seus críticos, por intermédio da LSN. Mais grave, essa conduta da cúpula do governo federal tem inspirado atos difusos de repressão à liberdade de expressão em diversas partes do país.

Desde o início deste governo foram instaurados cerca de 80 inquéritos com base na LSN. Número imensamente superior à utilização dessa legislação pelos governos precedentes. Não se trata, entretanto, de um problema apenas quantitativo. Ao longo das últimas três décadas, a LSN, quando invocada, o foi, sobretudo, para combater crimes relacionados ao roubo ou tráfico de armas de uso privativo das Forças Armadas. O que muito se diferencia do modo como vem sendo empregada por esse governo, que visa apenas restringir um dos pilares essenciais do jogo democrático, que é a liberdade de expressão.

Embora guarde distinção em relação aos diplomas de segurança nacional que a precederam, a Lei 7170/83 ainda possui inúmeros pontos de tensão com a Constituição Federal de 1988. Chama a atenção a incompatibilidade entre os artigos 22 e 26 da indigitada LSN, que se referem a crimes de propaganda e opinião, e o regime de ampla liberdade de expressão estabelecido pelos artigos 5º, IV e IX, e 220, caput, da Constituição Federal.

O artigo 22 da Lei 7170/83 estabelece como crime o ato de “fazer, em público, propaganda”, entre outros, “de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”, sem estabelecer qualquer exigência de que essa “propaganda” possa ensejar “perigo real” às instituições do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, cria um ônus desproporcional à liberdade de expressão. A livre circulação de ideias, inclusive críticas ao regime e à ordem social, são parte essencial do núcleo de proteção da liberdade de expressão. O que ela não protege são atos de desestabilização e violência contra as instituições, que coloquem em risco a própria sobrevivência da democracia. Nesse sentido, o artigo 22, não se demostra compatível com o artigo 5º., IV e IX, da Constituição Federal.

O artigo 26 da LSN, por sua vez, estabelece como crime de segurança nacional: “Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. Há aqui um vício fundamental que torna o respectivo dispositivo incompatível com a Constituição de 1988. Ao dar primazia à proteção da honra objetiva e da reputação daqueles que ocupam a presidência dos poderes, em detrimento das próprias instituições, o referido dispositivo inibe o debate público e a possibilidade de crítica a agentes governamentais, sem com isso promover qualquer proteção às instituições do Estado Democrático de Direito. Ademais disso, havendo ânimo de ofender, o fato já é punido pelo Código Penal.

Como a recente experiência brasileira tem mostrado, esse dispositivo abre a possibilidade para que a liberdade de expressão possa ser constrangida, sendo, portanto, incompatível com o disposto no artigo 220, parágrafo 1º., da Constituição Federal, que determina que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de expressão.” Logo, deve ser declarado inconstitucional também.

Na função de guarda da Constituição, caberá ao Supremo Tribunal Federal, num futuro próximo, julgar a compatibilidade da LSN com o sistema constitucional estabelecido em 1988. Seu desafio será distinguir entre os dispositivos da LSN que foram recepcionados pela Constituição de 1988 e podem ser úteis na proteção das instituições do Estado Democrático de Direito, e aqueles ofendem a Constituição e têm sido amplamente empregados para restringir o regime de liberdade de expressão por ela adotado.

A Constituição não pode ser vista como um “pacto suicida”, como alertava o Juiz Robert Jackson, da Suprema Corte Norte Americana, em 1949. Suas instituições não só podem, como devem protegê-la daqueles que almejam a sua erosão.

 

*Advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas e da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns

**Advogado, ex-ministro da Justiça (FHC) e presidente da Comissão Arns

***Jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP e membro da Comissão Arns

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Na edição desta semana, leia também “RS Seguro mostra os bons resultados na gestão da segurança com visão social” e “A escalada das mudanças e seu impacto sobre as polícias de caráter civil”

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Eleições nos EUA: o papel das instituições de justiça e segurança https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/11/eleicoes-nos-eua-o-papel-das-instituicoes-de-justica-e-seguranca/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/11/11/eleicoes-nos-eua-o-papel-das-instituicoes-de-justica-e-seguranca/#respond Wed, 11 Nov 2020 13:00:44 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/11/casa-branca-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1571 Acusações contra o sistema eleitoral sofrem resistência de militares e são consideradas ilegítimas por tribunais de primeira instância. Donald Trump vai embora da Casa Branca, mas o trumpismo permanecerá sendo uma força no país

Elizabeth Leeds

Metade da população norte-americana, e na verdade, muitos amantes da democracia ao redor do mundo, manifestaram-se espontaneamente no sábado em uma grande e feliz celebração pacífica da vitória de Joe Biden e Kamala Harris nas eleições presidenciais dos Estados Unidos. Diferentemente do que foi previsto por muitos sobre a vitória esmagadora dos Democratas, ainda não oficialmente confirmada pelo Colégio Eleitoral, as eleições reuniram democratas tradicionais, grandes segmentos de eleitores de primeira viagem entre a crescente população latina, com exceção dos cubanos-americanos, a maioria, mas não todos os eleitores negros, ativistas LGBTQs e republicanos moderados que não se identificavam com as políticas de Trump. Enquanto ainda restam algumas cédulas eleitorais enviadas pelos correios e não contabilizadas, o consenso geral é que a vitória é inatacável. Devemos ter em mente, no entanto, onde estão as linhas de falha da política norte-americana e onde o retrocesso pode ou não diminuir o tamanho da vitória.

Durante os meses que antecederam as eleições, Trump utilizou suas usuais táticas e retórica disruptiva, ameaçando permanecer no poder e reivindicando que a eleição seria fraudulenta se os Democratas ganhassem. Encontrar apoio institucional para permanecer no poder, no entanto, tem sido um desafio para a administração Trump. As ameaças veladas de que empregaria as Forças Armadas para “restaurar a ordem” têm encontrado resistência entre os militares. O secretário de defesa Mike Esper se recusou em junho a enviar tropas para controlar os protestos contra a violência policial. Após divergências com o presidente, Mike Esper foi despedido na segunda-feira (9/11) por Trump. Resta saber se o seu substituto seguirá as ordens do atual presidente para perturbar as eleições. Da mesma forma, o general Mark Milley, presidente do Estado-Maior Conjunto de Trump, declarou claramente em outubro que as Forças Armadas não têm papel nas eleições americanas e que tem total confiança nas instituições americanas para administrar as disputas eleitorais. General Milley permanecerá até janeiro no governo?

Trump vê o Judiciário como uma alternativa para permanecer na presidência, mas aqui também tem encontrado resistência em razão de apoio limitado nos tribunais. Sua equipe jurídica apresentou inúmeras queixas de que as cédulas eleitorais enviadas por correio não deveriam ser contadas após o dia da eleição. São precisamente as cédulas de votação por correspondência que foram esmagadoramente favoráveis aos Democratas. Os tribunais de primeira de instância têm considerado estes pedidos como ilegítimos. O esforço de Trump para substituir a juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginzburg pela conservadora Amy Coney Barrett antes das eleições já era uma tentativa gritante de ter uma amiga na Corte caso perdesse a eleição. O resultado desses inúmeros processos ainda está para ser definido. Até o momento, a primeira instância do poder judiciário permaneceu independente.

Foi nas ruas de várias cidades que ainda contabilizavam votos nos dias após a eleição onde a polícia apresentou as respostas institucionais mais ambíguas. Reagindo a grupos adversários – “Pare a votação” (Stop the Count) vs “Cada voto importa” (Count Every Ballot), a polícia prendeu aqueles que alegava não estarem agindo pacificamente em Phoenix, Portland, Seattle, Philadelphia, Las Vegas, Detroit, Minneapolis, entre outras cidades dos Estados Unidos. É precisamente na emoção crua das manifestações de rua que o risco de escalada é maior, especialmente quando essas manifestações por uma causa específica são acompanhadas por ativistas de outros movimentos sociais. Essas manifestações pelo direito de voto em cidades norte-americanas foram frequentemente acompanhadas pelo movimento “Black Lives Matter”, por organizações LGBTQ, por grupos do movimento ambiental e outras causas que têm sido atacadas pela administração Trump. No caminho até 10 de dezembro, quando os votos do Colégio Eleitoral serão certificados, o risco de manifestações violentas e respostas policiais similares serão maiores se Trump tiver sucesso em interromper uma vitória de Biden através de uma ação judicial.

Aqueles que esperam um fim definitivo para a presidência de Trump estão plenamente conscientes de que mesmo que Trump parta, o Trumpismo, com todas as suas táticas disruptivas, políticas conservadoras e ideologia odiosa continuarão a ser uma força no país.

Elizabeth Leeds. Presidente de honra do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Pesquisadora Associada do Centro de Estudos Internacionais do MIT (Massachusetts Institute of Technology)

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Bolsonaro e o risco de um golpe policial https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-e-o-risco-de-um-golpe-policial/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-e-o-risco-de-um-golpe-policial/#respond Mon, 20 Apr 2020 20:54:44 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Bolsonaro-e-o-apoio-policial.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1386 Texto de autoria de Rafael Alcadipani*

Todas as vezes em que emerge um arroubo golpista de Jair Bolsonaro, há questionamentos se as Forças Armadas brasileiras bancariam uma aventura autoritária do Presidente. Porém, pouco se tem falado das polícias que, na prática, possuem um efetivo na ativa bem maior do que as próprias Forças Armadas e que, em larga medida, votaram e apoiaram com entusiasmo Bolsonaro nas últimas eleições. O que, em outras palavras, coloca-nos a questão se, a depender das condições políticas, os policiais se rebelariam contra a democracia e ajudariam o presidente a fechar o Congresso e o STF?

Vale relembrar que Bolsonaro utilizou quartéis da PM, unidades da Polícia Civil e da Polícia Federal como verdadeiros palanques. Inúmeros policiais utilizaram e utilizam as redes sociais para defender Bolsonaro e suas ideias. Diante de todo este explícito apoio, com a conivência dos comandos das polícias, a pergunta faz todo sentido. Porém, é preciso perguntar por que policiais apoiam em peso Bolsonaro. Tal apoio se deve a dois fatores principais. Primeiro, policiais se sentem incompreendidos e desconsiderados pela imprensa e pela sociedade em geral. Isso se alia a condições de trabalho extremamente desafiadoras e questões ligadas a baixa remuneração. Segundo, Bolsonaro tem um claro discurso de “bandido bom é bandido morto” algo que é implícita e explicitamente aceito por parte da sociedade brasileira e por policiais. Diante disso, será que este apoio se reverteria em uma sublevação policial pró golpe Bolsonarista?

Para responder a estas perguntas precisamos lembrar que temos várias polícias no Brasil com características próprias e especificidades tanto institucionais-operacionais quanto regionais. Da ditadura para os dias de hoje, todas as forças policiais se profissionalizaram e ficaram mais técnicas. Mas, a Polícia Federal é a polícia mais estruturada, organizada e técnica do país e o seu profissionalismo extremo tende a deixá-la mais longe de aventuras. Porém, o número de policiais federais é muito menor do que de policiais civis e de PMs e teria, sozinha, dificuldades para impedir um movimento golpista das demais instituições policiais.

Nos Estados, temos as Polícias Civis e Militares. As Polícias Civis possuem características culturais muito diferente das PMs. Além disso, elas foram sucateadas ao longo dos anos e hoje estão debilitadas tanto em termos de efetivo quanto de materiais. As Polícias Civis são comandadas por bacharéis em direito, o que lhes gera uma tendência de apoio a institucionalidade jurídica. Além disso, policiais civis tendem a ter uma mentalidade mais flexível e realizaram uma transição mais forte da ditadura para a democracia em suas práticas cotidianas. Na realidade, isso significa que tais instituições estariam menos propensas a seguir uma radicalização política na prática. Porém, o efetivo da Polícia Civil é quase 1/3 do efetivo das PMs.

O grande fiel da balança para um golpe pró-Bolsonaro está nas PMs, pois são as maiores forças policiais do país. Policiais em geral e as PMs em particular tendem a serem vistos de forma única pelas pessoas. A noção de PMs como pessoas pouco estudadas não se sustenta na realidade. Em muitos Estados do Brasil, PMs exigem um diploma universitário para o ingresso na carreira. Há inúmeros PMs graduados em direito, tanto nas praças quanto entre os oficiais. Há uma longa formação nas academias e a progressão na carreira depende de cursos. Os oficiais, em especial, tendem a ser muito bem preparados e capacitados.

Embora Bolsonaro personifique todos os estereótipos que os militares buscam evitar, a defesa do militarismo por Bolsonaro é muito bem-visto dentro das PMs. Mas, seus arroubos cada vez mais frequentes têm reduzido sua aceitação. A despeito dos inúmeros casos de abusos de PMs que surgem na mídia, as instituições possuem em seu curriculum disciplinas de Direitos Humanos. Além disso, a maioria dos milhões de atendimentos das PMs no Brasil não geram não conformidades. As PMs enfrentam um problema importante: a imagem dos PMs políticos eleitos que tendem a ser explícita ou implicitamente pró-Bolsonaro e contra os governadores estaduais colou nas instituições.

Além disso, a boa maioria dos parlamentares das PMs que são eleitos possuem um discurso em prol da violência e dos abusos policiais. Além disso, muitos PMs da reserva radicalizaram o discurso pró-Bolsonaro. A voz dos PMs radicais ecoa muito mais do que a voz dos moderados, principalmente nas mídias sociais. Os comandos das polícias são extremamente lenientes com as postagens radicais de seus policiais e isso afeta a imagem da instituição. Tudo isso gera a sensação de que as PMs fariam qualquer coisa para defender o “mito”. Mas, será?

Muitos oficiais da PM dizem que a “hierarquia e a disciplina são nossa maior virtude e nosso maior defeito”. Diante disso, PMs estariam dispostos a romper a hierarquia e a disciplina, pilares centrais da instituição, para uma aventura Bolsonarista? O rompimento da hierarquia e disciplina pode esfacelar uma organização militar e teria um efeito direto nos comandantes. Além disso, uma tentativa de golpe frustrado teria efeitos devastadores na reputação institucional das PMs e há poucas coisas que um PM respeita mais do que a própria instituição.

Outro ponto a se destacar é que PMs se percebem como pessoas que seguem as leis à risca e respeitam as instituições. Diante disso, é muito pouco provável que instituições policiais brasileiras apoiem uma aventura bolsonarista. A atual geração que comanda as polícias brasileiras ainda sofreu o rechaço social pela atuação de suas instituições na ditadura militar brasileira e sabem que o golpismo gera uma dívida histórica muito difícil de pagar.

Entretanto, nas polícias de nosso país há uma prevalência de questões psicológicas e psiquiátricas que muitas vezes são ignoradas ou negligenciadas. Por isso, há a possibilidade real de que “lobos solitários” extremamente radicalizados atuem em defesa de Bolsonaro de duas formas.

A primeira caso Bolsonaro proponha um golpe, estes elementos radicalizados podem tentar sublevar unidades policiais específicas a favor do Presidente. Muito possivelmente as próprias polícias resolveriam o problema. Mas, haveria uma grande repercussão. A segunda forma seria que algum indivíduo radicalizado e totalmente desequilibrado atentasse contra a vida de um governador, por exemplo. O próprio atentado contra Bolsonaro mostra o risco de um lobo solitário.

Anos de questões salariais e de negligência dos governos estaduais para com as polícias tem gerado tensões entre policiais e governantes. Bolsonaro explora isso muito bem. No atual momento, estas tensões podem aflorar e gerar repercussões desastrosas pela ação de um indivíduo. Se por um lado as nossas polícias tendem a ser garantidores de nossa democracia, por outro a facilidade com que as ideologias autoritárias navegam nestas instituições precisa ser combatida. Afinal, não é nada normal cogitar que polícias possam apoiar um Presidente golpista.

*Professor da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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