Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Covid-19 e morte de policiais: crônica de uma tragédia anunciada https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/covid-19-e-morte-de-policiais-cronica-de-uma-tragedia-anunciada/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/29/covid-19-e-morte-de-policiais-cronica-de-uma-tragedia-anunciada/#respond Thu, 29 Apr 2021 22:06:14 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/alcadipani-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1734 Os óbitos de policiais na pandemia deixam claro que a prevenção e o cuidado com a vida desses profissionais não passam de discurso que não se converte em atitudes práticas

Rafael Alcadipani*

Logo no início da pandemia de Covid-19, uma parceria de pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, da qual fiz parte, realizou um estudo mostrando que quase 70% dos policiais no Brasil tinham medo de serem contaminados e de morrerem da doença, bem como de levá-la para suas famílias. O estudo já indicava que metade dos policiais tinham um colega ou parente com suspeita de estarem com o vírus. Apenas 30% dos policiais se sentiam preparados para trabalhar durante a pandemia e nos estados do país pouco mais de 30% relatavam que haviam recebido os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) para se protegerem da doença durante o turno de trabalho.

Ou seja, o estudo já apontava que os policiais não se sentiam preparados e não estavam recebendo nem treinamento muito menos equipamento de proteção adequados para lidar com a pandemia. Embora houvesse diferenças entre o preparo de instituições nos diferentes estados da federação, era nítida e clara a urgência de que medidas fossem tomadas para evitar uma alta vitimização de policiais no Brasil.

Embora tenha ganhado repercussão da imprensa e estivesse disponível ao público interessado, como é típico de nosso país, o estudo não despertou grande interesse dos gestores de segurança pública brasileiros e, ao que tudo indica, seus achados não sensibilizaram as secretarias de segurança dos estados – muito menos o Governo Federal – a adotar uma política nacional de prevenção a morte de policiais por Covid-19.

Os números recentes do Monitor da Violência mostram que a Covid-19 afetou bruscamente as instituições policiais. O número de policiais mortos pela doença é mais do que o dobro do que o de policiais que foram assassinados nas ruas em 2020 – 465 profissionais atingidos pela pandemia contra 198 assassinados em serviço ou na folga. Além disso, um a cada quatro policiais brasileiros foi afastado do seu trabalho devido a doença e seus riscos. Rio de Janeiro, Amazonas e Pará foram os Estados onde mais policiais foram vitimados pela pandemia. Uma vez que o alerta havia sido dado, são mortes que poderiam ter sido evitadas.

A morte de tantos policiais pela Covid-19 escancara o grave problema de gestão da Segurança Pública em nosso país. Boa parte das decisões são tomadas sem o recurso a estudos ou pesquisas. Ou seja, raramente decisões neste campo são tomadas tendo por base a ciência, tema tão em voga durante esta pandemia. Em geral, usa-se o bom senso de quem está na ponta da linha e acha que sabe por ter estado tantos anos realizando a função de segurança pública. Esquecem-se que é possível passar uma vida inteira trabalhando errado.

Além disso, as mortes de policiais durante a pandemia deixam claro que a prevenção e o cuidado com a vida do policial são um mero discurso que não se converte em atitudes práticas. Qual o motivo do Governo Federal não ter articulado uma política nacional de proteção aos policiais para a pandemia? Quais foram as ações concretas tomadas pelos Secretários de Segurança dos Estados para proteger os policiais além da distribuição formal de algumas máscaras e álcool gel? É preciso ainda destacar que as culturas organizacionais das polícias valorizam a virilidade e o tomar risco. Isso faz com que a prevenção com a própria saúde e o mero uso de máscaras sejam malvistos em muitos círculos de policiais. Isso se torna ainda mais nocivo quando as lideranças não assumem a sua responsabilidade de cobrar o uso de máscaras por parte dos policiais.

Embora alguns estados tenham vacinado seus policiais, no atual cenário isso não é garantia de nada. Novas cepas podem surgir diminuindo a eficácia das vacinas e o próprio valor da eficácia real dos diferentes imunizantes é ainda objeto de estudo. A prevenção da Covid-19 passa necessariamente pelo distanciamento social e pelo uso de máscaras de boa qualidade. Raramente, porém, policiais estão usando as máscaras N95. As mortes que aconteceram até o momento são a crônica de uma tragédia anunciada. E se nada for feito de efetivo para preservar a vida dos policiais, a tragédia irá ganhar cores cada vez mais dramáticas.

 

*Professor Titular da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Tiroteio em massa nos EUA” e “Policias civis, em busca de identidade“.

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Mortes e silenciamento na rotina de servidores penais https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/mortes-e-silenciamento-na-rotina-de-servidores-penais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/15/mortes-e-silenciamento-na-rotina-de-servidores-penais/#respond Thu, 15 Apr 2021 19:43:44 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/04/faces1504-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1723 As orientações nacionais e internacionais a respeito do enfrentamento à pandemia mais uma vez mostram o distanciamento do cárcere legal e do cárcere real no Brasil

Maria Palma Wolff*

Felipe Athayde Lins de Melo**

A prisão, como se sabe, não é uma instituição que impacta apenas a vida das pessoas privadas da liberdade; sua repercussão chega também a suas famílias e ao conjunto de trabalhadores que fazem possível a existência desta “fábrica de moer gente”. Todos são por ela afetados, e, ainda que cada um destes grupos tenha sua especificidade, certamente não seria diferente no cenário da pandemia de Covid-19. Então, vejamos.

No dia 8 de abril deste ano, a imprensa de Ribeirão Preto, cidade a cerca de 330 quilômetros da capital paulista, noticiou a morte de três homens que se encontravam presos na penitenciária daquela cidade. Nas redes sociais, “especialistas” correram para expor seus pareceres.

Da tradicional ojeriza aos corpos indesejáveis – “só três, que pena” – chegou-se a mais nova manifestação do desprezo pela vida: o negacionismo pandêmico que nos é apresentado diariamente por aquele que deveria liderar os esforços de enfretamento à Covid-19. “Ué, mas não estão confinados? Isso prova que o isolamento não serve pra nada”.

Dias antes, a cerca de 90 quilômetros dali, a penitenciária de Araraquara registrou, segundo o noticiário, a contaminação de mais de 360 presos. Igualmente, a turba glorificou o caso como demonstração do fracasso das medidas de isolamento social adotadas pela prefeitura municipal.

Em ambas as situações, porém, a imprensa e a administração penitenciária obtiveram enorme êxito em ocultar outro dado da tragédia que caracteriza as prisões no Brasil: os danos e as mortes dos servidores penais causados pela Covid-19.

Desde o início da pandemia, foram publicadas diferentes normas e orientações de prevenção à propagação da Covid-19 em prisões. Em março de 2020, o Departamento Penitenciário Nacional emitiu portaria recomendando, dentre outras medidas, a suspensão das visitas de familiares e organizações da sociedade civil. Por seu turno, o Conselho Nacional de Justiça propôs a flexibilização dos dias de visitas com a concomitante adoção de outras medidas preventivas, que deveriam atingir também os servidores.

Passado pouco mais de um ano, boletim publicado pelo CNJ em abril de 2021, informa que haviam sido realizados em todo o país cerca de 275 mil testes em pessoas presas e menos de 70 mil em servidores penais, num contingente superior a 117 mil trabalhadores. Os dados de contaminação, por sua vez, atingiram a marca de, respectivamente, 51.974 e 18.081 casos, com o registro de 159 óbitos de pessoas privadas de liberdade e, pasmem, 163 mortes de servidores.

Os números, à primeira vista, sinalizam um razoável controle da disseminação do vírus pelos cárceres brasileiros, pois não se observa aqui aquilo que vem ocorrendo, por exemplo, nas prisões americanas, em que se registra uma média de sete mortes ao dia. Os dados, porém, precisam ser olhados com cautela, pois apontam para outros efeitos das medidas que permitem colocá-los em questionamento.

Uma medida adotada em todos os estados foi a suspensão de visitas, o que, supostamente, geraria o isolamento social das pessoas presas. Mas o fluxo dos servidores segue em curso, sem a adequada provisão de itens de prevenção e, principalmente, expostos a novos constrangimentos no exercício do trabalho.

Durante o surto de contaminação na penitenciária de Araraquara, por exemplo, segundo funcionários, ao menos 30 servidores foram infectados. Dentre estes, veio a óbito um diretor. Os casos, contudo, não repercutiram na imprensa e a diretoria do estabelecimento se esforçou em ocultá-los.

Assim, as pessoas afastadas com Covid-19 foram “orientadas” a não reportarem a contaminação em trabalho e servidores contam, inclusive, terem recebido “visitas” domiciliares de seus superiores para reforçar a “orientação” de nada comentar sobre o óbito. Nas palavras de uma servidora, “sequer a morte de um colega de mais de 20 anos nós pudemos chorar”.

As orientações nacionais e internacionais a respeito do enfrentamento à pandemia mais uma vez mostram o distanciamento do cárcere legal e do cárcere real no Brasil, ou seja, do também seletivo cumprimento das leis e das normas. Neste sentido, a proibição das visitas, por exemplo, além de uma medida sanitária, é uma estratégia que contribui para as limitações de transparência dos dados e para manter não só pessoas dentro dos muros, mas também a sua própria realidade.

Ao negacionismo da seletividade de classe e raça sempre existente no sistema penal, da existência de tortura, do não cumprimento da Lei de Execução Penal, das péssimas condições de trabalho, acrescemos a negação do impacto da Covid-19 no contexto prisional e também das consequências para a saúde dos servidores penais.

Tudo isso se soma à tensão e à violência existente no cotidiano de trabalho na prisão e à frustração pela falta de recursos humanos e materiais para o desempenho de suas funções, à falta de serviços de atendimento para a saúde funcional. Agora acrescemos tudo o que representa a pandemia da Covid-19 e seu errático enfrentamento pelas autoridades brasileiras.

 

*Graduada e Mestre em Serviço Social pela PUCRS, doutora em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais pela Universidade de Zaragoza, Espanha, e pós-doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora e pesquisadora da Faculdade de Serviço Social da PUCRS, atuando nas áreas de direitos humanos, movimentos sociais e políticas sociais.

**Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, onde integra o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos. É membro fundador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais, da Universidade de Brasília. Possui pós-graduação em Gestão de Organizações do Terceiro Setor (Universidade Mackenzie – 2002), graduação em Filosofia (Universidade Estadual Paulista – 1998) e formação em metodologias de trabalho cooperativo pelo GETS/United Way of Canada.

 

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Na edição desta semana, leia também “Um passo para a redução do descontrole armado” e “Policiais não são heróis: alertas emitidos ao campo da segurança pública”.

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As festas clandestinas são problemas políticos https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/as-festas-clandestinas-sao-problemas-politicos/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/04/08/as-festas-clandestinas-sao-problemas-politicos/#respond Thu, 08 Apr 2021 21:41:27 +0000 //f.i.uol.com.br/hunting/folha/1/common/logo-folha-facebook-share.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1717 “Dificuldades para cumprir medidas de isolamento social evidenciam os problemas de exercício da autoridade no Brasil, uma vez que decretos estaduais têm sua eficácia confrontada.”

Alan Fernandes*

Polícia fecha festa clandestina em São Paulo durante a pandemia de Covid-19 (CJPRESS/FOLHAPRESS)

A crise mundial causada pela Covid-19 tem impactos inegáveis pelas mais de 300 mil mortes ocorridas somente no Brasil. Não fossem suficientemente desafiadoras as questões médicas envolvidas, as exigências para seu enfrentamento tocam em um ponto central da democracia: a liberdade. Isso porque a restrição de circulação e reunião das pessoas é reconhecida como uma medida relevantíssima para evitar a propagação do vírus.

As dificuldades para dar cumprimento às medidas de isolamento social evidenciam os problemas de exercício da autoridade no Brasil. A autoridade se assenta em regras politicamente legitimadas, escritas em documentos legais, definições essas escassas no que se refere à manutenção de uma ordem social, que, no limite, performam as medidas restritivas contra a pandemia.

Essas questões passaram interditadas nas discussões no país, que não estabelece consensos que possam definir os limites entre autoridade e autoritarismo. Assim, tanto os decretos estaduais, que impõem regras para a circulação e reunião de pessoas, têm sua eficácia constantemente confrontada, o que requer o acionamento do Poder Judiciário, como os instrumentos colocados à disposição dos órgãos encarregados da vigilância mostram-se ineficientes.

As festas clandestinas têm ocupado o noticiário nos últimos dias. Nelas se vê as pessoas se encontrarem em bares, boates, cassinos (?!) e festas a céu aberto, contrariando as normativas legais de proibição da realização desses eventos, pois tais eventos impulsionam a transmissão comunitária do vírus causador da doença. Para dar conta das decisões de enfrentamento à pandemia, o estado tem empenhado seus órgãos dotados de poder fiscalizatório para que evitar que tais reuniões ocorram ou que sejam encerradas.

Em São Paulo, no campo da polícia ostensiva, a Polícia Militar vem atuando em três frentes. Na “Operação Toque de Restrição”, são utilizados os equipamentos de alto-falante instalados nas viaturas para buscar convencer a população a retornar a suas casas no período compreendido entre as oito horas da noite e cinco horas da manhã.

Além disso, em conjunto com outros órgãos, atua no fechamento de estabelecimentos que promovem tais encontros, a cujos responsáveis são impostas multas de acordo com o Código Sanitário de São Paulo, além de medidas criminais relativas aos crimes de desobediência (artigo 330 do Código Penal) e de infração a determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa (artigo 268 do Código Penal).

Aliado a isso, a “Operação Paz e Proteção” busca intervir em reuniões em espaços públicos, mediante critérios que atendam uma conjugação dos riscos envolvidos aos frequentadores e os ativos operacionais disponíveis para o atendimento da ocorrência. Aqui, a estratégia adotada é a ocupação do espaço mediante a obtenção de informações prévias da realização do evento, de forma a evitar que se realize.

Muitas reuniões sociais, que ora constituem problema de saúde pública, tornam-se, para o cotidiano de inúmeras pessoas, um problema cujo enfrentamento é dificultado, porque os órgãos policiais dispõem de mecanismos legais incompletos, o que dá conta de como a questão do que ora denomina-se “festas clandestinas” é um problema já existente em nossa sociedade.

No atual momento, o amparo legal e a concertação de esforços proporcionado pelas regras legais de enfrentamento à pandemia têm trazido algum avanço na governança sobre essa questão, mas que tende a esvair-se tão logo a crise sanitária diminua. Isso em razão da incapacidade normativa do Brasil em estabelecer regras claras, gerais e politicamente legitimadas no que se refere à gestão da ordem pública. Uma das evidências mais assombrosas é o crescente número de mortes em razão do descumprimento do isolamento social, mas, também, a incapacidade de que as medidas adotadas sejam amplamente cumpridas.

A despeito da sempre presente limitação de recursos para um atendimento mais amplo das medidas, levanta-se a questão da própria capacidade institucional de o estado exercer autoridade. A questão da regulação de festas, em espaços públicos ou não, apenas foi evidenciada com a pandemia.

Tomando por base uma determinada região da cidade de São Paulo, as ocorrências cadastradas como “perturbação do sossego público” são a terceira maior em número de chamadas de emergência no ano de 2020. Para o enfrentamento a essa questão, a maior amplitude de medidas sancionatórias, trazida pelo decreto estadual ligado à pandemia, com a imposição de multas pela Vigilância Sanitária, permitiu que a regulação dessa questão fosse mais eficaz que em relação às medidas penais vigentes até então, ainda que se mostrem insuficientes.

A título de exemplo de outras medidas adotadas contra a disseminação do vírus, países como o Chile e a Itália adotaram a expedição de autorização de circulação, com a imposição de multas e prisões. Tais medidas são sequer contempladas no portfólio de ações disponíveis aos tomadores de decisão. Medidas mais severas como essas não encontrariam ambiente político para suas discussões em razão da interdição que temas como esse ocorrem no Brasil.

Se, no transcurso de nossas vidas, os limites entre as liberdades individuais e a coletividade eram mediadas pela informalidade da atuação policial, sem maiores repercussões, agora, as questões de regulação da vida social fazem emergir tais problemas, pois, afinal, os fatos da vida social que acontecem nas franjas da sociedade impactam a todos, indistintamente.

Assim, que a dimensão dessa crise deixe como lição a necessidade inaugurar um debate que construa regras sobre o a gestão da vida social, sem a qual, nem se consegue se promover razoáveis níveis de harmonia social, nem se coíbem os excessos do nível de rua, de forma que, pela sua ausência ou pela sua potência, troquemos autoridade por autoritarismo.

*Alan Fernandes é Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo, doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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Na edição desta semana, leia também “Vacinação dos profissionais de segurança pública: mais vacina, menos politização” e “Caso Henry Borel remete a um roteiro guardado em algum lugar do passado”.

 

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Covid-19 e as pirotecnias que colocam policiais em risco https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/02/covid-19-e-as-pirotecnias-que-colocam-policiais-em-risco/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/02/covid-19-e-as-pirotecnias-que-colocam-policiais-em-risco/#respond Thu, 02 Apr 2020 21:37:26 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Pedro-Ladeira2.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1360 Com Rafael Alcadipani*

Há um desfiladeiro entre o que  Jair Bolsonaro e Sergio Moro prometem na segurança pública e o que é feito na prática. Com isso, aumenta-se o risco de contaminação por Covid-19 dos policiais do país, que hoje estão abandonados à própria sorte.

A experiência internacional tem demonstrado que durante a pandemia de COVID-19, as polícias desempenham papel fundamental. Quer seja no controle para que as pessoas cumpram de fato a quarentena, quer seja para coletar material na casa das pessoas para exame da doença. A passagem da COVID-19 tem mostrado que além de uma crise sanitária, a doença também constitui uma crise de segurança pública.

O Brasil possui uma configuração de segurança pública muito diferente de países como Itália, França e Espanha, com várias agências e corporações tendo que se virar sem maiores apoios ou parâmetros de atuação. Impressiona que, no começo do ano, o trabalho dos policiais brasileiros na redução da criminalidade foi apropriado pelo discurso político do Governo Federal, em especial pelo Ministro Sergio Moro, e em um momento de crise cria-se um “distanciamento sanitário” dos temas de interesse das carreiras policiais e do sistema prisional.

Os policiais enfrentam condições de trabalho muito aquém de seus colegas do Atlântico Norte. Altos índices de doenças ocupacionais e suicídio fazem parte do cotidiano dos policiais brasileiros. Muitos policiais possuem comorbidades que os fazem ser mais vulneráveis a COVID-19. Eles enfrentam dificuldades financeiras para arcar com os custos de vida, principalmente em grandes metrópoles. Não é exagero afirmar que muitos policiais não moram em residências onde consigam manter uma distância segura de seus familiares para não os expor à contaminação pelo coronavírus que, sem a devida proteção, estão sujeitos. Mas, mesmo assim, estão junto com os profissionais da saúde na linha de frente do combate da pandemia.

E, os resultados de mais uma vez mandarmos os policiais para a ponta da linha e acreditarmos que isso por si só já absolve os políticos de suas responsabilidades começam a aparecer. Estamos no início da epidemia e, sozinho, São Paulo já possui 600 policiais, segundo matéria do Rogério Pagnan nesta Folha, afastados com suspeita de coronavírus. Muito embora os problemas causados pela doença já fossem claros no início deste ano no mundo, inúmeros estados e o próprio governo federal não criaram planos de contingência e têm dificuldades para fornecer a seus policiais equipamentos de proteção individual (EPIs) para que policiais se protejam.

A mesma coisa acontece no nosso superlotado sistema prisional. Há uma forte prevalência do crime organizado exercendo o controle de populações inteiras dentro e fora dos presídios, mas, quando o Conselho Nacional de Justiça – CNJ edita uma recomendação, validada pelo Plenário do STF, para que os juízes brasileiros levem em consideração a pandemia e as condições prisionais do país, Sergio Moro, amparado pelo pânico da população, repete sua estratégia de enfrentamento do Poder Judiciário que adotou quando da criação do “juiz de garantias” e pressiona para a mudança da política criminal. Se algo o contraria, bate o pé e assume, cada vez com mais desenvoltura (e até mesmo com informações açodadas e sem comprovação), a postura de príncipe herdeiro a disputar o projeto de poder da república absolutista de Jair Bolsonaro.

Só que o governo federal fala muito e deixa a desejar na prática. Enquanto o que vemos hoje é que os governos estaduais estão começando a articular respostas à COVID-19 e há inúmeros relatos de forças policiais pelo país pedindo favores de empresários para que doem itens de proteção para os policiais como álcool gel, luvas e máscaras, não percebemos uma articulação do Governo Federal para lidar com as dificuldades do COVID-19 para a Segurança Pública.

Além de medidas meramente pirotécnicas como dizer que a Força Nacional (um consórcio de policiais estaduais, diga-se de passagem) irá atuar na pandemia, não se vê o Governo Federal articulando um plano nacional de ações em segurança pública que lide com questões fundamentais como ajudar os Estados na aquisição de EPIs para as forças de segurança de todo o país e do próprio governo federal e/ou, até mesmo, para mitigar e prevenir as tensões geradas pelo desarranjo do crime organizado em situação de declínio econômico.

E, quando a corda do caos não prevenido estourar, mais uma vez ela terá que ser remendada pelas Forças Armadas, que terão de exercer papéis de segurança pública. Não há prioridade para as demandas e necessidades dos policiais.

Uma das primeiras lições de uma Academia Militar é que guerras são vencidas e derrotadas pela logística e pela capacidade de, por meio de ações de inteligência, antecipar possíveis riscos e situações. Não adianta informes vagos e/ou discursos “técnicos”, se a ponta da linha fica desguarnecida.

A verdade é que a crise de Covid-19 explicita algo que os policiais brasileiros precisam refletir. O atual presidente da República foi eleito com um discurso pró-polícia e parte expressiva dos policiais votaram nele por acreditarem que suas demandas seriam, enfim, atendidas. Porém, na medida em que o governo federal fica batendo cabeça e nossas autoridades ficam fazendo cálculos eleitorais e não enfrentam os problemas de Segurança Pública causados pela pandemia, nossos policiais estão abandonados à própria sorte.

Há um desfiladeiro entre o que foi vendido para os policiais e o que é feito na prática. E, muito provavelmente, quando os índices criminais começarem a sair do controle, não tenhamos dúvidas que o protagonismo reivindicado por Moro e Bolsonaro em 2019 será, rapidamente transferido para os governadores. Mas a realidade costuma tardar mas não falhar. Para além do extremismo político, manter a ordem social democrática exige compromisso inalienável com a transparência, com a verdade das evidências e, sobretudo, com valorização das instituições policiais e de seus profissionais.

 

*Professor da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Pedro Malasartes e a espiral do medo que nos governa https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/29/pedro-malasartes-e-a-espiral-do-medo-que-nos-governa/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/29/pedro-malasartes-e-a-espiral-do-medo-que-nos-governa/#respond Sun, 29 Mar 2020 15:37:40 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Pronunciamento1.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1350 A crise do Covid-19 escancarou que a energia vital da gestão de Jair Bolsonaro depende do medo e do pânico para não se esvair e reter Poder. O medo é potencializado por teorias da conspiração e por exércitos de zumbis virtuais que parecem, para ficar na analogia médica, acometidos de um surto de “Catarata”, que é a doença que compromete o cristalino dos olhos e torna a visão opaca e embaçada.

Manejando habilmente fluxos de informação e narrativas político-ideológicas a seu favor, Jair Bolsonaro soube até aqui explorar muito bem o ditado popular em “terra de cego quem tem um olho é Rei”. Muitos brasileiros acreditam em seu discurso pretensamente redentor e antisistêmico, independentemente das evidências e das ações concretas. Não importam dados, evidências ou conhecimento acadêmico e científico. O foco é a destruição narcísica de tudo o que não é espelho ou que não esteja subjugado pelos interesses de seu clã.

Sua gestão é a mais completa tradução do lendário Pedro Malasartes, personagem tradicional da cultura portuguesa. Nos contos populares, este personagem é descrito como exemplo de “burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos”. Visto desta perspectiva, o atual ocupante do cargo de Presidente da República nada mais seria do que uma caricatura grosseira das mazelas históricas, morais e políticas do país.

Mas reduzir todas essas mazelas à figura do atual presidente não é correto. Não podemos esquecer de significativas parcelas da sociedade que pegam carona nos arautos da insensatez (talvez Abraham Weintraub e Ernesto Araújo sejam os dois mais proeminentes, mas também Paulo Guedes e Sergio Moro, que aceitam fazer parte de um governo disruptivo) e dão sustentação a um projeto de poder aético e que pouco se preocupa com a vida.

E aqui um ponto central. Mesmo após incontáveis declarações e ameaças veladas à quebra da institucionalidade, o Governo Bolsonaro ainda conta com cerca de 30% de apoio entre a população. E isso pode ser constatado por três pesquisas de opinião divulgadas nos últimos dias com dados que avaliam a condução da “coronacrise” pela gestão Bolsonaro.

A primeira delas, encomendada pela XP Investimentos ao IPESPE, mostra que, no período de 16 a 18 de março, 30% dos investidores do mercado ouvidos pela corretora avaliaram a gestão como ótima e/ou boa (em fevereiro eram 34%). Já o Datafolha, que foi a campo entre 18 e 20 de março, constatou que a gestão da crise pela gestão Bolsonaro era aprovada por 35%  da população adulta com mais de 16 anos de idade. Por fim, a terceira pesquisa, do Instituto Ideia Big Data, feita entre os dias 24 e 25 de março, mostra que 28% aprovam a gestão Bolsonaro.

Diante de tais dados, é possível supor que há milhões de brasileiros que estão dispostos a aceitar a violência como linguagem e a insegurança como regra, já que o Estado de Direito pressupõe limites que, o tempo todo, estão sendo ultrapassados. E, se é possível explicar tal fenômeno, o pânico gerado pelo medo e pela incerteza não pode ser desconsiderado.

Medo da violência; do desemprego; de uma depressão econômica; de ser vítima do coronavírus. E, entre as múltiplas faces da violência, vemos população e profissionais de linha de frente (médicos, enfermeiros, policiais, bombeiros, entre outros) abandonados à própria sorte e à tradicional e perversa letargia que caracteriza a burocracia pública do país. Tudo temperado pelo descaso para com a vida e com a garantia dos direitos civis da população.

Tanto é que, se for da conveniência política, muitos irão tecer duras críticas à medidas que, por exemplo, tentem mitigar os riscos em presídios e nada além de “preocupações” retóricas com o aumento da violência contra a mulher será implementado. Falta-nos coordenação, articulação e, em especial, falta-nos vontade política e institucional para enfrentar o aprofundamento das agudas desigualdades estruturais que caracterizam a sociedade brasileira.

Disso, é pouco provável que críticas em relação à incompostura e/ou falta de liturgia do presidente diante dos riscos tenham ressonância. Pela análise dos dados das pesquisas citadas, isso só deve mudar se ao menos 7% dos atuais apoiadores mudarem de opinião e, com isso, isolar o discurso negacionista de Jair Bolsonaro a um importante porém minoritário segmento da população.

Enquanto sua voz ecoar tão forte e for aceita por  ao menos 1/3 da sociedade, mesmo que na prática seu governo recue e adote medidas baseadas nas melhores recomendações e evidências, nós estaremos sob um cenário em que não só Bolsonaro é rei, mas, pior, nós seremos o personagem do conto “A terra dos cegos”, de H. G. Wells, que detentor de visão normal, tenta convencer os demais de que ele tinha um sentido do qual eles eram destituídos; fracassa e, como resultado, a população decide arrancar-lhe os olhos para curá-lo de sua ilusão.

 

 

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Além do álcool em gel: a atuação democrática das polícias é uma grande arma de muitos males https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/23/alem-do-alcool-em-gel-a-atuacao-democratica-das-policias-e-uma-grande-arma-de-muitos-males/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/23/alem-do-alcool-em-gel-a-atuacao-democratica-das-policias-e-uma-grande-arma-de-muitos-males/#respond Mon, 23 Mar 2020 13:51:40 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Álcool-em-Gel-e-Polícia.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1342 A pedido do Faces da Violência, o Major PM Alan Fernandes, da Polícia Militar do Estado de São Paulo, e doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP, resenhou o texto que foi enviado ao blog intitulado “The Politics of Policing: a Pandemic Panic” (ver aqui), de James Sheptycki, professor de Criminologia da York University, no Canadá.

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Dizer que a pandemia de Coronavírus, nossa primeira doença X, de acordo com a classificação da OMS (Organização Mundial da Saúde), provocará mudanças em nosso estilo de vida, tanto nos próximos dias, como nos próximos anos, talvez já soe como senso comum. Mas, qual será seu alcance, para além das mudanças no cotidiano que já estão em andamento? Será que essas o atual cenário irá modificar as relações da sociedade com o Estado e, ainda mais, das próprias instituições públicas? No Brasil, os dias que se seguirão, podem determinar qual será nossa fotografia quando sairmos dessa. E sairemos.

Nesse exercício, trato agora de nossas polícias e, para isso, proponho ter por base um texto elaborado por James Sheptycki, de março de 2020, chamado As Políticas de Controle Policial: um Pânico Pandêmico – no original:  The Politics of Policing: a Pandemic Panic. A partir da discussão trazida pelo trabalho, convidamos o leitor a projetar, para o caso do Brasil, como faremos a gestão da crise que se coloca à nossa porta e como estaremos depois disso.

As principais preocupações do autor ligam-se mais ao futuro pós-pandêmico. Como as forças policiais vão se colocar frente a uma reconfiguração dos controles de fronteiras, preocupação que se intensificou com a atual crise sanitária, mas já presente com o cenário da imigração dos recentes anos? Como ela vai lidar com um cenário de declínio da economia formal e aumento das atividades criminosas que decorrerão da queda das atividades produtivas desse período? Mas, principalmente, em um diálogo com este artigo, como as polícias vão lidar com o acionamento de tecnologias de restrição de mobilidade social-geográfica e com um novo panorama de ordem pública, em que a high policing, voltada à sustentação de uma ordem política, se coloca à frente da low policing, destinada à gestão de uma ordem social negociada e utilização de meios mais persuasivos que coercitivos?

Para explicar o papel das polícias nos diferentes países, Sheptycki defende que existe uma estreita ligação entre a atuação policial e a relação que se estabelecem entre sociedade civil, o Estado e o mercado na provisão de aspectos elementares da vida social, como saúde e educação. Retoma, assim, os dilemas entre os modelos liberal e socialdemocrata (aliás, nada tão atual, quando se discute o alcance da saúde pública na gestão desta crise). Para ele, mais que um tema acadêmico em si, essa relação tripartite (Estado-sociedade-mercado) e, por consequência, a atuação da polícia, determinou certos insucessos na gestão da crise sanitária nos Estados Unidos, onde a perda da legitimidade dos órgãos policiais estão associados à incapacidade de o Estado americano prover, historicamente, melhores condições sociais à sua população.

Contudo, das variações trazidas anteriormente, Sheptycki traz que as polícias possuem determinadas características que a aproximam globalmente. Elas envolvem, quaisquer que sejam os países, um conjunto de práticas institucionais de fiscalização e vigilância, que repousam na sua capacidade de rapidamente fazer uso da força, na sua tarefa de reproduzir uma ordem social, gerir riscos e insegurança política.

Por essa razão, serão, na atualidade, mais demandadas na gestão do controle de populações, testando, severamente, os limites entre uma polícia em que promova novas configurações de uma ordem pública, cada vez mais mandatária, sem abandonar o lado voltado ao atendimento dos aspectos mais triviais da vida social. Ou, resumindo as preocupações do autor, como a polícia se comportará para manter um papel democrático em um cenário que vislumbra um agravamento das desigualdades sociais geradas por uma restrição de acesso a bens econômicos e, no limite, de saúde para tratamento da Covid-19?

Mais do que respostas, a intenção do autor foi a de alertar que novas configurações de poder estão se colocando aceleradamente no mundo, que podem nos levar a uma sociedade orwelliana, em que liberdade e justiça sejam tragadas na mesma medida em que os efeitos do vírus seja controlado.

De terra brasilis, a responder às preocupações do autor, cabem alguns alertas. São preponderantes, inquestionavelmente, medidas para que sejam evitadas as infecções e mortes, mesmo que elas requeiram o emprego das polícias na restrição de circulação de pessoas. Mas também é momento de projetarmos o futuro. As forças policiais brasileiras sempre tiveram o caráter de construir suas histórias no desenrolar dos fatos, o chamado, “trocar o pneu do carro com ele andando”.

Porém, não obstante o esforço de policiais ponta-de-linha e gestores em prospectar cenários, a atual situação é imprevisível não somente pelos efeitos epidemiológicos, mas por todas as consequências que se avizinham. Talvez, até por essa razão, seja oportuno contradizer os próprios argumentos de Sheptycki e dizer que a polícia não é uma decorrência da economia política, mas que ela própria pode, nas suas estratégias e práticas, promover igualdade e justiça social, aprofundando seu caráter de atuar como um pacificador social. Talvez assim possamos, na gestão de uma mesma crise, combater mais de um vírus.

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Nota do Faces da Violência: Em um esforço de captar os aprendizados e se adiantar aos seus reflexos da Pandemia sejam tarefa dos gestores brasileiros, pedimos para que todos os policiais e pesquisadores que tiverem interesse em compartilhar análises e protocolos de atuação das forças de segurança/sanitárias que regulem o papel das forças de segurança no mundo envie seus textos, links e informações para contato@forumseguranca.org.br. Alan Fernandes está coordenando essa coleta de dados e, em breve, iremos divulgá-los com os devidos créditos de autoria e colaboração.

 

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O Brasil diante de um dos mais difíceis testes de caráter da história https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/15/o-brasil-diante-de-um-dos-mais-dificeis-testes-de-carater-da-historia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/03/15/o-brasil-diante-de-um-dos-mais-dificeis-testes-de-carater-da-historia/#respond Sun, 15 Mar 2020 18:13:53 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/03/Bolsonaro150320-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1331 A pandemia do Coranavírus está testando a capacidade da humanidade em lidar com um risco de escala global mas que, para ser mitigado, não depende apenas de ações de governos e nações. Depende do caráter dos governantes e dos indivíduos para que a ordem, a segurança e a saúde públicas sejam mantidas e preservadas.

E, no patriotismo de botequim, que vocifera contra as instituições mas que coloca todos em risco em nome do hedonismo egoísta que lota bares e manifestações goumert de tiozões em suas possantes motos e/ou jetskis (emblemático que as duas primeiras fotos compartilhadas pelo Twitter do Presidente Jair Bolsonaro sejam de motoqueiros de meia idade e pilotos de jetskis), a violência simbólica que toma conta do Brasil é de tal ordem que acaba por desconstruir por completo noções mínimos de cidadania e ética pública.

No mau caratismo de alguns, que se acham patriotas sem saberem ao certo o significado histórico deste conceito, o Congresso é atacado como inimigo do povo. O problema é que, por mais sujeito a criticas que esteja, poucos se deram conta que, neste momento de pandemia, Rodrigo Maia e David Alcolumbre têm agido exatamente como aliados da área econômica do governo e resistido a jogar por terra o projeto reformista de boa parcela do mercado financeiro e do setor privado que dá sustentação ao governo Bolsonaro. E por quê?

Como lembra o professor Arthur Trindade, da UNB, caso o Congresso determine o fechamento da Câmara e do Senado por mais de duas semanas em função do Coronavírus, já que mais de 20 mil pessoas circulam diariamente por lá, dificilmente alguma medida que exija alteração Constitucional deve ser aprovada este ano. Uma PEC, para ser aprovada, precisa passar por 40 sessões, independentemente do quórum. E, considerando que este ano é ano de eleições municipais, que deve suspender sessões em outubro, as reformas tributária e administrativa não teriam tempo hábil para serem aprovadas em 2020.

Mas, ao invés de buscar consensos e administrar os conflitos sociais, o governo aposta na capitulação e na submissão dos demais poderes. Adota uma postura tóxica de destruir tudo o que toca e se aproxima, na ideia de imputar aos outros o erro e o pecado, mas esquece-se que, no Estado de Direito Democrático, a fonte sagrada é a Constituição e não a lei do mais forte.

Bolsonaro investe contra um Congresso que tem sido bastante simpático às suas propostas de reformas econômicas. Parece querer o caos para poder justificar uma ruptura institucional que lhe permita governar sem os limites das leis.

Mas ele não está sozinho. Quase como que em uma crise de abstinência de protagonismo causada pela má condução do episódio do motim da polícia militar no Ceará e pelo Coronavírus, que trouxe destaque para o Ministro da Saúde, o Ministro Sergio Moro tentou ressurgir no noticiário divulgando que pretende autorizar nos próximos dias a internação compulsória de pessoas suspeitas de contaminação pelo Coronavírus.

Enquanto Bolsonaro passeia sem máscara no meio da manifestação em Brasília e não assume a coordenação do enfrentamento dos efeitos do Coronavírus, que não são só de saúde pública, vamos acumulando riscos e dilemas. O que era para ser uma discussão sobre ações coordenadas virou ação isolada e fragmentada de cada pasta e na linha da força, sem diálogo ou debate prévio.

Várias Unidades da Federação estão tendo que pensar estratégias para conter a transmissão do vírus no sistema prisional e evitar mortes e rebeliões – considerando a taxa de letalidade anunciada de 3,74%, temos que mais de 26,5 mil presos podem morrer nos presídios nos próximos meses casos a pandemia tomasse todo o sistema (o mais factível é que Cadeias Públicas, superlotadas, sejam as mais afetadas e atinjam, só em São Paulo, cerca de 500 mortes).

Mas não só, a PMERJ contraria recomendação do Governo estadual e não dispersa manifestação de apoio ao Governo Bolsonaro, Gustavo Bebianno morre e, ao invés de afastar qualquer dúvida em relação ao motivo da morte, o corpo é enterrado sem nenhuma informação sobre autópsia, a morte de Marielle Franco e Anderson Gomes completa dois anos sem avanços sobre a identificação do mandante e da razão dos assassinatos, entre vários outros exemplos.

O mais angustiante é que, ao fim e ao cabo, a sociedade civil também tem dado exemplos de que Jair Bolsonaro e seu projeto populista não chegou de Marte e nos dominou.

Enquanto lotamos bares, praias, shoppings e, no máximo, estocamos papel higiênico, vemos Itália e Espanha, que adotaram duras medidas de contenção, reconhecendo e aplaudindo os profissionais de saúde pelos esforços em salvar vidas. O Brasil está diante de um dos mais difíceis testes de caráter aplicados pela história e temo que sejamos reprovados de forma avassaladora.

Afinal, Bolsonaro é só a tradução mais acabada do caráter de parcela significativa da população.

 

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