Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Morte de Ecko fortalece a expansão política miliciana https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/morte-de-ecko-fortalece-a-expansao-politica-miliciana/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/25/morte-de-ecko-fortalece-a-expansao-politica-miliciana/#respond Fri, 25 Jun 2021 15:27:01 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/ecko-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1802 Por trás da morte midiática do homem mais procurado pela polícia do Brasil está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento

José Cláudio Souza Alves*

O assassinato de Wellington da Silva Braga, o Ecko, em uma operação da Polícia Civil, no dia 12 de junho de 2021, representa mais um capítulo de uma guinada política da atuação policial pelo governo do estado do Rio de Janeiro em direção ao fortalecimento da estrutura miliciana que vem se expandindo de forma acelerada nos últimos anos. Por trás da morte midiática daquele que seria o homem mais procurado pela polícia do Brasil, e o líder da maior milícia do estado, está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento, como afirmado pelas autoridades policiais e pela mídia. Para entender isso, é preciso relacionar essa morte a uma sequência de eventos que se iniciaram em outubro de 2020.

Naquele momento, a um mês das eleições municipais, uma operação conjunta da Polícia Civil e Polícia Rodoviária Federal assassinou 17 pessoas, sob a justificativa de serem “narcomilicianos”. Esse termo passava a dar a tônica da atuação policial. Com ele, desvincula-se a atuação miliciana da ligação com os agentes de segurança pública, dentro do Estado, atribuindo-a às práticas de traficantes. A consequência seria a liberação para matar tais indivíduos, já que não passavam de bandidos. O marketing da ação policial “antimilícia”, ocultando o engajamento crescente dos policiais ao empreendimento miliciano, soma-se à lógica do “bandido bom é bandido morto”, tão cara à extrema direita, naquele momento, em plena campanha eleitoral.

O segundo evento foi a implantação de um destacamento do 39º Batalhão da Polícia Militar no Complexo do Roseiral, na cidade de Belford Roxo, em janeiro de 2021, a partir das articulações entre o prefeito reeleito, Wagner dos Santos Carneiro, e o governador Cláudio Castro. As mais de 20 mortes produzidas por operações policiais nessa área vitimando membros do Comando Vermelho (CV) se incluem na geopolítica de expansão das milícias, que há décadas dominam os bairros do São Bento e Pilar, na cidade vizinha de Duque de Caxias, seguindo o eixo da Avenida Leonel Brizola.

O terceiro momento surge na operação da Polícia Civil que assassinou 28 pessoas em uma operação na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Tal desproporcionalidade de mortes, quando comparadas ao histórico mais recente das operações na capital, relaciona-se tanto ao confronto com o STF e a ADPF que restringe operações policiais nas favelas, em decorrência dos efeitos da pandemia de Covid-19, como à disputa geopolítica miliciana que vem isolando o Jacarezinho a partir dos conflitos com o CV em três favelas próximas: Arará, Mandela 2 e Bandeira 2, as duas últimas, do Complexo de Manguinhos.

A morte de Ecko, a aproximadamente um mês da chacina do Jacarezinho, dá prosseguimento ao projeto em curso. A aliança entre milícia e Terceiro Comando Puro (TCP), tendo o aparato policial como fiador, perpetua-se, a despeito dos assassinatos de “narcomilicianos”, ligados ao TCP, presentes na Liga da Justiça ou ex-bonde do Ecko, numa espécie de “preço a ser pago” pela manutenção dos negócios e marketing “antimilícia” que tenta ocultar a expansão miliciana.

Há, igualmente, uma intensificação do controle territorial, econômico e político eleitoral feito pela milícia em cima das áreas do CV. Projeta-se um alinhamento midiático com o discurso do extermínio, praticado pela política de segurança pública, com destaque para as redes de televisão, notadamente o SBT, com sua penetração popular. Essa correlação de acontecimentos deixa nítida a estratégia política voltada para as eleições de 2022, nas quais os candidatos ao governo do estado, Câmara estadual e federal, Senado e Presidência da República, com projetos de extrema direita, visam aprofundar seus ganhos a partir das disputas entre si, engalfinhados para ocupar o palanque bolsonarista.

O cenário de aprofundamento do fosso social e crescimento do mundo do crime, como alternativa real frente à crise multidimensional que se estabelece, projeta a área de segurança pública como grande palco de operações psicológicas, sociais, midiáticas e assassinas cujo objetivo é consolidar uma hegemonia inconteste da extrema direita sob a batuta bolsonarista. A morte de Ecko, apenas mais um soldado transformado em chefão para justificar a lógica do extermínio como solução, tem, igualmente, uma outra dimensão, que não se pode desprezar. Ela abre um cenário de disputas, internas e externas à milícia, quanto à liderança e condução do legado miliciano na Zona Oeste e Baixada Fluminense que juntas congregam quase 50% do eleitorado do estado.

Danilo Dias Lima, o Tandera, emerge como novo “Lampião” a ser degolado, mas provoca instabilidade na disputa interna à milícia ao ser alçado, pela morte de Ecko, à categoria de novo “chefão” que enfrenta a resistência dos herdeiros familiares de Ecko, como é o caso de Luís Antônio da Silva Braga, seu irmão. Essa instabilidade da disputa interna miliciana se junta, por sua vez, ao risco da retomada, pelo CV, de áreas perdidas para a milícia, produzindo uma intensificação do terror nas comunidades em disputa, que são muitas. Esse agigantamento da onda de instabilidade e medo reforça o pano de fundo para a manutenção do extermínio como prática da segurança pública, retroalimentando mais operações e chacinas enquanto cortina de fumaça que oculta a expansão miliciana como projeto de controle de amplo espectro e, principalmente, político eleitoral.

Todos esses eventos projetam a milícia como grande palanque para 2022. Quem tiver mais milicianos ao seu lado, com controle territorial, econômico e político de áreas, sai na vantagem. Quem mais matar os “narcomilicianos”, troféus criados para as prateleiras da extrema direita, também ganha pontos. Quem soma as duas estratégias tem mais pontos ainda. Desse modo, o a região metropolitana do Rio de Janeiro mantém o seu papel de grande laboratório, repercutindo para o resto do país, dentro do projeto bolsonarista hegemônico, as novas etapas da “milicialização” da segurança pública.

 

*Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro “Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”.

 

Acompanhe as edições semanais integrais do Fonte Segura, a newsletter com dados e análises sobre segurança pública. Acesse: fontesegura.org.br

Na edição desta semana, leia também “O que nos ensina o Big Brother Policial que envolve a caçada a Lázaro Barbosa” e “Segurança Pública 4.0 : tecnologia e inovação no combate à criminalidade”.

 

]]>
0
A crise de segurança pública na Amazônia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/24/a-crise-de-seguranca-publica-na-amazonia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/06/24/a-crise-de-seguranca-publica-na-amazonia/#respond Thu, 24 Jun 2021 12:54:32 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/06/Amazônia-faces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1799 Cocaína entra no país pela Amazônia sem barreira física devido à falta de efetivo da Polícia Federal e pela ausência de policiamento específico de fronteira.

Mario Aufiero*

Há tempos, a falta de uma política de segurança para as fronteiras brasileiras, em especial a da Amazônia, vem caracterizando diversos problemas na segurança pública em dezenas de cidades amazônicas. Recentemente, todo o país assistiu às ações do crime organizado na cidade de Manaus, capital do maior estado da federação brasileira, o Amazonas, e em municípios vizinhos. Ataques a escolas, hospitais, ônibus, carros públicos e particulares foram realizados de forma coordenada pela facção criminosa que domina essa parte do território.

Vários especialistas na área de segurança pública como também diversos atores da segurança que vivem e trabalham nessas localidades já registraram que a droga, o cloridato de cocaína, entra em nosso país pela Amazônia, sem nenhuma barreira física ou do estado. Isso ocorre por falta de efetivo da Polícia Federal como também pela ausência de um policiamento específico de fronteira para Amazônia. Dessa forma, as facções conseguem garantir de forma fácil a entrada de entorpecentes no Brasil dentre outras atividades criminosas, apesar dos esforços das polícias estaduais em vigiar e combater esse tipo de criminalidade.

O que ocorreu em Manaus e nas cidades vizinhas na primeira semana de junho de 2021 foi uma demonstração de força do crime organizado contra o Estado, deixando milhares de pessoas com medo. Isso é inaceitável, mas deriva justamente da ausência de uma política nacional macro de segurança para a Amazônia.

Essa região do país é diferente de tudo que conhecemos no restante do Brasil. Logo, as políticas de segurança pública devem ser planejadas levando-se em conta as especificidades da região, pois suas características territoriais e sociais diferem do restante do país.

O próprio Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que já completou três anos e ainda não foi implementado, precisa ser revisto para trazer elementos especiais de tratamento para a segurança pública na Amazônia. Assim, poderia atender velhas demandas para a área de segurança para a região, especialmente em suas regiões de fronteira.

O policiamento de fronteira na região se faz necessário há décadas. Portanto, a União tem o dever, por meio do SUSP, de criar e amparar os estados e municípios amazônicos. No momento, o reduzido efetivo da Polícia Federal não é capaz de guardar as fronteiras amazônicas.

A União e os estados amazônicos devem incentivar os munícipios da Amazônia no desenvolvimento de planos municipais de segurança como meio de prevenção, controle e repressão da criminalidade. Para tanto, é necessário alocar recursos nos municípios para que possam integrar os esforços de provisão de segurança.

A questão social também tem que ser tratada de forma especial, com ações de prevenção à violência juvenil, além do foco nas famílias em situação de vulnerabilidade social. Sem uma visão completa do problema e de ações baseadas nas características amazônicas, a possibilidade de ocorrência de eventos semelhantes não deve ser descartada.

Portanto, este é o momento de a União, por meio da Secretaria Nacional de Justiça, desenvolver políticas concretas de segurança para a região levando em consideração as suas características e a voz de seu povo. Para tanto, uma política concreta para as fronteiras deve ser estabelecida, de modo a construir um sistema efetivo de proteção da Amazônia. O problema da segurança impacta diretamente na questão ambiental, pois sem instrumentos efetivos de aplicação da lei, tais problemas permanecerão em evidência.

Por fim, a população de Manaus e dos municípios vizinhos que sofreram recentemente com os ataques das organizações criminosas não deve mais ser penalizada pela ausência de uma política concreta para a região.

*Superintendente-geral do Centro de Estudos de Segurança da Amazônia- CESAM, mestre em Administração Pública com ênfase em Segurança Pública – FGV/EBAPE, doutorando em Função Social do Direito pela FADISP e delegado de polícia PC-AM.

Acompanhe as edições semanais integrais do Fonte Segura, a newsletter com dados e análises sobre segurança pública. Acesse: fontesegura.org.br

Na edição desta semana, leia também “Máquina de moer gente negra” e “O invisível assédio nosso de todos os dias“.

]]>
0
No Brasil, segurança pública amplia, promove e expande o crime e a violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/01/18/no-brasil-seguranca-publica-amplia-promove-e-expande-o-crime-e-a-violencia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/01/18/no-brasil-seguranca-publica-amplia-promove-e-expande-o-crime-e-a-violencia/#respond Sat, 18 Jan 2020 20:08:36 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/Folha-27-de-fevereiro-2018-Danilo-Vespa-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1267 Por Raul Jungmann

Tivemos sete constituições e, em nenhuma delas, o governo central deteve responsabilidades com a segurança pública – desde a primeira de 1824, até a última de 1988. Entre nós, foram as províncias no Império e os estados na República os responsáveis por ela, donde o secular “federalismo acéfalo” em matéria de segurança pública. Estado algum, por óbvio, teve ou tem poderes ou recursos para definir e implantar um sistema nacional ou uma política nacional de segurança. Portanto, nunca tivemos nem sistema, nem política, até o advento do SUSP  em 2018 no governo Temer. Tivemos, sim, planos de segurança pública, vários, cuja duração era a mesma do ministro que os desenhou no cargo.

O artigo 144 da atual Constituição, que dispõe sobre a estrutura da área, diz que “segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”. Em seguida, passa a elencar os órgãos que são por ela responsáveis, sendo apenas dois no âmbito federal, a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Uma, a PF, cuida de alguns tipos penais. Outra, a PRF, da fiscalização das rodovias federais.

Em decorrência, o peso da segurança pública é dos estados, que respondem por 81% do gasto total, o governo federal 12% e os municípios o restante. Destaque-se que todas as áreas sociais constantes da Carta de 88 – educação, saúde, previdência, assistência social, esportes, cultura – se constituíram em sistemas, liderados e compartilhados pelo governo federal e se organizam em ministérios. Menos a segurança pública, que afora os 11 meses de existência do Ministério da Segurança, jamais teve nível ministerial exclusivo na administração pública federal em toda nossa história.

Dessa “acefalia” resultam problemas e disfunções graves, das quais a ausência de uma base de dados nacional não é das menores. Como não possui competências constitucionais na segurança, as informações e dados são exclusivamente gerados pelos estados. Até a edição do SUSP, não era obrigatório o repasse e consolidação destas informações pelo Ministério da Justiça e da Segurança. Cabe então a pergunta: como desenhar políticas públicas, de segurança ou qualquer outra, sem dados? Como definir diretrizes, objetivos, metas e, em especial, aferir resultados e custo benefício dos recursos alocados?

A primeira iniciativa federal na área da segurança se dá apenas em 1995, com a criação da Seplanseg, no governo FHC. No governo Lula foi criado o SINESP, um complexo e caro sistema de informações que até 2018 não era capaz de produzir informações nacionais consistentes, porque os estados ou não mandavam os dados ou não aceitavam os critérios de classificação das ocorrências. Enquanto a “acefalia federativa” se perpetuava, o crime organizado se nacionalizava e internacionalizava. Das mais de 70 facções do crime organizado existentes e de base prisional (elas foram criadas no seu interior), ao menos meia dúzia delas são nacionais e avançam em países vizinhos, a exemplo do PCC, atualmente organizado na Bolívia, Paraguai, Peru, Colômbia e Venezuela, além de ser detectado nos EUA. Esse quadro é agravado pelo domínio e controle das facções criminosas do sistema prisional brasileiro.

Das cerca de 1.500 unidades prisionais brasileiras, sua larga maioria encontra-se em mãos do crime organizado. Dramaticamente saturadas, cerca de dois apenados para cada vaga em média, temos a 3ª maior população prisional do mundo, mais de 812.000, nossas prisões são o centro de recrutamento das facções, pela brutal razão que o Estado não garante a vida dos que lá estão. Aqueles então, apenados, buscam segurança nas facções que, em troca de proteção, exigem a subserviência sob pena de morte aos seus associados.

A população carcerária, composta majoritariamente de jovens (cerca de 53%), negros (63%), com baixa escolaridade, não tem acesso a escolarização (90%) ou a qualquer formação profissional ou laboral (82%), cresceu 200% nos últimos 8 anos – e o crime organizado, inexoravelmente, cresce com ela. Mais presos, mais soldados do crime que, de volta às ruas, com poucas chances de reinserção social e presos ao juramento de obediência das facções, vão alimentar a violência nas nossas cidades.

A sociedade, que se sente vulnerável e indefesa, a política e a mídia evitam se dar conta desse ciclo da violência. Ciclo que passa pela juventude das periferias e o sistema prisional, ambos opacos, e cujo foco se dá exclusivamente sobre a violência nas ruas, a exigir mais e mais repressão, e nunca em termos das suas raízes e efeitos que repõem, ampliando, a violência preexistente. Tais raízes e efeitos se encontram na juventude, principalmente negros e na faixa dos 15 aos 24 anos, que têm duas vezes mais riscos de serem mortos de forma violenta, e/ou irem parar no sistema prisional. São eles que sem futuro, nas periferias, vivendo em famílias desestruturadas, vulneráveis, ingressam no nosso sistema prisional, órgão central de “recrutamento para as facções”, sem que antes se lhes tenham dado uma chance de uma vida social e produtiva digna.

Nosso debate nacional para por aí, na repressão: mais polícias, mais armas, mais veículos, penas mais duras etc. O debate e as políticas sobre prevenção social orientada para juventude das periferias ou para a reforma do sistema prisional inexistem, estão interditados. Idem uma nova política de drogas que diferencie os traficantes e usuários sem passado penal, que despejados no nosso sistema prisional são recrutados pelo crime organizado. Uma política nacional de segurança integral começa na prevenção social, passa pela repressão qualificada e não pode desviar os olhos da calamidade que é nosso sistema prisional, que prende muito e prende mal – 48% dos crimes são por furto, roubo ou receptação e apenas 12% por homicídios.

Diante disso, a polêmica sobre quem tem o crédito pela queda dos homicídios é pobre e desnecessária. Ela se inicia em 2018 (ano eleitoral e,e sabiam os governadores, a segurança seria decisiva) e segue caindo em 2019. Porém, o protagonismo não é do governo federal, anterior ou atual, é dos estados. São eles, como já dito, os responsáveis constitucionalmente pela segurança pública, os que arcam com a quase totalidade dos gastos e os que têm os instrumentos adequados, polícia civil e militar. E o que é definitivo: o governo federal e a justiça federal, não cuidam dos homicídios; mais uma vez, isso é responsabilidade da justiça e da segurança estadual.

Na nossa gestão colaboramos, sem dúvida, para a queda dos homicídios. Com ações como o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), a criação de um sistema nacional e política nacional de segurança, que nunca tivemos anteriormente. Como, ainda, a vinculação de recursos das loterias da Caixa Econômica Federal ao Fundo Nacional de Segurança, a alocação de 90 milhões de reais ao Conselho Nacional de Justiça para a digitalização dos dois milhões de processos da justiça penal no país, idem a biometria de toda a população carcerária; a criação da Coordenação de Combate ao Crime organizado na PF; concursos de pessoal para a PRF e PF; ações nacionais com todas as polícias estaduais no combate à pedofilia, feminicídio  e homicídios; uma primeira política nacional voltada para prover trabalho para egressos; recursos destinados à Força Aérea Brasileira para fechar o espaço aéreo na fronteira para o tráfico com a Bolívia e Paraguai e para a Marinha monitorar a Baía da Guanabara e o Exército instalar um centro de treinamento para as polícias no DF, dentre outras ações.

São, sem dúvida, fundamentos para evoluirmos na redução da violência e defesa da vida. Necessários, mas não suficientes, pois carecemos de uma urgente implantação do SUSP nos estados e municípios, de debate e novas políticas nacionais de drogas, reforma do sistema prisional e prevenção social. Esta, orientada para a juventude, e uma repressão qualificada, com polícias isentas de corrupção e interferência política, idem qualidade de vida e autoestima.

O Brasil tem cerca de 2,7% da população mundial e responde por aproximadamente 11% das mortes violentas do planeta. A atual queda dos homicídios não será sustentável se perpetuarmos um sistema de segurança pública centrado exclusivamente na repressão e que alimenta e promove, quando não se associa, ao crime organizado, favorecendo a violência.

*Ex-Ministro da Reforma Agrária, Defesa e Segurança Pública

]]>
0
Estudo da ONU traz dados que desmitificam a retórica da ‘guerra contra o crime’ no Brasil https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/07/21/estudo-da-onu-traz-dados-que-desmitificam-a-retorica-da-guerra-contra-o-crime-no-brasil/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/07/21/estudo-da-onu-traz-dados-que-desmitificam-a-retorica-da-guerra-contra-o-crime-no-brasil/#respond Sun, 21 Jul 2019 15:34:08 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/07/Avener-Prado-RN-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=984 Teve pouco destaque no Brasil o lançamento, no último dia 8, do estudo global do Escritório das Nações Unidas para Crime e Drogas – UNODC sobre homicídios. Segundo o levantamento, o número total de pessoas vítimas de um homicídio no aumentou de 395,542 em 1992 para 464.000 em 2017.

No entanto, como houve crescimento populacional maior que o de vítimas de homicídio registrados no período, o risco de ser morto em homicídios diminuiu. Isso fez com que a taxa global de homicídios, por 100.000 pessoas, declinasse de 7,2 em 1992, para 6,1, em 2017. O mundo observa uma redução no números de homicídios e isso precisa ser explicitado, já que vai contra o senso comum e atrapalha os discursos populistas estruturados a partir do medo e do pânico.

Redução que, no Brasil, vem sendo observada desde 2018 e que indica que estamos diante de um fenômeno bem mais amplo do que o discurso valente de ocasião de algumas autoridades e políticos que tentam pegar carona e receber os dividendos desta queda. É necessário monitorar tendências e analisar diversas variáveis antes de acharmos que governo A ou governo B; polícia C ou polícia D são a grande causa da redução (ou do crescimento) do crime e da violência. Estamos diante de um fenômeno bem mais complexo do que o debate polarizado, volátil e efêmero sugere.

E isso é agravado pela forma opaca com que ainda lidamos com dados sobre violência no país. Quem se dedica ao monitoramento de dados precisa ou compilar e padronizar diversas informações ou se contentar com retratos parciais que emergem da boa vontade de alguns dirigentes. Quem cobra transparência ainda é visto como inimigo.

Por certo transparência e informações fidedignas são inimigas dos pensamentos mágicos que voltaram a povoar o Ocidente e que agora mobilizam multidões em novas cruzadas morais que visam conquistar territórios culturais e aniquilar o pluralismo democrático e civilizatório (sim, pluralismo deve ser fundado em valores universais conquistados depois dos horrores de guerras e do sangue de milhões de vítimas da violência). Líderes populistas estressam as instituições e a sociedade com diversionismos absurdos e, sorrateiramente, vão impondo suas agendas e interesses.

A metralhadora verbal de Bolsonaro esta semana é exemplo de que ele está, a meu ver, seguindo um roteiro minuciosamente planejamento para desviar a atenção da opinião pública e garantir que suas ações reais se consolidem, como o decreto das armas de fogo ou o terraplanismo ambiental que seu governo tem implementado. Estamos errando feio na forma como lidamos com o que julgamos devaneios do Presidente mas que são, de fato, ações políticas coordenadas e que visam a fins específicos.

Mas os erros não são apenas políticos. Quando observamos o Estudo Global sobre Homicídios, do UNODC, um dado chama atenção para o fosso entre o que é percebido e o que é realidade na segurança pública. Segundo o UNODC, há condições de afirmar que o crime organizado é responsável por 19% de todos os homicídios do mundo. Ou seja, de cada 5 homicídios cometidos no mundo todo, em 2017, apenas 1 foi causado pelo crime organizado.

E, como no Brasil não temos sistemas de dados criminais transparentes e detalhados de cada crime ou morte cometida, quase todo o debate sobre segurança é debitado na conta das organizações criminosas (ORCRIM), midiaticamente conhecidas como facções.

Muitas autoridades públicas, quando questionadas sobre razões para o movimento da criminalidade, não pensam duas vezes em atribuir às ORCRIM a primazia para a explicação da violência. No imaginário coletivo do país, são tais organizações as vilãs que justificam pacotes “anticrime” e de combate à corrupção que sustentam o discurso do medo e a defesa de padrões de enfrentamento ao estilo “atirar na cabecinha” e/ou “só matando”.

Sim, elas são um enorme problema para o Poder Público, colocam milhões de pessoas no meio do fogo cruzado e as fazem reféns pelo domínio e controle territorial (aliás, neste processo, são muito parecidas com a Milícias). Elas também caçam policiais como em um vendeta, sem que o Estado consiga colocar um fim no poder das facções e das milícias.

Enquanto ficarmos com discursos pueris e diversionistas, que visam mais os interesses políticos e de poder de algumas pessoas e instituições, não será possível avançarmos em estratégias para fazer do país uma nação civilizada menos violenta e valorizarmos os profissionais da área. Hoje, estamos falhando no combate das ORCRIM e das milícias; estamos também minimizando o crescimento da violência contra a mulher e dos conflitos interpessoais. E não estamos falando dos padrões de trabalho que provocam taxas de suicídios policiais muito maiores do que a da população em geral.

A segurança pública é condição para o exercício pleno da cidadania (caput do Art. 5o. da Constituição Federal) e não pode ficar refém seja do crime organizado, das milícias e/ou de líderes com causas pré-iluministas e projetos medievais de poder. Em suma, a violência precisa ser encarada de frente pelas políticas públicas, seja ela cometida por quem for. Uma nação forte e verdadeiramente democrática não pode aceitar a violência ou ter malvados de estimação.

 

 

 

 

 

 

 

 

]]>
0
Pacote de Sergio Moro pode gerar um custo adicional com presos de R$ 44,4 bilhões anuais https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/06/pacote-de-sergio-moro-pode-gerar-um-custo-adicional-com-presos-de-r-444-bilhoes-anuais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/04/06/pacote-de-sergio-moro-pode-gerar-um-custo-adicional-com-presos-de-r-444-bilhoes-anuais/#respond Sat, 06 Apr 2019 23:12:23 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/04/presos-de-faccoes-rivais-entram-em-confronto-no-patio-da-penitenciaria-de-alcacuz-no-rio-grande-do-norte-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=744 Informação e conhecimento são insumos fundamentais para que o poder público possa exercer suas “capacidades estatais”, entre elas estão a capacidade política, a capacidade relacional, burocrática, coercitiva, fiscal e regulatória. Em contextos democráticos, a ideia de accountability, que se traduz na possibilidade de controle, participação e transparência é que estrutura o desenho e a implementação de políticas públicas. Sem informações de qualidade é quase impossível planejar ações eficientes e que não só economizem recursos públicos escassos mas valorize a vida, a cidadania e a prevenção da violência.

E é por isso que tenho chamado a atenção para a fragilidade das evidências contidas nas propostas do pacote de medidas legislativas do Ministro Sergio Moro. Por mais experientes que sejamos, só o planejamento detalhado, com estudos de impacto e custos, fará a diferença entre um projeto “dar certo” e atingir seus objetivos ou cair na vala comum de ações bem-intencionadas porém pouco efetivas.

Por esse raciocínio, vale destacar que quase todas as operações de empréstimos internacionais em curso na área da segurança pública, que têm como parceiros os bancos e organismos multilaterais, como BID, Banco Mundial, CAF, OCDE, entre outras agências, utilizam técnicas econométricas de estimação de custo-benefício para analisar se um projeto deve ou não ser apoiado. As regras de boa governança do sistema financeiro não aceitam que sejam feitos empréstimos ou investimentos sem se estimar se o projeto pretendido terá um retorno econômico ou social maior do que se irá gastar.

E, entre as referências utilizadas por estes estudos, existem dois estudos feitos em 1994 e 1998 por Peter Greenwood e coautores, quando os EUA estavam planejando endurecer suas leis penais para reincidentes, naquilo que ficou conhecido como leis “Three Strikes and You’re Out (três faltas e você está fora)”, que tiveram esta expressão inspirada do beisebol, em que um batedor contra o qual três faltas são registradas é eliminado.

Os estudos visaram a analise do impacto de tais leis na justiça criminal para adultos e na justiça juvenil, para adolescentes, bem como no sistema prisional. Elas aumentaram significativamente as sentenças de prisão de pessoas condenadas por um crime que foi anteriormente condenado por dois ou mais crimes violentos ou crimes graves, e limita a capacidade desses infratores para receber uma punição que não seja uma sentença de prisão perpétua.

A partir desses estudos, cientificamente validados, as avaliações de impacto passaram a contar com uma baliza de cálculo que pode ser usada para diferentes contextos e países, incluindo o Brasil, que ainda não tem o hábito de monitorar e avaliar políticas públicas de segurança com rigor metodológico e científico. Existem avaliações, mas pontuais e dependentes do tomador de decisão na ponta de cada projeto.

Mas, diante deste fato, sempre ficava as questões sobre o por quê deveríamos usar os parâmetros estabelecidos para a Califórnia em 1994 para o Brasil e/ou se existem variações entre os diferentes contextos culturais?

Para responder estas perguntas, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, fez um pesquisa piloto até agora inédita em um presídio no Ceará, em 2017, que teve como objetivo realizar uma exploração do campo, visando caracterizar o perfil criminal. Mesmo com todas as limitações metodológicas, que não permitem uma generalização completa, os resultados nos mostram algumas pontos que chamam atenção e que servem para o debate atual. Eles servem para estimular que o Congresso encomende estudos ao TCU e/ou institutos independentes antes de votar as medidas.

Enquanto nos EUA, as carreiras no crime tinham, em média, 9,29 anos entre o primeiro crime e a última prisão, no Brasil este número cai para 8,01. Significa dizer que, no nosso caso, os delinquentes estão sendo presos antes, talvez como resultado das prisões provisórias que atingem quase 35% no país e superam os 50% em várias Unidades da Federação – as altas taxas de mortes violentas intencionais e a média de esclarecimentos de crimes seriam outras explicações.

Já nos EUA, cada criminoso havia cometido 49,64 crimes sérios violentos em sua carreira na delinquência (jovem e adulta). No Brasil, a pesquisa piloto indica que seriam 15,59 os crimes sérios cometidos ao longo dos 8,01 anos de carreira. Ou seja, em média, os criminosos reincidentes brasileiros cometeriam o equivalente a 31% dos crimes cometidos pelos seus pares dos EUA.

Na medida em que o pacote do ministro Sergio Moro prevê, exatamente, replicar o endurecimento penal da legislação dos EUA, vale olhar para a experiência norte-americana e o número de presos nos dois países e usá-los para uma primeira aproximação sobre os impactos econômicos envolvidos.

Por este raciocínio, temos que primeiro olhar o tamanho das duas populações prisionais. Nos EUA, são cerca de 2,3 milhões. No Brasil, segundo o Conselho Nacional de Justiça, temos cerca de 760 mil presos. Dito de outra forma, temos, em números absolutos, cerca de 1/3 da população prisional dos Estados Unidos.

Assim, caso adotássemos o mesmo princípio da legislação Three Strikes and You’re Out e considerando que aqui os reincidentes criminais são presos antes, é possível supor que no médio prazo atingiríamos e, mesmo, superaríamos os patamares de presos dos EUA.

Essa é uma decisão que o Congresso terá que tomar. Mas, ao mesmo tempo, é válido considerar que o Brasil gasta cerca de R$ 2,4 mil mensais com cada preso. Se a ideia é seguir os EUA, o país teria de gastar R$ 3,7 bilhões de reais a mais todos os meses para manter uma população prisional similar à norte-americana já que a proposta é adotar uma legislação similar.

Como resultado, ao final de cada ano, se a legislação proposta gerar um número de presos equivalente ao dos EUA, o Brasil terá que gastar R$ 44,4 bilhões de reais a mais apenas para manter sua população prisional – nesse valor não são considerados os investimentos na construção das novas unidades que seriam necessárias para acomodar tal aumento da população penitenciária nacional.

E, como o pacote não fala nada de governança do sistema prisional ou de alternativas penais, bem como não toca na legislação que permite que muitos fiquem presos por crimes que poderiam ser sancionados com outras punições (drogas, etc), não é possível deduzir recursos que seriam economizados com medidas de modernização da gestão penitenciária e/ou da priorização da prisão de criminosos violentos.

Seja como for, temos esse dinheiro, ainda mais em um cenário de constrangimento fiscal? Queremos gasta-lo desta forma? Teremos que tirar dinheiro das polícias, da saúde ou da educação? Independentemente das respostas a essas questões, já que o modelo que está servindo de exemplo é o dos EUA, seria fundamental repetirmos o cuidado que eles tomaram ao encomendar estudos de impacto e custos antes de aprovar a leis.

Por certo que as estimativas aqui são aproximadas e precisariam ser validadas por estudos tecnicamente robustos. Porém, meu objetivo foi o de mostrar a importância de não pensarmos políticas públicas de forma estanque e sob o prisma ideológico. Aproveitando que o Ministro Sergio Moro publicou em sua conta no Twitter que a “transparência é a nossa regra, sigilo é exceção”, vale aprofundar a análise dos impactos e construirmos, juntos, um país mais seguro e cidadão.

Atualização 07/04/2019:

Após a publicação do texto original, recebi a informação de que, se compararmos com a proposta de reforma da previdência enviada ao Congresso pelo Ministro Paulo Guedes, o gasto estimado com base na população prisional dos EUA feito acima representa quase 42% da economia que seria gerada em 10 anos com a aprovação da reforma da previdência. Segundo previsão do Ministério da Economia, a estimativa de economia de recursos após 10 anos de aprovação da Reforma seria de R$ 1,072 trilhão. Se, em 10 anos, o gasto com prisões atingir R$ 444,4 bilhões, 41,45% da economia gerada com as novas regras aposentadorias seria utilizada na manutenção do sistema prisional.

E, para concluir, se o impacto da legislação seguir o padrão de crescimento carcerário dos EUA, cujas leis inspiram o projeto do Governo, ainda teríamos que encontrar recursos para construir 1.026 novas unidades prisionais, com 1.500 vagas cada uma, sem contar o déficit de vagas atual. Se o custo aproximado de cada prisão é de R$ 36 milhões, teríamos que encontrar ao menos outros R$ 36,9 bilhões para a construção dessas unidades. No total, o Brasil precisaria investir R$ 481,3 bilhões no seu sistema carcerário em 10 anos caso as projeções aqui contidas sejam confirmadas (não temos dados desagregados para estimar com exatidão o prazo em que e se chegaríamos nesta quantia, mas diante da crise fiscal, é improvável que tenhamos esses recursos e o quadro de superpopulação carcerária tende a se agravar).

PS: Prova de que estudos de impacto são regra em países mais desenvolvidos, o Parlamento Inglês encomenda projeções da população prisional para anos futuros. Esse modelo poderia ser utilizado aqui no Brasil.

]]>
0
Somos todos, sociedade e Estado, sócios do crime organizado https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/15/somos-todos-sociedade-e-estado-socios-do-crime-organizado/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/01/15/somos-todos-sociedade-e-estado-socios-do-crime-organizado/#respond Tue, 15 Jan 2019 10:48:50 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/01/15173423215a70ce7191940_1517342321_3x2_rt-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=567 Por Raul Jungmann. Ex-titular dos ministérios da Segurança Pública e da Defesa do Brasil.

Somos todos, sociedade e Estado, sócios do crime organizado. Nós, sociedade, por interditarmos todo e qualquer debate sobre a questão prisional e, não sendo possível a eliminação pura e simples dos bandidos, exigirmos a prisão de todos, indistintamente e para sempre.

Já o Estado, ao não garantir a vida dos apenados no interior das prisões, tão pouco assegurar o que a lei determina, as condições da sua ressocialização, permite o controle do sistema prisional pelas facções criminosas e sua reprodução desde dentro do sistema, comandando daí a criminalidade nas ruas.

A construção desse paradoxo se dá, faticamente, por termos a terceira população carcerária do mundo, com mais de 720 mil apenados, que cresce na ordem de 8.3% ao ano – será uma Porto Alegre em 2025, algo como 1,5 milhão de pessoas -, constituída de jovens de 18 a 29 anos, que representam hoje 75% dos presos. Aos quais a apenas 12% se oferece educação e trabalho a 15% deles.

Esse grave quadro se deteriora ainda mais quando se verifica que o sistema prisional tem um déficit de 358 mil vagas, já que conta com apenas 368 mil vagas disponíveis, e que os mandados de prisão em aberto já somam mais de meio milhão e crescem geometricamente.

Para que se tenha ideia dos custos necessários para cobrir o déficit do sistema e seu crescimento anual mais sua manutenção, seriam necessários algo em torno de R$ 50 bilhões, o que, diga-se, é insustentável tanto econômica, quanto fiscal ou orçamentariamente.

Pois bem, nada disso é parte do debate nacional sobre a segurança pública. Neste, em todos os níveis, os atores e agentes públicos e políticos, debruçam-se sobre a violência nas ruas, com as exceções de praxe.

Sem negar a urgência e a importância de soluções para a violência cotidiana – os assaltos, homicídios, sequestros, balas perdidas etc. Tão pouco minimizar as medidas legislativas, materiais e operacionais para enfrentá-la, resta cristalino que as ruas e o sistema prisional são faces complementares de um só problema.

Porém, esse diagnóstico é interditado por dois motivos:

O primeiro deles é que uma população com crônico déficit de segurança, exposta à violência e indefesa, por um lado deseja que tirem os bandidos das ruas por quaisquer meios e, de outro, execra e mesmo se dispõe a linchar midiática e politicamente quem propuser trazer a questão prisional a debate. Quem o fizer, será sancionado duramente como associado ou defensor de bandidos.

O segundo motivo, é que o poder público, premido pela escassez de recursos e por imensas demandas sociais reprimidas, inclusive por mais e melhor segurança nas ruas, subdimensiona, quando não colapsa, o orçamento e a manutenção das prisões, ao ponto de transformá-las em depósitos de presos.

A degradação do sistema chega a tal ponto que os governos estaduais responsáveis pelo sistema, para evitar explosões e crises, fazem um pacto não escrito com o crime, entregando, na prática, as unidades prisionais às facções. Fruto dessa “aliança”, o sistema prisional, que é estatal, se aliena da sua responsabilidade pelas unidades e vida dos apenados, é ´capturado e se torna sócio do crime organizado… E aqui chegamos ao coração das trevas.

Indefesa, a sociedade cobrará do Estado que trate o criminoso como não detentor de quaisquer direitos, dignidade ou humanidade – ainda que residuais. Já o Estado, em contrapartida, se subtrairá das responsabilidades para com apenados e o sistema prisional, cedendo o seu controle ao crime organizado sob a forma das facções de base prisional.

Nesse ponto, opera-se uma transformação funcional de todo o sistema, e por extensão da própria justiça penal, dado que de parte administrativa desta e locus da ressocialização dos delituosos, o sistema prisional passa a ser parte da reprodução ampliada do crime organizado e, em decorrência, da violência e da insegurança gerais- inclusive das ruas.

Aos incrédulos, cito dois exemplos. Em 33 vistorias realizadas em sete estados pelas Forças Armadas, em 2017, foram encontradas 11 mil armas para um total de 22 mil presos, portanto, um em cada dois dispunham de armas brancas, quase sempre. Ora, como isso seria possível sem a anuência dos que controlam o sistema? Além das armas, foram encontrados rádios-base, celulares, drogas, duchas, televisores e o que mais se imaginar, evidenciando o descontrole e a corrupção existentes.

Segundo exemplo: a atual crise por que passa o Ceará. Transformado em hub ou corredor de tráfico de drogas para o Caribe por via marítima, o estado viu e permitiu crescerem as facções, tanto nacionais como locais que, como sempre, de dentro das prisões passaram a controlar o crime nas ruas. Quando o atual governo estadual decidiu iniciar a retomada do controle dos presídios, cadeias e penitenciárias, de dentro destas partiu o salve (ordem) para o confronto com o Estado, via atos de terrorismo.

Tem sido assim pelo menos desde 2006, quando o PCC paralisou São Paulo por conta da transferência do seu comando para a penitenciária de Presidente Venceslau, sem poupar praticamente nenhum estado; seja em espasmos de violência interna, as chacinas ou atos de externos de confronto com o poder público, quando os interesses estratégicos do crime organizado de base prisional são atingidos ou ameaçados.

Este estado de coisas levou o STF, em 2015, a uma decisão inédita. A de declarar o sistema prisional brasileiro em estado de inconstitucionalidade, pelo descumprimento reiterado da Constituição, a exemplo do inciso XLIX do artigo 5o, que assegura ao preso a sua incolumidade física e moral, idem a Lei de Execução Penal.

Enfrentar e mudar esse estado de coisas exige visão estratégica, planejamento e coordenação. Entendo que, sem ser exaustivo, são quatro os eixos de uma política consequente para o sistema prisional: prevenção social dirigida a juventude, em especial na faixa dos 15 aos 24 anos; repressão qualificada; reforma do sistema prisional e da política de drogas; e mudanças na orientação para o encarceramento.

Está na juventude, sobretudo das periferias, o motor da nossa tragédia de violência e insegurança. E isso é fácil de constatar: aproximadamente três em cada quatro dos que estão nas cadeias e penitenciárias são jovens, negros ou pardos, com pouca escolaridade, baixa renda e família desestruturada. Dai que é incontornável a coordenação de ações de educação, cultura, esportes, saúde, qualificação e assistência social focadas nesse grupo social.

A repressão qualificada atua com base sobretudo com base na inteligencia policial, voltada para o crime organizado, seus líderes e circuitos financeiros, que ditam a dinâmica da criminalidade e da violência nas ruas.

A reforma do sistema prisional, passa pela revisão da legislação que rege a construção, gestão e manutenção dos presídios e penitenciárias. Qualificação do pessoal especializado na sua operação e ampliação das unidades do semiaberto, da monitoração eletrônica e das centrais de penas alternativas. Imprescindível, é a organização de atividades educativas e laborais com cobertura universal, sem o que a função ressocialização do sistema simplesmente não existe. Por fim, uma política de reinserção dos egressos, pois sem ela a taxa de recaída no crime e reincidência permanecerá alta – entre 40 e 70% segundo pesquisas acadêmicas.

Na questão das drogas, é urgente a definição de um claro limite quantitativo que estabeleça uma distinção segura entre o traficante e o usuário. Essa definição, que se encontra nas mãos do STF, irá minimizar o envio massivo de jovens usuários de drogas para o regime fechado pelos juízes das varas penais, onde, para não morrer, eles terão que jurar fidelidade as facções, tornando-se parte do seu exército.

É necessário, ainda, dar prioridade no regime fechado aos delitos de maior impacto, a exemplo dos tráfico de drogas, homicídios, outros crimes hediondos, crime organizado e similares. Já os demais, de baixo impacto, devem ser objeto de medidas cautelares, privativas de direitos, regime semiaberto, monitoramento ou domiciliar. Sem essa priorização, continuaremos prendendo muito e prendendo mal, no dizer o ministro Alexandre Moraes.

Da nossa parte, nos dez meses de existência do Ministério da Segurança Pública, colocamos em prática diversas medidas na direção das política e ações acima propostas. A exemplo de uma política nacional de trabalho e renda para egressos do sistema prisional, dos convênios com o Ministério da Educação e do Trabalho para levar o ensino de jovens e adultos e iniciação laboral às prisões. Procuramos ainda enfrentar o déficit de vagas nas penitenciárias via inovadora parceria com a ONU produtos e serviços; o lançamento de edital dirigido as ONGs, igrejas e entidades de ensino para a proposição de ações e projetos voltados para egressos e apenados; além da criação do SUSP – Sistema Único de Segurança Pública, e de uma Política e um Plano Nacional de Segurança.

Com o Conselho Nacional de Justiça e o STF, desenvolvemos três ações cruciais para retirar o sistema prisional da desordem e obscuridade em que se encontra imerso. Transferimos para o Conselho um total de 90 milhões de reais para realizar a biometria de toda a população carcerária existente, a digitalização e informatização de todos os processos de execução penal do pais – mais de 2 milhões. E a instalação, funcionamento e/ou fortalecimento das centrais de penas alternativas.

Porém há muito mais a se fazer para que o sistema prisional brasileiro, hoje nas mãos e sob o controle das facções, deixe de ser a oficina do diabo que leva medo, terror, violência e morte as ruas de nossas cidades. Uma sociedade indefesa rumo a barbárie ameaça, no limite, a própria democracia.

]]>
0
Governo Temer bate cabeça no combate ao crime organizado https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/20/governo-temer-bate-cabeca-no-combate-ao-crime-organizado/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/10/20/governo-temer-bate-cabeca-no-combate-ao-crime-organizado/#respond Sun, 21 Oct 2018 01:34:01 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/10/temer-susp-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=348 A falta de coordenação federativa e entre Poderes e Órgãos de Estado na prevenção da violência e combate ao crime organizado é uma das principais deficiências na melhoria da segurança pública no Brasil.

Assim, quando o Governo Temer, em parceria com o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Presidente do Senado, Eunício Oliveira, articulou a aprovação de um pacote de medidas na área, uma das iniciativas aprovadas que contou com grande apoio foi aquela que criava o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública).

O SUSP parte do conceito de cooperação e integração, na tentativa de coordenar esforços e aumentar a capacidade do Poder Público de fazer frente ao crime, à violência e à necessidade de reduzir o medo e garantir direitos. Trata-se de uma ideia que já é praticada em várias outras áreas da administração pública mas que, na segurança pública, enfrenta, por incrível que pareça, enormes resistências.

E, entre as medidas para transformar o SUSP em realidade, o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social definido na Lei foi instalado no mês passado, em cerimônia que contou com a presença da Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, e do Presidente do STF, Dias Tóffoli, e de várias outras autoridades.

Como agenda de trabalho, o Ministério da Segurança propôs aos Conselheiros que tomaram posse uma minuta de Política Nacional de Segurança Pública, documento que dá partida para o planejamento decenal de programas e ações. De forma complementar, colocou a minuta de Política em consulta pública e a enviou para todos os governadores, ministérios e autoridades afeitas ao tema.

Passo seguinte, agendou para a próxima segunda-feira, dia 22 de outubro, a segunda reunião do Conselho para que todas as sugestões fossem apreciadas e a Política Nacional de Segurança Pública fosse oficialmente aprovada. O eixo central da minuta parte da percepção que, neste momento, é possível pactuar a regra do jogo, deixando para os próximos governos a definição de prioridades temáticas.

Isso porque, uma vez instituída a PNSP, todos os órgãos de segurança pública terão até dois anos para obrigatoriamente se adequarem às diretrizes fixadas, sejam eles federais, estaduais ou municipais.

O Governo Temer, contudo, dá provas que mesmo quando acerta consegue errar e bater cabeças na sequência.

Evidência maior disso é que, no último dia 16, o presidente Michel Temer publicou o Decreto 9.527/2018, que cria a Força-Tarefa de Inteligência para o enfrentamento ao crime organizado no Brasil com as competências de “analisar e compartilhar dados e de produzir relatórios de inteligência com vistas a subsidiar a elaboração de políticas públicas e a ação governamental no enfrentamento a organizações criminosas que afrontam o Estado brasileiro e as suas instituições”.

Para tanto, o Decreto estabelece que as instituições nele previstas (por sinal, quase todas integrantes formais do SUSP) serão coordenadas pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República – GSI e irão se reunir semanalmente para a elaboração de uma Norma Geral de Ação, em consonância com a Política Nacional de Inteligência – PNI e com a Estratégia Nacional de Inteligência – ENINT.

Ou seja, por trás desta medida, o Governo Temer dá mostras que a integração anunciada não será algo tão simples assim e que esta permeada de disputas por espaços e por poder.

Estamos diante de uma disputa política, pela qual alguns setores querem sinalizar quem “mandará no Brasil” daqui para frente, e, ao mesmo tempo, de uma antiga disputa doutrinária sobre qual modelo de inteligência deve prevalecer na articulação de dados e informações entre as diferentes instituições públicas – a inteligência de Estado ou a inteligência de segurança pública.

Para o leitor menos familiarizado, a doutrina de inteligência de Estado visa, muito resumidamente, monitorar alvos específicos e produzir informações necessárias tanto às análises estratégicas de cenários quanto à tomada de decisão da autoridade pública que a ela tem acesso. Já a inteligência de segurança pública visa, por sua vez, produzir informações que possam ser utilizadas na identificação formal de ameaças e na responsabilização jurídico penal daqueles que cometem delitos e crimes.

Como órgão de segurança de Estado, o GSI deveria preocupar-se muito mais com os riscos de rupturas institucionais, como a recente greve dos caminhoneiros. E, não à toa, a publicação do Decreto gerou uma enorme preocupação entre vários segmentos com a possibilidade de criminalização de movimentos sociais e de tipificação de manifestações que defendem demandas previstas na Constituição como atividades terroristas, ainda mais diante dos rumos ideológicos propostos pelo candidato Jair Bolsonaro (PSL).

Só que, no “corre” diário da população, que precisa batalhar para morar, comer e viver, as ameaças do crime organizado não são apenas ameaças ideológicas e políticas à ordem social. São problemas cotidianos de segurança pública e que precisam de medidas práticas e urgentes de integração, reforço da governança das respostas públicas e de remodelamento das estratégias policiais.

E, não por outra razão, a ideia de integração de ações policiais está na minuta de Política Nacional de Segurança Pública que está em audiência pública faz mais de 30 dias e será apreciada e votada pelo Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, órgão, vejam só, do SUSP.

Diante de todos estes movimentos, é possível supor que o GSI antecipou-se e, com a justificativa de ser o órgão coordenador da área de inteligência de Estado no país, quis flexionar músculos. O fato é, uma semana antes da reunião do SUSP, a proposta de integração da inteligência de segurança pública no Brasil tomou uma bolada nas costas e perde força. E muito mais grave do que pensarmos que foi um lance de um mau jogador, vejo a jogada como uma engenhosa tática para manter a agenda na alçada da segurança nacional e subordinar as polícias estaduais aos jogos ideológicos da realpolitik de um governo fraco sobre as causas do crime e da violência.

Pragmaticamente faz sentido, já que como temos visto nas eleições, o medo da violência e o pânico provocado pelas facções renderão votos, recursos e influência política durante os próximos anos no país. E, para isso, misturar segurança pública e segurança nacional é uma forma de manter o poder e evitar mudanças. O drama é que ela de nada adiantará para os milhões de brasileiros reféns da insegurança e das opções institucionais pouco efetivas.

***
Atualização 21/10/2018: 11:06hs

Depois de publicado, alguns interlocutores destacaram que o Decreto visa regulamentar o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência), que não deve ser subordinado ao SUSP e que exige que as organizações criminosas sejam contempladas no rol de riscos institucionais. Concordo plenamente. O Sisbin e os seus servidores precisam ser valorizados.

Todavia, meu argumento continua intacto, ou seja, não nego a importância do Sisbin e creio que o Decreto poderia ser um instrumento válido. No entanto, ser publicado uma semana antes e sem nenhum tipo de diálogo com o SUSP são, a meu ver, muito mais indicativos de ego ferido e reposicionamento tático do que consideração com os servidores de inteligência.

E, se o foco do meu argumento, a integração, estivesse no radar, o Decreto poderia ter citado o SUSP e não só as vinculadas do Ministério e o Conselho, até porque, no jogo atual, Bolsonaro já declarou que deve extinguir o Ministério e trabalhar com a SENASP apenas. Isso sinaliza mais para reserva de mercado do que preocupação efetiva com uma estratégia de inteligência que leve em consideração as organizações criminosas.

Por fim, o timing e a forma como o Decreto foi elaborado e publicado dizem muito sobre as motivações políticas e ideológicas que o viabilizaram. Não nego a importância do Sisbin e eu acho que ele ganharia muito mais se o Decreto aguardasse a definição do Conselho do SUSP para, na sequência, ser publicado alinhado às estratégias de segurança pública, mesmo que corretamente não condicionado ou subordinado a elas.

Bastaria uma menção à PNSP do SUSP no parágrafo 1o do Artigo 3 do Decreto. Isso já passaria outra mensagem completamente diferente. Se a preocupação fosse com a efetividade da política pública, isso seria o feito, deixando para o próximo governo o ônus de justificar alterações e explicar porque um modelo menos articulado e integrado é, na visão de quem assim o quiser, mais eficiente.

]]>
0
Homicídios mais do que dobram em municípios que elegeram policiais como vereadores, diz estudo de instituto de pesquisas em Tolouse, na França https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/29/homicidios-mais-do-que-dobram-em-municipios-que-elegeram-policiais-como-vereadores-diz-estudo-de-instituto-de-pesquisas-em-tolouse-na-franca/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/29/homicidios-mais-do-que-dobram-em-municipios-que-elegeram-policiais-como-vereadores-diz-estudo-de-instituto-de-pesquisas-em-tolouse-na-franca/#respond Sat, 29 Sep 2018 15:11:25 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/15263009935af981411fde6_1526300993_3x2_md-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=295 Às vésperas do primeiro turno das eleições 2018, que têm sido marcadas pelo protagonismo de discursos pretensamente de reeducação moral e resgate da ordem e da autoridade, uma das questões que mais chamam atenção é o crescimento dos candidatos egressos das fileiras das instituições policiais e das Forças Armadas.

Algumas das associações profissionais do setor estão, inclusive, engajadas em campanhas para fazerem crescer a representação policial no Congresso e nas Assembleias Legislativas, na ideia de desfazer o nó do sistema de vetos perfeito que impera na área, pelo qual cada categoria tem força para impedir o avanço de pautas contrárias aos seus interesses, mas, simultaneamente, ficam capturadas por esta mesma lógica e não conseguem aprovar temas por elas considerados estratégicos.

E isso é algo não só legítimo, mas bastante compreensível. Os policiais brasileiros estão submetidos à uma enorme pressão no trabalho, como demonstraram artigos recentes de Rafael Alcadipani e Daniel Cerqueira. Nossos policiais estão sendo caçados pelo crime organizado e são postos na “frente de batalha” para matar ou morrer sem maiores preocupações com a garantia de direitos deles próprios e da população.

O Poder Público tem reproduzido com entusiasmo o modelo de confronto mesmo com diversas evidências de que o caminho tomado não funciona e que ele apenas interage com as concepções de ordem de segmentos sociais tomados pelo pânico e pela violência. Boa parte da legislação que dá suporte a este modelo é anterior à Constituição Federal de 1988 e os candidatos preferem jogar a culpa nela do que revisar a arquitetura e a forma de organização do nosso sistema de justiça criminal e de segurança pública.

Mas eleger policiais apenas pelo fato de eles serem policiais e terem, em tese, a experiência do cotidiano resolve o problema?

De acordo com o Lucas Novaes, cientista político do Instituto de Pesquisa Avançada em Toulouse, na França”, não. A atuação de policiais como políticos não garante maior eficiência na redução da violência e no controle do crime.

O pesquisador acaba de concluir um estudo, intitulado “The Violence of Law and Order Politics: The Case of Law Enforcement Candidates in Brazil“. Para ele, altos índices de insegurança tornam atrativos os candidatos que prometem combater a criminalidade. E, nesta toada, é comum, no Brasil, policiais ou militares se candidatarem justamente para aproveitar esse anseio de alguns eleitores. O estudo analisa os candidatos policiais aos cargos de vereadores.

Segundo o levantamento feito por ele, do ano 2000 pra cá, mais de seis mil policiais ou militares se candidataram a vereador fazendo campanha sobre segurança, e ao redor de seiscentos se elegeram. Porém, o que acontece com a segurança pública após a eleição de um desses candidatos é um tanto incerto.

Para Lucas Novaes, a proposta desses candidatos é, em geral, reduzir o crime através de uma polícia mais atuante e às vezes mais repressiva, mas se tomarmos o exemplo recente do México sabemos que o combate frontal ao crime pode trazer consequências graves em relação a assassinatos. Desde que o governo mexicano intensificou o combate ao crime, homicídios mais do que dobraram. De maneira similar, a eleição de um candidato policial ou militar comprometido a combater o crime pode também aumentar a violência.

O trabalho mostra que esse é o caso dos municípios no Brasil. Em geral, é difícil analisar os efeitos da eleição de um desses “vereadores-policiais” sobre crime e violência pois diversos fatores podem influenciar a eleição desses candidatos, como o cenário político local ou a taxa de homicídios antes das eleições. Assim, qualquer resultado após a a eleição desses vereadores pode ser produto desses fatores anteriores, e não da eleição. Não há como isolar uma relação de causalidade direta, mas alguns pontos podem ser associados para debate.

A metodologia do estudo, chamada de regressão descontínua, tenta solucionar esse problema seguindo uma ideia simples: comparar municípios que elegem um vereador-policial por uma pequena margem de votos, e outros onde esse tipo de candidato chegou próximo a vitória, mas perdeu por poucos votos. Assim, um município receber ou não o tratamento, isto é, eleger ou não um vereador-policial, é quase um processo aleatório, assegurando que além da “sorte” de eleger um vereador os dois grupos de municípios são estatisticamente semelhantes.

Os resultados do estudo mostram que municípios que elegem um vereador-policial gastam mais em segurança, diminuem modestamente crime (especificamente roubos a carro), mas praticamente dobram o número de homicídios. A taxa média de homicídios nos municípios sobe de 20 para 43 assassinatos para cada 100 mil habitantes, tornando a taxa próxima de países que sofrem conflitos civis abertos e guerras.

O estudo também identifica que esse aumento de homicídio atinge com mais força homens pobres pretos ou pardos. Para Novaes, como não há informação sobre a condição social das vítimas de homicídios, e a relação entre cor da pele e renda é muito acentuada, é muito provável que os homicídios recaiam naquele grupo não porque não são negros, mas porque são pobres. Esta é uma longa discussão sobre a existência e os efeitos do que é definido como “racismo estrutural” do Estado brasileiro.

Por fim, o autor frisa que os resultados da pesquisa mostram que o aumento da violência não é ocasionado pela ação direta dos policiais contra a população. Ou seja, não há um aumento na letalidade policial, medida com base nos dados da saúde, já que os dados da segurança não são desagregados por municípios. Em outras palavras, os dados de Lucas Novaes reforçam muitos dos levantamentos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que indicam que a questão da violência no Brasil não é derivada de apenas um ator ou instituição, sejam eles o crime organizado, a sociedade ou o Estado.

Vivemos um cenário de naturalização desta violência e, aterrorizados pelo medo, acreditamos e/ou ficamos reféns de propostas salvacionistas radicais, que só tendem a agravar o quadro de insegurança e de desconstrução da cidadania brasileira. Nos deixamos levar pelas emoções e esquecemos que as estruturas desiguais e perversas que regulam a ação pública são centenárias e não foram ainda completamente modernizadas à luz das cláusulas pétreas da nossa Constituição.

Não há direitos demais e obrigações de menos, como querem nos fazer crer muitos dos políticos que agora se colocam como paladinos da moralidade. Há, sim, um paradoxo que provoca impunidade quase que generalizada para crimes violentos e punição rigorosa e seletiva para determinados perfis sociais e/ou delitos, em geral aqueles passíveis de serem combatidos pelo enfrentamento direto e pela prisão em flagrante. Pouco avançamos para aumentar a eficiência da investigação e vamos reproduzindo, à direita e à esquerda, estereótipos, iniquidades e preconceitos.

Em suma, o trabalho de Lucas Novaes nos aponta um problema grave sobre a intersecção de políticas de segurança e política. Como o grupo que paga com a vida é também aquele que menos têm voz na política, o político que implementa más medidas de segurança dificilmente irá pagar eleitoralmente pelos mortes ocasionadas pelas suas ações.

Estão certas as associações policiais em quererem que sejam diretamente representadas por seus membros. Não vejo nenhum problema nisso. É mais do que justa a pauta. Porém, e isso se aplica a qualquer segmento profissional, a política não pode ser reduzida a interesses corporativos e, não à toa, boas políticas de segurança pública podem ser formuladas por policiais ou por não policiais, até porque esta é uma área que depende de diversos atores sociais e carreiras.

Não é a profissão ou a carreira que irá determinar a “qualidade” e o “efeito” da atuação legislativa dos policiais candidatos. Há nomes entre os policiais brasileiros altamente qualificados e que merecem o voto da população e há, como em outras áreas, quem queira apenas fazer valer seus valores e visão de mundo, independente do real impacto na população. Mas, o ponto mais importante, é que mais do que nunca precisamos defender a vida como valor absoluto a ser tutelado pelo Estado e garantido pelas políticas públicas. Reduzir a violência e reprimir o crime organizado de forma eficiente e nos marcos da Lei é uma tarefa coletiva e que precisa mobilizar a todos e a todas.

]]>
0
A influência do PCC: o exemplo das facções criminais do Rio Grande do Sul https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/22/a-influencia-do-pcc-o-exemplo-das-faccoes-criminais-do-rio-grande-do-sul/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/22/a-influencia-do-pcc-o-exemplo-das-faccoes-criminais-do-rio-grande-do-sul/#respond Sun, 23 Sep 2018 02:09:42 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/09/16211670-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=285 Texto de Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Marcelli Cipriani, da PUC/RS, que busca mostrar a influência do modelo PCC na organização das facções criminais no Rio Grande do Sul e que serve de exemplo e alerta para pensarmos estratégias mais eficientes de repressão qualificada do crime organizado no Brasil.

***

Na terceira galeria do pavilhão F, dentro da Cadeia Pública de Porto Alegre, celulares apitavam. Em mensagem recebida pelos presos dos Bala na Cara, principal facção criminal gaúcha, a foto de um indivíduo estava acompanhada da pergunta cuja resposta selaria o seu destino: alguém conhece esse cupinxa? Momentos antes, o sujeito transitava pelo bairro Bom Jesus – reduto da facção na capital – quando foi interpelado por integrantes do grupo que estranharam sua presença na região.

Levado a uma residência e mantido sob cárcere privado, seria então fotografado para que a imagem circulasse pela galeria prisional. Sua vida, dali em diante, dependia de uma identificação. Se ninguém soubesse de quem se tratava, provavelmente ele seria um contra, um inimigo que tinha de ser eliminado.

Embora as relações criminais na capital gaúcha venham sendo pautadas, a partir de meados dos anos 90, por grupos em conflito, a generalização dessas dinâmicas entre o binômio “aliados ou contras” atingiram, recentemente, níveis críticos. Em 2016, como reação à expansão forçada dos Bala na Cara – também apelidados de “toma bocas” pela violência com que se apropriam dos pontos de comércio ilícito alheios – constituiu-se o “embolamento” dos Antibala.

Em outros termos, se formou um agregado de grupos menores, capitaneados pelos V7, com o objetivo de antagonizar com os Bala, que vinham se espraiando em ritmo veloz desde a década anterior. Nos meses que se seguiram ao surgimento da aliança, um ciclo de ataques e de execuções explodiu em bairros onde, no município, esses agrupamentos estavam presentes.

Diferentemente do que ocorre com o PCC em São Paulo, as dinâmicas do tráfico de drogas em Porto Alegre – na prisão e fora dela – são essencialmente pautadas pelo controle territorial, sujeito a uma multiplicidade de grupos. Atualmente, existem sete deles, de dimensões variáveis, distribuídos entre doze galerias da Cadeia Pública: os Manos, os Bala na Cara, os Abertos, a Conceição, a Farrapos, os Unidos Pela Paz e, mais recentemente, os V7.

Cada uma das galerias, que representa o andar de um pavilhão, agrega indivíduos oriundos das áreas em que a facção tem influência. É delas que partem as determinações sobre aliados e contras no município, cada vez mais afuniladas entre três principais frentes: Manos, Balas na Cara e Antibalas.

O primeiro, em consonância com o Comando paulista, procura se distanciar da ideia da guerra, privilegiando as negociações no lugar do uso da violência física. Os dois últimos, por sua vez, estão envolvidos em incessantes ofensivas recíprocas nas periferias da capital – não só para a tomada de pontos de comércio, mas também para a demonstração de poder.

Quanto mais extenso é o domínio de um grupo nos bairros urbanos, maior será o contingente de presos a ser levado para o seu espaço na prisão. Em contrapartida, a alocação de indivíduos nas galerias dos grupos abre espaço para o estabelecimento de novas relações comerciais, com a ampliação do abastecimento das bocas que passam a estar associadas a partir dos presídios.

Em paralelo, a fim de assegurarem que, caso encarcerados, terão onde ficar, integrantes de grupos menos expressivos precisam, na rua, fazer acordos comerciais ou estratégicos com grupos maiores – que também são os que têm melhores condições de oferecer proteção através do apoio de pessoal e armamento. Com isso, seu poder é fortalecido, a partir dos fluxos recíprocos entre a prisão e a rua.

O PCC tem como característica conferir autonomia aos indivíduos no estabelecimento de negócios no crime, dado que as atividades do grupo são de outra ordem, estando associadas a um pertencimento coletivo. Nesse sentido, suas relações também são pautadas por um discurso de união contra a opressão do Estado, e pela organização para o seu enfrentamento. Nos grupos de Porto Alegre, por sua vez, essa dimensão discursiva não foi mobilizada em torno de um ideal de emancipação, enfrentamento ou de uma tomada de consciência coletiva.

Ainda, a conjunção entre diferentes pontos de comércio que conforma os grupos está, em regra, associada com a fidelidade quanto ao fornecimento dos produtos comercializados: ou seja, a droga vendida em bocas dos Manos ou de seus aliados não pode ter sido provida pelos Bala, e vice-versa. Assim, a pluralidade de agrupamentos em disputa corrobora com a intensificação da violência, e a imposição de alinhamento interno para a compra de mercadorias acelera a corrida por controle de bocas.

Por fim, o teor da identidade partilhada entre seus membros – que, em parte relevante, está marcado pela oposição aos rivais – afasta qualquer perspectiva de pacificação das relações criminais ou de associação em nome de um inimigo comum.

Em reportagem recente, o jornalista Humberto Trezzi, do Jornal Zero Hora, apresenta documento do Ministério Público paulista, em que consta a informação de que o PCC já teria 729 “simpatizantes” no estado do Rio Grande do Sul. Segundo a matéria, que também utiliza como fonte o jornalista Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, o grupo paulista teria firmado alianças com grupos gaúchos adversários dos Bala na Cara. Eles assumiriam a posição de “primos” e não de “irmãos” – aliados, mas não necessariamente batizados.

Com a transferência, no ano passado, de 27 presos para presídios federais localizados em outros estados – muitos deles, em posição de liderança nas facções gaúchas – é possível que essas aproximações tenham sido aprofundadas, também vindo a trazer novos contornos aos negócios ilícitos locais. De acordo com Camila Dias e Bruno Manso, em livro recentemente publicado, um membro do PCC caracterizou o sistema penitenciário federal de “comitê central do crime” – dado que reúne indivíduos oriundos de diferentes estados e grupos criminais, abrindo espaço para o estabelecimento de alianças e rupturas.

O domínio de facções criminais no mundo do crime é efeito da política criminal adotada no Brasil nas últimas décadas. Com a superlotação carcerária, motivada pela cada vez maior criminalização de pequenos traficantes e assaltantes, que se dá pelo predomínio das prisões em flagrante, em detrimento da investigação criminal, que poderia trazer resultados mais direcionados, por exemplo, para a responsabilização criminal dos autores de homicídio, o ambiente prisional se tornou um espaço privilegiado para as articulações entre grupos ligados aos mercados ilegais.

Para manter a ordem em presídios superlotados, o Estado abre mão de exercer um controle mais rígido, e autoriza a organização interna de grupos que atuam foram das prisões. A Cadeia Pública de Porto Alegre é o exemplo extremo, dentro da qual as alas estão há muito tempo sob o domínio das facções.

Embora a influência do PCC ainda seja pequena no Rio Grande do Sul, seu modelo já é replicado: se o Estado não atua de forma lícita, impondo uma dinâmica de violência policial nas periferias urbanas e de descontrole no cárcere, o mundo do crime se mobiliza para assegurar um mínimo de previsibilidade e segurança para seus integrantes, garantindo renda e proteção, mesmo que nas precárias condições de bandos criminais em disputa.

Violência policial, encarceramento duro e abusos praticados por agentes do Estado são o solo fértil no qual eles se disseminaram. Reverter esse quadro implicaria evidentemente adotar um outro modelo de segurança pública, com mais inteligência, foco na violência letal, profissionalismo e tratamento igualitário pelo Estado. Este o desafio colocado para os governantes eleitos em outubro. Ou o aprofundamento da barbárie.

]]>
0