Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Violência policial, a ‘Hidra de Lerna’ brasileira https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/03/09/violencia-policial-a-hidra-de-lerna-brasileira/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/03/09/violencia-policial-a-hidra-de-lerna-brasileira/#respond Sat, 09 Mar 2019 21:21:28 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/03/15265223655afce1fdc5f09_1526522365_3x2_md-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=671 As polícias do país contam com profissionais altamente qualificados e treinados. Temos corporações que inovam e exportam práticas para diversas polícias do mundo, muitas por intermédio de programas de assistência técnica patrocinados pelas Nações Unidas.

Quando querem, sejam as polícias militares, civis e/ou federais, conseguem demonstrar um padrão de qualidade que não faz feio para nenhuma instituição de países mais ricos e desenvolvidos. São vários os projetos que estão aí para comprovar esta tese, a começar pelo GESPOL (Sistema de Gestão da Polícia Militar de São Paulo), iniciado em 1996 e que está baseado em três pilares doutrinários: Polícia Comunitária, Direitos Humanos e Gestão pela Qualidade.

O Gespol contribuiu para que a PM paulista tivesse condições políticas e organizacionais para não ser extinta, em 1997, após pressões nacionais e internacionais decorrentes do caso “Favela Naval”, que consistiu na exibição de uma reportagem em 31 de março de 1997, na TV Globo, mostrando um grupo de policiais militares extorquindo e executando pessoas numa blitz na Favela Naval, em Diadema, na Grande São Paulo.

E, em uma perspectiva histórica, vale pensarmos a importância estratégica dos comandantes e dos mecanismos de controle criados. Hoje, se não fossem os comandos, o episódio da “Favela Naval” muito provavelmente seria “aplaudido” pelos exércitos de Bots e Orks, seres míticos imortalizados nas obras de J.R. Tolkien, que infestam as redes sociais e vão conformando a estética da violência, do ódio e do ressentimento em que estamos imersos.

Se o estado de espírito de 2019 estive presente em 1996, o Gespol seria visto como um projeto menos importante e talvez não teríamos as polícias militares da forma como elas existem. Estamos vivenciando, nos últimos meses, o fortalecimento de discursos gritando por mais liberdade para que os policiais da linha de frente decidam o que, quando e como uma ação violenta será ou não legítima em termos legais.

E o Carnaval, por seu caráter catártico, trouxe vários exemplos à tona. O primeiro envolveu a Polícia Militar de MG, quando esta resolveu proibir manifestações de cunho político em blocos de Carnaval em Belo Horizonte. O STF já votou, em 2011 (ADI sobre Marcha da Maconha) pelo não acolhimento de censura prévia de conteúdo e não podemos deixar que as opiniões individuais de oficiais ou praças sejam as posições institucionais.

O segundo exemplo é o resultado do relatório da Ouvidoria das Polícias de São Paulo, que concluiu que a Corregedoria da PMESP só instaura 3% de todos os IPM (Inquéritos Policiais Militares) envolvendo mortes por policiais. Os 97% restantes ficam sob responsabilidade dos Batalhões. Temos aqui, a meu ver, um sério problema de supervisão e controle que precisaria ser alterado para podermos, inclusive, reivindicar as necessárias proteções jurídicas aos policiais que estão fazendo o policiamento na ponta de linha.

O UOL, do grupo que edita a Folha de S.Paulo, publicou reportagem sobre uma guarnição chefiada pelo filho do Deputado Cel. Telhada, que matou um “suspeito” em condições que precisam ser esclarecidas. Não precisou nem 24 horas para se notar que o nível de críticas feitas à reportagem impressionava pelo ativismo político e pela rapidez com que se considerou o episódio legítimo.

Mas as críticas não deram conta de explicar que, em grande parte das manifestações, a legitimidade da ação foi dada como certa e líquida, mesmo que, técnica e legalmente, não tenha havido perícia e que a vítima tenha sido removida do local contrariando portaria da SSP que determina que o corpo não seja removido, entre outros aspectos técnicos, jurídicos e legais. E, ao proceder desta forma, isso se torna notícia, já que é indicativo de, no mínimo, não conformidade com os regulamentos.

Ninguém que trabalha com polícias descarta de antemão que a ação possa ter sido legítima, pois este é um resultado possível da ação policial e por isso mesmo previsto em nosso arcabouço jurídico. O que se está aqui questionando é que só a investigação isenta pode dotá-la da legitimidade jurídica e não podemos, no jogo do bem contra o mal ou do policial x o “bandido”, achar que pedir controle e transparência seja visto como algo que atente contra as polícias. Não existe carta branca no ordenamento jurídico e constitucional brasileiro e não existe policial acima de qualquer suspeita.

O terceiro exemplo são as inúmeros denúncias de agressões sofridas por foliões durante o Carnaval. Não é possível aceitar que uma polícia que tem protocolos e procedimentos de alto nível, faça vistas grossas às faltas fartamente noticiadas e filmadas, sejam elas motivadas por pressão de sobrecarga de trabalho ou por desavenças e preferências ideológicas.

Vejamos a título de comparação a situação do caso que resultou na interrupção do Bloco do Fervo da Lud, no Rio de Janeiro. Naquela situação, tecnicamente falando, há inúmeros problemas que poderiam ter sido evitados. Não é um simples caso de conduta individual inadequada. É a falência do sistema de governança e supervisão das polícias.

Aproveitando que nosso imaginário voltou a ser povoado por mitos e crenças cegas, é possível dizer que a violência policial se assemelha muito à Hidra de Lerna, a serpente-dragão da mitologia grega que possuía nove cabeças, uma das quais imortal. Hércules, o semideus, foi encarregado de matar o monstro, mas para cada cabeça mortal que ele cortava com sua espada, duas novas brotavam em seu lugar.

Diante de tal ameaça, Hércules ateou fogo na Hidra e, por fim, cortou-lhe a cabeça imortal e a enterrou sob uma pesada pedra, onde ela teria permanecido viva. Moral da história, vemos que Hércules de fato não matou a Hidra, ele apenas a “varreu para debaixo do tapete”. Sua cabeça imortal ficou à espera para ser desenterrada e engolir as próprias instituições.

Tenho reiterado a importância das polícias para a segurança pública no Brasil e, até por isso, falo tranquilamente que se continuarmos a fortalecer posições políticas que hoje defendem a violência policial, estamos, no limite, enfraquecendo as próprias polícias. Defender a agenda de direitos da Constituição Federal não nos faz inimigos das polícias, muito pelo contrário.

Se hoje há uma forte adesão de policiais e juízes à agenda do Governo Bolsonaro, isso é um direito e uma liberdade individual. Mas, ao aceitar que opiniões individuais, por alinhadas ao momento, sejam tomadas como institucionais, estaremos esgarçando os mecanismos de controle e chocando o ovo, ou melhor, estaremos desenterrando a cabeça imortal da Hidra. Hoje segmentos significativos dos policiais concordam com medidas extralegais e violentas, emulando a ideia autoritária e perversa da urgência da eliminação dos inimigos do povo; amanhã, quando um oficial ou delegado pensar diferente, terá sua ordem acatada, será eliminado ou será expurgado?

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Polícia Militar de Minas Gerais é acusada de censurar bloco no Carnaval de BH https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/03/02/policia-militar-de-minas-gerais-e-acusada-de-censurar-bloco-no-carnaval-de-bh/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/03/02/policia-militar-de-minas-gerais-e-acusada-de-censurar-bloco-no-carnaval-de-bh/#respond Sat, 02 Mar 2019 21:27:56 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/03/15515638205c7afc2c12e4f_1551563820_3x2_md-150x150.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=656 Com texto ao final, especialmente redigido para o Blog, de Jacqueline Muniz, do DSP/INEAC/UFF.

A Polícia Militar de Minas Gerais afirmou à imprensa neste sábado (2) que concorda com a posição do Capitão Lizandro Sodré do 13º Batalhão de Belo Horizonte, que advertiu os organizadores do tradicional bloco mineiro “Tchanzinho Zona Norte”, ontem (1), para que não criticassem o presidente Jair Bolsonaro e elogiassem o ex-presidente Lula.

A Polícia Mineira, que é uma das corporações policiais mais tradicionais do país e que, na contramão deste tipo de medida, tem investido em modernas metodologias de gerenciamento por resultados (que aqui parecem que não foram adotadas), caiu na tentação de achar que pode censurar a população e dizer o que ela pode ou não fazer em um bloco de Carnaval; optou por referendar posição política pessoal de um de seus oficiais e transformá-la em posição institucional.

E neste ponto que o porta-voz da corporação errou feio, mesmo tendo formação jurídica, uma exigência para todos os oficiais da PMMG. Não há norma jurídica que obrigue o manifestante a pautar previamente seus conteúdos à autoridade pública. Os organizadores do ato/bloco têm que antecipar suas estratégias operacionais, como finalidade (o STF já garantiu desde 2011 a liberdade de opinião), trajeto, horário, previsão de participantes.

Se a Polícia constatar excessos indiciários no correr do ato (de natureza criminal ou administrativa), proceda-se conforme a lei, isto é, submeta-se o caso concreto ao sistema de justiça, como de regra (delegacia, juiz de garantias, etc). Fora disso, é censura ideológica. A manutenção da ordem pública não pode ser argumento para censura, já que o Carnaval já é, em termos táticos e operacionais, um operação em que os protocolos de controle de distúrbios civis já consideram complexa e permeada por intercorrências de diversas naturezas.

O Comando Geral da PMMG deveria se manifestar sobre o caso.

Tanto é verdade que em outros estados (veja os casos de RJ e SP), as críticas estão sendo feitas sem nenhum tipo de constrangimento ou controle prévio, em reforço a ideia de que não cabe à polícia definir o que pode ou não ser dito. Mesmo em Minas, em anos anteriores, blocos sempre tiveram caráter profundamente contestador e autoridades eleitas já foram duramente criticadas. Não podemos achar que o Poder é isento de críticas. É mais do que esperado que depois de um processo eleitoral tão polarizado, o Presidente Jair Bolsonaro seja criticado no Carnaval. Não podemos ver problema nisso, sob o risco de enfraquecermos a vitalidade democrática.

Mas qual o limite da ação policial? É possível que o comando de uma operação interdite por juízo de viés ideológico, em pleno exercício de competência legal (proteger a legalidade e quem a exerce no plano da opinião), uma manifestação pública devidamente informada e autorizada a ocupar o espaço público?

Para responder a essa questão, o Blog pediu à Professora Jacqueline Muniz, do Departamento de Segurança Pública, da Universidade Federal Fluminense – UFF, e hoje uma das maiores especialistas do mundo sobre polícia e policiamento, uma reflexão sobre o limite dos mandatos policiais no Brasil. Em um texto forte, Jacqueline Muniz nos alerta para os riscos das polícias se converterem em corporações sem controle.

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Polícia descontrolada é policia dominada
Por Jacqueline Muniz – DSP/INEAC- UFF

No Brasil, o mandato policial corresponde a um cheque em branco preenchido conforme a conveniência dos senhores da guerra diante da conivência com mercadores da proteção. O mandato policial é intencionalmente uma procuração em aberto que permite a manipulação politico partidária para atender a projetos escusos de poder e, ainda, a sua apropriação particularista para assegurar negócios ilícitos e caixa 2 de campanhas eleitorais.

Entre nós, o poder DE polícia, principal delegação que uma sociedade livre e plural concede ao Estado para agir em seu nome, é propositalmente convertido em mercadoria: o poder DO policial, o poder DA policia para garantir um comercio de valores, direitos e bens que incluem a nossa vida e a vida do próprio policial. Daí a ausência proposital de uma doutrina profissional do uso potencial e concreto de força que estabeleça os meios de ação (logística), defina os modos do agir (táticas) à luz dos fins determinados pela Constituição.

Daí a existência de um limbo normativo-procedimental que mascara a decisão e ação policiais impossibilitando sua aferição de mérito pela própria polícia, pelo governante, pelo MP e pela Justiça. Aqueles que deveriam governar a polícia tornam-se animadores de auditório, eles mesmos reféns da permissividade recíproca que inauguraram. Esta autonomização predatória do poder de polícia tem rendimento politico e econômico: perverte a POLÍCIA DO BEM em POLÍCIA DE BENS. Faz da polícia e dos policiais, uma moeda de troca. Torna a polícia indulgente, torna os policiais indigentes, dependentes eternos de favores de cima, de baixo e ao redor.

Transforma os policiais em mortos-vivos de patrulhamento, iludidos com a síndrome da pequena autoridade, frequentemente desmoralizada na esquina por alguma carteirada dada ou propina oferecida por “filhinhos de papai” que hoje são muitos. É preciso não se esquecer que a polícia é a política em armas! Se seu vigia fica mais forte que você, ele te dá um golpe, senta na sua cadeira e governa em seu lugar. Se seu vigia é fraco demais, ele oferta sua lealdade a quem lhe oferecer mais vantagens.

A história da democracia, da estabilização do exercício do poder nos ensina que a Espada não produz autogoverno e nem é capaz de limitar, por vontade própria, a extensão de seu corte. A espada entregue a si mesma, vira objeto de disputas entre várias mãos oportunistas e cabeças perturbadas por suas razões desiguais de cor, gênero, classe, renda, etc. A espada entregue a si mesma, corta a língua do verbo da política, qualquer política progressista ou conservadora, e rasga a letra da lei, qualquer lei igualitária ou desigual.

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Nota: O Blog deixa aberto o espaço para a PMMG caso ela queira dar sua opinião acerca do episódio.

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