Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A Operação Lava Jato e as Ciências Sociais https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/04/a-operacao-lava-jato-e-as-ciencias-sociais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/04/a-operacao-lava-jato-e-as-ciencias-sociais/#respond Tue, 04 May 2021 14:34:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/975036-09-09-2015-dsc_2143-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1754 A essa altura, já não se sabe mais o que é crítica à obra de Faoro, o que é crítica às palavras de Barroso, ou à ação dos integrantes da Lava Jato. Ou o que é pura e simplesmente uma tese sem pé nem cabeça, lançada de forma leviana, para aproveitar a debacle da Lava Jato para acertar contas com um dos grandes intérpretes do Brasil

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*

 

A importância da Operação Lava Jato para os destinos políticos do país, assim como para o funcionamento da justiça penal e o combate à corrupção, tem dado margem a muitas publicações, não apenas no campo do processo penal, mas também no das ciências sociais. A partir do reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da incompetência do juízo de Curitiba para julgar os processos envolvendo o ex-presidente Lula, e do reconhecimento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para o julgamento do ex-presidente, uma nova leva de artigos tem sido publicados, representando estas diferentes e muitas vezes conflitantes interpretações sobre a operação, seu final melancólico e seu significado.

Entre seus defensores, críticos das recentes decisões do Supremo, se encontra, em lugar de destaque, o jurista e sociólogo do direito Joaquim Falcão. Em recente artigo publicado no Estadão (23.04.2021 – O que o STF não respondeu ao declarar Moro suspeito), fazendo coro ao voto do ministro Barroso, Falcão sustenta que as recentes decisões do STF são fruto de “vingança judicializada” contra os avanços do que considera um “direito processual sistêmico”. Segundo ele, não há estado democrático de direito sem um direito processual eficiente (para condenar, e não para garantir o exercício pleno do direito de defesa). Trata-se, portanto, de uma leitura que considera os métodos da Lava Jato adequados e necessários para alcançar os fins desejados.

Semelhante visão tem sido apresentada por Cláudio Beato, sociólogo e professor da UFMG, que em artigo publicado no O Globo (20.03.2021 – Os (des)caminhos da justiça criminal brasileira) contrapõe a perspectiva garantista, que “busca esgotar todos os ritos legais, dando amplo direito de defesa, a fim de minimizar erros ao longo do sistema”, a um outro modelo emergente, que buscaria, “ao contrário, a celeridade processual e o julgamento por evidências”. Sustentando que o caminho para a modernização da justiça para o combate à corrupção passa por essa segunda alternativa, promovida por “aguerridos membros do Ministério Público ou novas versões de algumas polícias estaduais e federais”, Beato critica o aparato legal defasado (sem dizer quais mudanças deveriam ocorrer, e sem considerar o grande número de reformas legais ocorridas a partir de 88). Beato reconhece que abusos foram cometidos (“ações arbitrárias”, “excessos”) e critica o ex-juiz e seus aliados no MP e na PF por “cometeram o erro primário de confundir-se com esse movimento político em ascensão” (o bolsonarismo). A derrota da Lava Jato seria fruto da mistura de ação judicial e interesses políticos, que levou seus protagonistas ao confronto com “uma curiosa congruência de interesses aparentemente opostos de direita e esquerda, para que, como sempre ocorreu, o braço da lei não alcance os poderosos”. Ou seja, não foram os abusos praticados, mas a inabilidade política dos seus operadores, que teria viabilizado a nova maioria no STF e o fim da operação.

Uma outra chave de leitura é aquela apresentada por pesquisadores vinculados ao Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, entre os quais o professor Roberto Kant de Lima, para quem, historicamente, “a ética dos operadores do direito naturaliza a proximidade organizacional e social entre promotores e juízes sem se questionar sobre as razões inquisitoriais de sua organização”(JOTA, 05.03.21). Para Kant de Lima e Pedro Heitor Barros Geraldo, a mudança de regimes políticos ao longo da história do Brasil produziu uma transformação das finalidades das instituições judiciais, mas não necessariamente das práticas de tomada de decisão. O que caracteriza para estes autores o “espírito da Lava Jato” é a obsessão persecutória contra uma suposta e atávica corrupção “sistêmica” entre os políticos e empresários, que os procuradores buscavam demonstrar a todo custo.  O “espírito da Lava Jato” encarnou em práticas conhecidas e naturalizadas pelos atores da justiça. A recorrente corroboração destas práticas, inclusive pelos órgãos correcionais, produziu um ambiente propício para o uso ilimitado dos poderes judiciários. Neste sentido, a Lava Jato seria a reiteração do modus operandi da justiça brasileira, inquisitorial e seletiva.

Na mesma linha, mas destacando a dimensão da inovação frente às permanências, destacamos, em artigo publicado no blog Faces da Violência, da Folha (Azevedo e Costa, 01.04.2021 – Lava Jato: Crônica de uma morte anunciada) que a Lava Jato, assim como outras operações e processos não tão midiáticos de combate à corrupção, foram a resultante de mudanças institucionais introduzidas a partir da CF de 88, que transformou a Polícia Federal em Polícia Judiciária, criou o Ministério Público Federal e a Justiça Federal. Ou seja, a CF 88 criou o Sistema de Justiça Criminal no âmbito federal. Juntamente com uma série de inovações legislativas em matéria penal e processual penal, concluímos que a Operação Lava Jato foi o resultado ambíguo de um processo de aperfeiçoamento institucional, distorcido pela ambição de seus operadores, de refundar o sistema político a partir de um processo judicial.

Uma nova interpretação veio à tona recentemente, em artigo publicado pelo cientista político Leonardo Avritzer no blog “A Cara da Democracia”, publicado pelo UOL (24.04.2021 – O fim da Lava Jato e o patético Barroso). Comemorando a decisão do STF, por 7 votos a 2, que reconheceu a suspeição de Sérgio Moro, Avritzer sustenta que a derrota da Lava Jato constituiria também a derrota de uma interpretação equivocada do Brasil, apresentada por Raymundo Faoro em sua obra “Os Donos do Poder”, lançada originalmente em 1959, que teria sido, segundo ele, “resgatada” pelos justiceiros de Curitiba. Para sustentar a responsabilidade de Faoro pela Lava Jato, Avritzer desqualifica a obra, acusando-a de reduzir os problemas do Brasil à corrupção, de realizar operações de “qualidade acadêmica duvidosa”, e de representar “o pior texto já escrito sobre a história do Império” (segundo “alguns”). Com base nesta argumentação (de qualidade acadêmica bastante duvidosa), Avritzer extrai a conclusão de que a Lava Jato poderia ser entendida como um “faorismo judicial”, caracterizado pelo ativismo judicial e o punitivismo seletivo. Sustenta, assim, que o verdadeiro projeto (de Faoro ou de seus “seguidores”?) seria “a destruição sistemática do Estado brasileiro”, e na falta de outro caminho teria pavimentado a militarização do governo conduzida por Bolsonaro. Avritzer vai além, sustentando que o “faorismo judicial” estaria disposto a deixar de lado quaisquer “arroubos ligados ao liberalismo”, como o direito de defesa, para destruir o “estamento burocrático”. Através, diga-se, de um braço do próprio estamento burocrático.

A essa altura, já não se sabe mais o que é crítica à obra de Faoro, o que é crítica às palavras de Barroso, ou à ação dos integrantes da Lava Jato. Ou o que é pura e simplesmente uma tese sem pé nem cabeça, lançada de forma leviana, para aproveitar a debacle da Lava Jato para acertar contas com um dos grandes intérpretes do Brasil. Não cabe aqui fazer a defesa da obra de Faoro, ou precisar os conceitos que ela apresenta, embora os ataques que vem sofrendo denotem a importância dessa discussão, já feita, e de forma brilhante, por um outro professor da UFMG, Juarez Guimarães, por ocasião da passagem dos 50 anos de “Os Donos do Poder” (Guimarães, 2009 – Raymundo Faoro, pensador da liberdade).

Basta aqui, seguindo os argumentos de Guimarães, lembrar que “o centro da narrativa de Faoro, sinal expressivo de sua importância na formação de nossa cultura política, é entender por que prevaleceu em nossa história, no chamado período monárquico ou no republicano, um Estado assentado em uma soberania não resultante de um contrato livre entre cidadãos”. Faoro encontra a explicação na formação patrimonialista estamental do Estado português, que no contexto particular da Independência do Brasil, promovida por membros da própria família real portuguesa, transmitiu-se como instância estruturadora da cultura política brasileira em formação, “cindindo e deformando a formação de uma cultura liberal de direitos e passando por vários processos históricos transformativos e adaptativos até a contemporaneidade”. Compreendendo a dimensão do autor e da obra, Guimarães reconhece que Faoro “foi o primeiro entre nós a construir uma narrativa de longa duração a partir do critério da liberdade política, entendida em sua chave republicana, como autogoverno de cidadãos autônomos”. Ou seja, o que pretende Faoro “é a crítica histórica do Estado fundado sem contrato social democrático, encerrado em uma lógica patrimonial, sem uma ordem simétrica de direitos e deveres, que se atualiza de forma permanente pela particularização arbitrária da sua ação política e pela privatização de suas funções econômicas. O que resulta dessa crítica não é propriamente a negação do Estado ou a sua ausência, mas a necessidade da democratização de seus fundamentos, uma ordem simétrica de direitos e deveres de cidadania e a afirmação de critérios universalistas de sua ação política econômica”.

A forma como os procuradores da Lava Jato, que já confundiram Hegel com Engels, interpretam e utilizam a obra de Faoro para legitimar suas ações, diz muito pouco sobre a obra de Faoro. Que um ministro do Supremo se utilize dos “Donos do Poder” para fundamentar seu consequencialismo, subvertendo os meios pelos fins do processo penal, diz muito sobre certa matriz autoritária de decisionismo jurídico, mas responsabilizar por isso um tribuno da liberdade e dos direitos e garantias fundamentais, inclusive em tempos obscuros, seria o mesmo que responsabilizar Cristo pela Santa Inquisição.

Mas, ainda com Guimarães, é importante lembrar que aquele que, na condição de presidente nacional da OAB, em discurso memorável, afirmou o princípio de que “o Estado não pode ser o inimigo da liberdade”, continua sendo uma referência central para que possamos compreender a longa duração dos processos históricos e os desafios colocados para a afirmação da democracia no Brasil. Não faremos isso acreditando que o clientelismo, o apadrinhamento, o direcionamento de recursos públicos de forma seletiva e pouco republicana, as rachadinhas e os caixas 2 para financiamento de campanhas eleitorais são um problema menor ou já superado. Muito menos desacreditando ou minimizando a importância dos mecanismos institucionais para o esclarecimento e a responsabilização criminal dos que pretendem perpetuar sinecuras e dinastias de poder político patrimonial.

 

Sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS

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Na edição desta semana, leia também “Covid-19 e morte de policiais: crônica de uma tragédia anunciada” e “Tráfico de drogas na percepção policial e os custos para a sociedade”.

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Delegados federais: entre a autonomia e a política https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/delegados-federais-entre-a-autonomia-e-a-politica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/03/delegados-federais-entre-a-autonomia-e-a-politica/#respond Mon, 03 May 2021 17:32:58 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/faces03.05-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1740 Os delegados têm encontrado na aproximação com a política ou na defesa da autonomia da PF caminhos para a ascensão aos cargos mais altos da corporação e ao primeiro escalão do governo federal

Lucas Batista Pilau*

 

No último dia 30 de março, Anderson Torres, delegado federal, tomou posse como ministro da Justiça e Segurança Pública. Em um de seus primeiros atos, Torres nomeou Paulo Maiurino à Direção-Geral da Polícia Federal. Ambos apontados como delegados próximos da política brasileira, a chegada de Torres ao MJSP e de Maiurino à DG-PF indicam que as vias de ascensão dos delegados a cargos de prestígios são mais largas e difusas do que imaginávamos. De um lado, podemos situar os delegados atrelados aos discursos de autonomia e de defesa da capacidade “técnica” da instituição. De outro, estão aqueles com largo investimento político em suas carreiras.

O acúmulo histórico pelas instituições judiciais brasileiras em torno do que se pode chamar de “autonomia” reflete as aspirações corporativas de órgãos como Poder Judiciário e Ministério Público para serem vistos ao exterior das demandas do tabuleiro político. Nas últimas duas décadas, com investimentos crescentes do governo federal e a consolidação dos delegados federais no poder no órgão – após embates travados com militares e as demais carreiras da corporação – a Polícia Federal também vem encampando a bandeira da autonomia, em especial aquela sobre suas investigações.

Embora seja uma pauta antiga da instituição, a deflagração da Operação Lava Jato fez com que o discurso da autonomia ganhasse força ao desaguar na mesma retórica da luta anticorrupção. Desde o início dos anos 2000, a PF tem investido na criação de delegacias especializadas no combate à lavagem de dinheiro, em marcar presença junto à Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) e em produzir e propagar a imagem de uma polícia capaz de levar à prisão as elites políticas e econômicas do país. Esses e outros movimentos fortaleceram a posição da PF no campo jurídico e na defesa de recursos corporativos, tais como o inquérito policial e a colaboração premiada.

Em 2019, com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República e a chegada de Sergio Moro ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, vários delegados da Lava Jato de Curitiba ascenderam às principais posições da PF e a cargos no MJSP. Entre eles, como casos representativos, estavam Maurício Valeixo na Direção-Geral da PF, Igor Romário de Paula na Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado (DICOR), Márcio Adriano Anselmo na Coordenação-Geral de Repressão à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (CGRC-DICOR), Erika Mialik Marena no Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) e Rosalvo Ferreira Franco na Secretária de Operações Policiais Integradas (SEOPI).

No entanto, a construção do poder político dos delegados parece nem sempre estar atrelado às suas funções como polícia investigativa e judiciária, havendo aqueles que, durante sua carreira, transitam largamente pela burocracia estatal. Um evento ilustrativo desse fenômeno ocorreu em janeiro de 2020, quando o então DG-PF Maurício Valeixo enviou um ofício à secretaria-executiva do MJSP pedindo que a pasta adotasse medidas para o retorno de policiais federais cedidos ao governo federal, alegando um “déficit preocupante”. Na época, segundo o DG, eram 191 servidores cedidos, sendo que 60 estavam lotados no MJSP.

Segundo dados coletados no Diário Oficial da União (DOU), somente em 2020 foram identificadas 39 cessões e requisições de delegados federais para outros órgãos, confirmando uma preponderância do MJSP como destino desses agentes (48,7% do total de cessões).

Gráfico 01: Cessões e Requisições de Delegados Federais (2020)

Fonte: elaboração do autor, com base em dados coletados no Diário Oficial da União (DOU)

Como os dados coletados indicam, as cessões e requisições de delegados da PF também se estendem para outros domínios do Estado brasileiro, tais como as secretarias de segurança pública dos estados, os tribunais superiores, a presidência da República, o Conselho da Justiça Federal, entre outros. No entanto, ainda sabemos pouco sobre os efeitos desses investimentos políticos realizados pelos delegados ao longo de suas carreiras, em especial as dimensões do contato com movimentos político-partidários e as atividades junto a governos estaduais. Quais os impactos dessa circulação após o retorno dos delegados para a instituição?

Nesse ponto, o próprio ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, foi recrutado diretamente da secretaria de segurança pública do Distrito Federal, do governo de Ibaneis Rocha (MDB-DF). Antes disso, também havia sido chefe de gabinete do ex-deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR), também delegado de carreira. Seu escolhido para chefiar a PF, o delegado Paulo Maiurino, apresenta uma extensa trajetória política, com passagens pela corregedoria do DEPEN, pelos governos do Distrito Federal (gestão Agnelo Queiroz, PT), de São Paulo (gestão Geraldo Alckmin, PSBD) e do Rio de Janeiro (gestão Wilson Witzel, PSC), pela secretaria de segurança do Supremo Tribunal Federal e por uma assessoria no Conselho da Justiça Federal.

Assim, como referiu o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Evandir Paiva, em uma entrevista concedida em janeiro de 2020, uma instituição possuir autonomia e, ao mesmo tempo, a capacidade de influenciar politicamente no Congresso Nacional, seria o “melhor dos mundos”. Fazendo uma releitura de sua resposta, observamos que a diversificação das trajetórias dos delegados em posições de prestígio tem encontrado nesse “melhor dos dois mundos” caminhos amplos para a ascensão aos cargos mais altos da Polícia Federal ou ao primeiro escalão do governo federal.

Na semana passada, o delegado Alexandre Saraiva, da SR-AM, foi trocado logo após pedir ao STF a instauração de uma investigação em desfavor do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Esse evento colocou a PF novamente no centro do debate sobre interferências políticas ou trocas rotineiras, comuns quando novas gestões são iniciadas. Nesses momentos, o que era para ser “o melhor dos dois mundos” – entre a pleiteada autonomia da instituição e a proximidade com a política – pode vir a gerar mais dúvidas sobre a capacidade da PF de se manter afastada de ingerências externas e, ao que só podemos tomar como hipótese nesse momento, se tornar uma arma poderosa para projetos políticos que visem proteger aliados e garantir a perpetuação no poder.

* Doutorando em Ciência Política na UFRGS. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Membro do Núcleo de Estudos em Elites, Justiça e Poder Político (NEJUP/UFRGS)

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Na edição desta semana, leia também “Covid-19 e morte de policiais: crônica de uma tragédia anunciada” e “Tráfico de drogas na percepção policial e os custos para a sociedade”.

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Em defesa da democracia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/em-defesa-da-democracia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/25/em-defesa-da-democracia/#respond Thu, 25 Mar 2021 14:46:55 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/faces25.03-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1701 Com a ascensão de um populista autoritário ao poder, nos defrontamos com o ameaçador emprego de dispositivos da Lei de Segurança Nacional incompatíveis com a Constituição de 1988. A estratégia é restringir e constranger a liberdade de expressão de críticos e opositores do atual governo

Belisário dos Santos Jr.*

Jose Carlos Dias**

Oscar Vilhena Vieira***

Passados mais de trinta anos do processo de transição do regime militar, a democracia brasileira paga neste momento um alto preço por não ter sido capaz de substituir a Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7170/83) por uma robusta legislação de proteção das instituições do Estado Democrático de Direito.

Com a ascensão de um populista autoritário ao poder, estamos nos defrontamos com o ameaçador emprego de alguns dispositivos da LSN – incompatíveis com a Constituição de 1988 – para restringir e constranger a liberdade de expressão de críticos e opositores do atual governo.

Na ausência de uma nova lei de proteção às instituições do Estado Democrático de Direito, no entanto, é prudente que sejam preservados aqueles dispositivos da velha lei que se demonstrem compatíveis com o sistema constitucional de 1988. De forma que os inimigos da democracia não se beneficiem de lacunas em nosso ordenamento jurídico para provocar a erosão de nossa constituição.

O emprego sistemático da Lei de Segurança Nacional pelo governo Bolsonaro, com o objetivo exclusivo de coagir e intimidar seus críticos e opositores, tem se tornado cada vez mais preocupante. Jornalistas, lideranças sociais, políticos e magistrados, como Ricardo Noblat, Helio Schwartzman, Rui Castro, Sonia Guajajara, Luiz Inácio Lula da Silva, Ciro Gomes e Gilmar Mendes são apenas alguns exemplos dessa determinação do governo de calar seus críticos, por intermédio da LSN. Mais grave, essa conduta da cúpula do governo federal tem inspirado atos difusos de repressão à liberdade de expressão em diversas partes do país.

Desde o início deste governo foram instaurados cerca de 80 inquéritos com base na LSN. Número imensamente superior à utilização dessa legislação pelos governos precedentes. Não se trata, entretanto, de um problema apenas quantitativo. Ao longo das últimas três décadas, a LSN, quando invocada, o foi, sobretudo, para combater crimes relacionados ao roubo ou tráfico de armas de uso privativo das Forças Armadas. O que muito se diferencia do modo como vem sendo empregada por esse governo, que visa apenas restringir um dos pilares essenciais do jogo democrático, que é a liberdade de expressão.

Embora guarde distinção em relação aos diplomas de segurança nacional que a precederam, a Lei 7170/83 ainda possui inúmeros pontos de tensão com a Constituição Federal de 1988. Chama a atenção a incompatibilidade entre os artigos 22 e 26 da indigitada LSN, que se referem a crimes de propaganda e opinião, e o regime de ampla liberdade de expressão estabelecido pelos artigos 5º, IV e IX, e 220, caput, da Constituição Federal.

O artigo 22 da Lei 7170/83 estabelece como crime o ato de “fazer, em público, propaganda”, entre outros, “de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”, sem estabelecer qualquer exigência de que essa “propaganda” possa ensejar “perigo real” às instituições do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, cria um ônus desproporcional à liberdade de expressão. A livre circulação de ideias, inclusive críticas ao regime e à ordem social, são parte essencial do núcleo de proteção da liberdade de expressão. O que ela não protege são atos de desestabilização e violência contra as instituições, que coloquem em risco a própria sobrevivência da democracia. Nesse sentido, o artigo 22, não se demostra compatível com o artigo 5º., IV e IX, da Constituição Federal.

O artigo 26 da LSN, por sua vez, estabelece como crime de segurança nacional: “Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”. Há aqui um vício fundamental que torna o respectivo dispositivo incompatível com a Constituição de 1988. Ao dar primazia à proteção da honra objetiva e da reputação daqueles que ocupam a presidência dos poderes, em detrimento das próprias instituições, o referido dispositivo inibe o debate público e a possibilidade de crítica a agentes governamentais, sem com isso promover qualquer proteção às instituições do Estado Democrático de Direito. Ademais disso, havendo ânimo de ofender, o fato já é punido pelo Código Penal.

Como a recente experiência brasileira tem mostrado, esse dispositivo abre a possibilidade para que a liberdade de expressão possa ser constrangida, sendo, portanto, incompatível com o disposto no artigo 220, parágrafo 1º., da Constituição Federal, que determina que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de expressão.” Logo, deve ser declarado inconstitucional também.

Na função de guarda da Constituição, caberá ao Supremo Tribunal Federal, num futuro próximo, julgar a compatibilidade da LSN com o sistema constitucional estabelecido em 1988. Seu desafio será distinguir entre os dispositivos da LSN que foram recepcionados pela Constituição de 1988 e podem ser úteis na proteção das instituições do Estado Democrático de Direito, e aqueles ofendem a Constituição e têm sido amplamente empregados para restringir o regime de liberdade de expressão por ela adotado.

A Constituição não pode ser vista como um “pacto suicida”, como alertava o Juiz Robert Jackson, da Suprema Corte Norte Americana, em 1949. Suas instituições não só podem, como devem protegê-la daqueles que almejam a sua erosão.

 

*Advogado, membro da Comissão Internacional de Juristas e da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns

**Advogado, ex-ministro da Justiça (FHC) e presidente da Comissão Arns

***Jurista, professor da Faculdade de Direito da FGV/SP e membro da Comissão Arns

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Na edição desta semana, leia também “RS Seguro mostra os bons resultados na gestão da segurança com visão social” e “A escalada das mudanças e seu impacto sobre as polícias de caráter civil”

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Militarização da Segurança Pública https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/03/18/militarizacao-da-seguranca-publica/#respond Thu, 18 Mar 2021 19:57:45 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/03/bolsonarofaces-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1696 Polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de Bolsonaro, enquanto os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e obtiveram conquistas políticas

Renato Sérgio de Lima*

Circulou, na semana que passou, um áudio atribuído a um Policial Rodoviário Federal que acusa o Governo de Jair Bolsonaro de levar adiante um “Lockdown Policial” cujo objetivo, na prática, seria o enfraquecimento das polícias civis, federal, rodoviária federal, penal federal e penais estaduais. Até por isso, para o autor do áudio, há em curso um adiantado plano de militarização da segurança pública no Brasil e de destruição das forças civis de segurança.

Para sustentar a sua hipótese, o autor do áudio argumenta que o governo tem privilegiado as carreiras militares federal e estaduais em detrimento das demais forças policiais. Ele cita a Reforma da Previdência, que teria imposto regras de transição mais severas para as polícias de natureza civil; a Lei Complementar 173, que proíbe reajustes salariais durante a epidemia de Covid-19; e a PEC 186, que adota medidas permanentes e emergenciais de controle do crescimento das despesas obrigatórias e de reequilíbrio fiscal. Ele também menciona a proposta de Reforma Administrativa como um ponto de alerta.

A meu ver, o áudio toca em pontos relevantes da ação do governo no campo da segurança pública e, concordo, há uma clara predileção pelas forças militares federal e estaduais. Mas creio que o cenário seja um pouco mais complexo. Ao que tudo indica, estamos presenciando um movimento de reconfiguração do associativismo policial e um rearranjo entre as lideranças da área. O governo Bolsonaro estaria atuando para eliminar dissonâncias entre sua principal base eleitoral e usa as pautas policiais para se contrapor às demandas liberais de Paulo Guedes pela manutenção do teto fiscal sem, no entanto, romper com o “mercado”.

Assim, entendo que não há o rompimento propriamente dito que foi anunciado pela imprensa na semana passada. É fato que as polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de poder de Jair Bolsonaro, não obstante existir um nível grande de convergência ideológica mesmo entre elas. É um sutil paradoxo que precisa ser compreendido pelos analistas da área para que não sejamos abduzidos pelo jogo de marcação.

Se partirmos do reconhecimento desse paradoxo, veremos que há um contraponto de sobrevivência das lideranças sindicais civis tradicionais dado que os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e conseguiram algumas conquistas políticas – por mais que, em termos de carreiras, também não tenham avançado em nada substantivo. Ou as lideranças civis se reposicionam ou são engolidas e superadas por novos atores mais alinhados às expectativas das bases policiais.

Não à toa, de modo sagaz, as críticas mais pesadas partiram de entidades relativamente novas no jogo associativista, que são a UPB e a OPB (Ordem das Polícias do Brasil). Se o rompimento fosse real, as próprias associações individuais estariam assumindo o protagonismo, mas efetivamente elas estão funcionando como anteparo de mitigação e negociação; elas aproveitam a repercussão e reabrem canais de negociação.

Isso não significa que não existam insatisfações crescentes e/ou reclamações pertinentes sobre o abandono de demandas corporativistas. Um exemplo é a explicitação, por parte da Associação de Delegados da Polícia Federal, de não ter nenhum canal de diálogo com o Ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública. No entanto, o embate parece ser mais sobre capital político e prestígio de ser ouvido do que sobre o endereçamento de demandas históricas de reforma da arquitetura da segurança pública.

Agora, no que diz respeito às polícias militares, que respondem por mais de 60% dos efetivos policiais do país e seus integrantes são os que mais têm aderido ao projeto de poder do atual presidente, adotaram uma tática diferente. Nesse caso, a opção foi por fortalecer as demandas das corporações, representadas pelos seus Comandantes Gerais, que negociam diretamente com o governo um reequilíbrio de forças e um projeto de autonomização vendido como de blindagem aos usos políticos.

As demandas associativistas estão em segundo plano e o que vale é a lógica militar clássica. O maior exemplo é o Projeto de Lei Orgânica das PM, que data de 2001, mas que na última segunda (16), teve um novo relator designado, o deputado do Capitão Augusto (PL/SP) que deve apresentar o substitutivo que está sendo negociado com o governo o mais rápido possível. Vale lembrar que o nome do Capitão Augusto já circulava como o relator ideal desde o início de 2020 e fazia parte de um pré-acordo com o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

Seja como for, o conteúdo do PL é extremamente concentrador de poderes nos oficiais das Polícias Militares e pouco avança sobre condições de vida e trabalho dos policiais militares. O foco das minutas de substitutivos que estão circulando está muito mais dedicado ao desenho de estratégias de autonomização das corporações dos governos estaduais e dos mecanismos de controle civil.

Por tudo isso, a novidade das pressões em torno do “rompimento” dos policiais com o governo não está no seu valor de face, ou seja, num fato indiscutível. O que estamos vendo é um movimento de pressão que visa reconfigurar o campo para que os policiais passem a fazer uma defesa inquestionável do governo ou, caso contrário, para que lideranças civis que atuam na chave sindical de modo mais isento e crítico sejam substituídas por novos e mais alinhados nomes. Esses já aparecem como os salvadores das categorias e devem rivalizar com nomes que há muito ocupam posições nas associações.

 

*Sociólogo e Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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Na edição desta semana, leia também “Lava Jato: ação estratégica em análise pelo STF” e “O Rei da Inglaterra não pode entrar na cabana do miserável”

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Os fuzis na favela https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/25/os-fuzis-na-favela/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/25/os-fuzis-na-favela/#respond Thu, 25 Feb 2021 17:49:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/fuzis-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1684 O porte disfarçado, antes limitado ao atirador esportivo, foi estendido a caçadores e colecionadores e compromete as possibilidades de rastreamento de armas

Bruno Langeani*

Na noite em que o Brasil atingiu 1.204 mortes pela Covid-19, o presidente editou quatro decretos de flexibilização de armas, publicados pouco antes de embarcar para descansar em Santa Catarina. De lá, ao ser questionado sobre como as medidas impactavam o rastreamento de munição, tergiversou: “Fala pros ‘especialistas’ rastrearem os fuzis que estão na favela”.

Bolsonaro não gosta muito de prestar contas. É frequente também que transfira responsabilidades que são suas. Sua resposta pode funcionar no Twitter, mas não resiste a um sopro.

A estrutura para rastrear fuzis que estão “na favela” é de competência federal, assim como a de investigar o tráfico internacional de armas. E, nesta área, o Brasil também vai mal, como mostra uma matemática simples.

Em dois anos, o país só conseguiu dar detalhes da apreensão de 7 mil armas, segundo relatório sobre o tema lançado em 2020 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Nos mesmos dois anos, o número de apreensões reais supera 240 mil; 233 mil armas ficaram de fora.

A ironia triste é que este dado só está disponível porque os “especialistas” da sociedade civil conseguem reunir mais informações do que o governo. Se nosso país mal consegue contar as apreensões e não sabe quais os tipos e calibres de armas apreendidas, como poderá rastreá-las?

É importante destacar que o problema não está na Polícia Federal, que tem um dos melhores expertises nesta atividade, de onde se originou a suspensão temporária de importação de armas pelo Paraguai, após provarem, com rastreamento, o tráfico para o Brasil. Sem que os estados compartilhem com a União dados das suas apreensões de maior volume e sem aumento de estrutura para o Centro de Rastreamento da PF, seguiremos mal.

Se de fato estivessem preocupados com os “fuzis na favela”, Bolsonaro e o ministro da Justiça já teriam atacado estas falhas. Ao invés disso, escolhem desmontar as possibilidades de controle. Com o pacote do carnaval, ultrapassamos 30 dispositivos sobre armas publicados nesta gestão.

É no conjunto da obra que o perigo se revela. Antes de 2019, os cidadãos tinham autorização de compra para até duas armas, apresentando justificativas em cada compra. Bolsonaro aumentou para quatro armas e agora seis.

A compra de munição por arma para civis era de 50, passou para 200. E estaria agora em 600 por ano, caso a Justiça não tivesse suspendido a medida, em um dos poucos freios até agora. No momento, há dois decretos vigentes que tratam da arma do civil, um que inclui apresentação de justificativa para compra de arma e outro que a omite, ainda que a lei assim exija. A opção fica por conta do freguês.

Para entender este emaranhado, classificado pelo Ministério Público Federal como “caos normativo”, é possível enquadrar as mudanças em três eixos. O primeiro é o de facilitação de acesso à compra de armas e ao porte. Em segundo, um aumento substancial nas armas e munições que podem ser compradas por cada categoria, aliado à ampliação em quatro vezes da potência de armas permitidas, possibilitando que civis tenham armas iguais ou mais potentes que as da própria polícia, como .40 e .45. Por último, estas medidas foram acompanhadas da perda de capacidade de fiscalização, já que foram revogadas portarias de aperfeiçoamento da marcação e rastreabilidade de armas e munições.

Dentre os pontos mais graves, o porte disfarçado, criado contra a lei em 2017 e limitado a atirador esportivo, foi estendido a caçadores e colecionadores. Este porte, que já era bastante problemático, agora não está limitado a horário, nem trajeto.

Se um atirador disser que está levando seus fuzis e outras armas de seu acervo do Paraná para o Rio de Janeiro, ainda que as circunstâncias sejam suspeitas, nada poderá ser feito pela polícia, que não tem acesso aos sistemas nem para verificar se o documento é verdadeiro, nem se as armas têm registro.

O governo abriu mão de controlar carregadores de munições e miras laser ou telescópicas. Máquinas de recarga de munição e projéteis até o calibre .50 não demandam mais registro no Exército, nem do fabricante, nem do comerciante, nem do consumidor. Se antes alguns armeiros do tráfico buscavam o CR no Exército para acessar insumos de recarga e turbinar suas atividades ilegais, agora não têm mais que se preocupar. Nas palavras do presidente, “desburocratizou”.

Mesmo contra a lei, o porte passou a se desvincular da arma e ter abrangência nacional. Antes a PF modulava a limitação territorial de acordo com a circunstância. Com isso, autoriza agora a pessoa a carregar consigo até duas armas do seu acervo simultaneamente.

No campo dos policiais, o limite de seis aumentou para oito armas, abrindo um precedente para o uso de armas pessoais em serviço. Isso dificulta ainda mais o controle do uso da força letal.

A liberação do uso de munições apreendidas não só colocará em risco os policiais, que contarão com munição de procedência duvidosa, como dificultará o esclarecimento de mortes por intervenção. Com doações, a marcação de lote exigida pelo Estatuto do Desarmamento é perdida. Com todas estas alterações, a aprovação da excludente de ilicitude passa a ser cada vez menos necessária.

Voltando aos fuzis, o mesmo relatório da UNODC destacava de forma positiva o fato de que, no Brasil, o fuzil no crime tem um valor considerado alto em comparação com outros mercados ilegais. Isso acontecia pois eram restritos a poucas unidades de forças de segurança, havendo assim, menos oportunidades de desvio no mercado doméstico.

Com a liberação para compra de até 30 unidades por atirador e fim do monopólio nacional, fuzis de várias marcas estão sendo recebidos em casa por civis. Neste novo Brasil, organizações criminosas não precisarão mais recorrer ao tráfico internacional, basta arrumar um laranja.

Com isso, o fenômeno da locação de fuzis, derivado da baixa disponibilidade, não será mais necessário. Como diz o release do governo, “desburocratizou”.

 

*Gerente do Instituto Sou da Paz, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e mestrando do Programa de Políticas Públicas da Universidade de York.

 

Acompanhe as edições semanais integrais do Fonte Segura, a newsletter com dados e análises sobre segurança pública. Acesse: fontesegura.org.br

Na edição desta semana, leia também “Prisão do deputado Daniel Silveira é controversa” e “O que justifica o aumento das mortes violentas sem causa definida?”.

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O risco da militância política de policiais sem controle https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/17/o-risco-da-militancia-politica-de-policiais-sem-controle/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/05/17/o-risco-da-militancia-politica-de-policiais-sem-controle/#respond Sun, 17 May 2020 16:25:29 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/05/jair-bolsonaro-ao-lado-de-alexandre-ramagem-1589719519419_v2_900x506.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1425 A revelação feita pelo empresário Paulo Marinho em entrevista para a jornalista Mônica Bergamo publicada pela Folha de S.Paulo neste domingo (17) de que um Delegado de Polícia Federal antecipou a Flávio Bolsonaro que seu braço direito, Fabrício Queiroz, seria alvo da operação Furna da Onça da PF, e, ainda segundo a versão de Marinho, a deflagração da operação foi adiada para não prejudicar o então candidato Jair Bolsonaro é mais um capítulo da excessiva politização das polícias, excessivamente nocivo para elas próprias e para a sociedade brasileira.

Este não é um fenômeno recente. O episódio narrado por Paulo Marinho lembra bastante o do Delegado Agílio Monteiro Filho, que era filiado ao PSDB durante a sua gestão à frente da Direção Geral da PF, entre 2001 e 2003, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e depois foi trabalhar como gestor da área prisional de Minas Gerais, sob o comando do então governador Aécio Neves.

Monteiro Filho foi militante partidário ao mesmo tempo que ocupava o principal cargo da Polícia Federal e continuou prestando seus serviços ao PSDB após sua saída do cargo. Era um homem de confiança do partido do então presidente. Em tempos mais recentes, o filho do atual presidente, Eduardo Bolsonaro, é escrivão licenciado da Polícia Federal e dois vices-líderes do governo na Câmara dos Deputados são policiais: os deputados Ubiratan Antunes Sanderson (policial federal eleito pelo PSL/RS) e Fabiana Silva de Souza Poubel (Major da PMERJ eleita pelo PSL/RJ).

E é neste ambiente que temos que analisar as tentativas de aparelhamento da Polícia Federal pelo governo de Jair Bolsonaro, que não tiveram início apenas a partir do pedido de demissão do ex-ministro Sergio Moro do cargo de Ministro da Justiça e Segurança Pública, no dia 24 de abril. Mas, ao sair atirando, o ex-ministro explicitou que a instrumentalização da Polícia Federal é um risco que há muito tem preocupado os operadores da área.

É verdade que, desde 2003, quando o delegado Paulo Lacerda deu início a um amplo projeto de modernização da PF, com a contratação de novos quadros e investimento em tecnologia e inovação, a corporação reforçou seu projeto institucional de independência e autonomia. Porém, também é fato que é sabido pelos políticos o caráter estratégico de ter um aliado na direção geral da corporação.

Isso porque, mesmo arredia a influências diretas, a PF tem uma estrutura organizacional que dá grande poder ao diretor-geral e aos superintendentes, que podem, no limite, nomear delegados para investigações específicas e/ou fixar os recursos logísticos que cada inquérito poderá contar, bem como definir quando uma operação será deflagrada. Isso mostra que nenhuma instituição é imune ao uso político, ainda mais quando seus próprios integrantes militam e fazem parte de um projeto político de poder.

Ao mesmo tempo, se a proximidade da polícia com a política é um fato normal da vida republicana, quando ela não é regulada e regrada, abre espaço para potenciais conflitos de interesse, dúvidas e indicações políticas. Não há indicadores transparentes e métricas de sucesso que sejam tecnicamente robustas e que poderiam fortalecer mecanismos independentes de controle e supervisão que viabilizariam a ideia dos mandatos para os cargos de direção das polícias sem, no entanto, a delegação de poderes absolutos para uma instituição de força.

Quando a política entra nas polícias, carreiras podem ser comprometidas e tudo vira uma enorme zona de sombras e desconfianças, como nos filmes de conspiração e espionagem de Hollywood. Muitos são os policiais que conectam suas carreiras nas corporações com a defesa de projetos políticos e eleitorais específicos.

O número de policiais que se candidataram a cargos eletivos e não foram eleitos, por exemplo, chega à casa de milhares no país e é um dilema organizacional gigantesco para o bom planejamento e supervisão da atividade policial cotidiana. Uma vez não eleitos, a maioria desses mesmos profissionais, que não estão sujeitos a regras de quarentena, voltam para as suas corporações, que têm, por sua vez, que gerir demandas de segurança pública e pressões internas sobre os rumos das políticas públicas.

E esse movimento revela um quadro de politização extrema e de falta de foco nas políticas efetivas de prevenção e enfrentamento da violência e da criminalidade, mas também reforça que é imperioso destacar que o Brasil conta com diversos policiais amplamente qualificados e que merecem respeito e valorização.

O drama é que, somado à incerteza político-institucional que toma conta do país, essa valorização fica relegada ao plano dos discursos e há um reforço de um modelo que funciona como um sistema de vetos perfeito, que impossibilita mudanças estruturais e estimula conflitos. Questões técnicas transformam-se em arenas de disputas ideológicas e políticas.

Uma saída que poderia ser articulada seria a costura de um amplo e único projeto de lei orgânica das polícias brasileiras, que regulamentasse, enfim, o parágrafo sétimo do Artigo 144 da CF. Só assim poderíamos focar em reduzir a violência e o crime no país. Um projeto que contemple pontos comuns da gestão das polícias e, ao mesmo tempo, garanta as especificidades de cada corporação.

É fundamental e urgente deixarmos mais claros os mandatos, as competências, o grau de autonomia, as regras de quarentena e transição entre as carreiras policiais e a política, bem como os mecanismos de supervisão de cada uma delas. Ou seja, sem antes pactuarmos regras claras e transparentes de accountability e blindarmos as decisões operacionais de policiais engajados em projetos político-eleitorais, falar de autonomia da PF agora é um risco ainda maior para o país; um risco de jogarmos fora anos de investimentos na profissionalização da corporação e  incentivarmos a militância partidária de policiais sem controle.

 

*Este artigo aproveita, em parte, reflexão feita na edição 37 do Boletim Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (www.fontesegura.org.br)

 

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Homicídios crescem pelo sétimo mês consecutivo no país https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/29/homicidios-crescem-pelo-setimo-mes-consecutivo-no-pais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/29/homicidios-crescem-pelo-setimo-mes-consecutivo-no-pais/#respond Wed, 29 Apr 2020 12:54:07 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/11/1709227-150x150.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1402 Em coautoria com Samira Bueno*

Com sete meses ininterruptos de crescimento dos crimes violentos letais intencionais (homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte e latrocínios) no país, a gestão de Jair Bolsonaro bate um recorde de meses consecutivos de alta da criminalidade violenta, de acordo com série histórica de dados compilados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e do Monitor da Violência desde janeiro de 2016.

Mesmo que em patamares ainda menores do que aqueles observados no final de 2017, este é o período de meses mais longo da série histórica analisada e pode indicar o esgotamento dos efeitos das estratégias e políticas adotadas entre 2017 e 2018 e que permitiram a redução dos assassinatos a partir de janeiro de 2018.

E, mais, esse período pode ser o início dos efeitos de medidas como o esforço ideológico inconsequente que o governo Bolsonaro faz de desregulação e ampliação da posse e o porte de armas de fogo e munições, entre outras ações formuladas em sua gestão para a área. Esforço esse que culminou, agora em abril, com a determinação do presidente para a revogação de portarias do Exército Brasileiro que estabeleciam regras para rastreamento e identificação de armas de fogo no Brasil, mesmo após o Exército alertar para o fato de que a medida atentaria aos interesses da segurança nacional.

 

 

No plano subnacional, dados  do Monitor da Violência, parceria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o NEV/USP e o G1, revelam que 20 das 27 Unidades da Federação apresentaram crescimento de assassinatos entre janeiro e fevereiro de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. No total Brasil, comparando os mesmos períodos, houve um crescimento de 7,6% nos assassinatos.

Dessas 20 Unidades da Federação, chama atenção o Ceará, que enfrentou uma greve/motim de policiais militares em fevereiro que resultou, entre outras questões, no aumento abrupto dos homicídios durante o movimento paredista e que quase anulou o ganho de cerca de mais de 50% de queda nas mortes que o estado havia obtido no ano passado. Mas, tão grave quanto a situação do Ceará, destacamos o crescimento dos crimes violentos letais intencionais em UF que estavam conseguindo, até então, reduzir seus índices de violência criminal por vários anos, a exemplo do Distrito Federal, Santa Catarina, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Espirito Santo e São Paulo.

 

É muito revelante que quase todas essas Unidades da Federação possuem sistemas de metas e/ou bonificação por resultados e são caracterizadas pelo esforço de articulação e integração entre suas polícias. A capacidade incremental e gerencial que os governos estaduais detêm na segurança pública ficou fortemente constrangida, ao que tudo indica, pela incapacidade do governo federal em articular respostas federativas às novas dinâmicas da violência e do crime organizado, bem como pela crise fiscal que reduziu a margem para o financiamento de um sistema historicamente desfuncional.

Também contribuiu para este quadro um ambiente de excessiva politização das forças policiais que, em nome de justas reivindicações por melhores condições de salário e trabalho, passaram a defender pautas com forte carga corporativista e ideológica. A política invadiu os quartéis e as unidades das polícias e a atividade cotidiana de segurança pública ficou em segundo plano.  E, se esse movimento já vinha sendo estimulado desde os governos do PT, foi sob Jair Bolsonaro e Sergio Moro que a segurança virou de vez bandeira político-partidária.

Em artigo de balanço de gestão de Sergio Moro à frente da pasta da Justiça e Segurança Pública publicado na edição da Folha do último sábado, alguns pontos objetivos foram descritos. Porém, a disputa por protagonismo dos dois políticos mais populares da atualidade teve, como efeito colateral, o abandono da segurança como política pública e o descaso com as demandas histórica de modernização e reforma da área no país.

Como exemplo, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, que legalmente é quem coordena as políticas de segurança pública do país, ficou a reboque do Planalto na discussão sobre a já citada ampliação do porte e posse de armas de fogo e munições. Também teve uma atuação omissa no combate às milícias e referendou a mensagem leniente com o uso desproporcional da força letal, com o tecnicamente falso discurso presidencial da excludente de ilicitude para integrantes das forças de segurança. De igual modo, reduziu suas conversas com os secretários de segurança e defesa social dos estados; e não participou das conversas para a modernização do R200, decreto que regula as Polícias Militares no país, que estão sendo tocadas pelo Palácio do Planalto e pelo Ministério da Defesa, e que visam a proposição de Projeto de Lei que instituí a Lei Orgânica das Polícias Militares.

O governo Bolsonaro diminuiu o número de operações da Força Nacional de Segurança Pública em áreas indígenas e de proteção ambiental, com sérias implicações diplomáticas e econômicas. Para se ter uma ideia, vale relembrar que, em 2019, as ações ambientais e/ou em terras indígenas responderam por 12% das operações da FNSP. Em 2018, por 24%. Já dados do Portal da Transparência sobre Execução Orçamentária da União, em 2019, corrigidos pelo IPCA revelam que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública reduziu em 24,9% os gastos com a FUNAI.

Da mesma forma, Sergio Moro rivalizou com governadores para assumir protagonismo da queda de crimes observada até meados de 2019 e sumiu quando percebeu que vários índices voltaram a crescer e que seria cobrado por isso. Ele também politizou demais, no começo do ano, o episódio em torno do motim da Polícia Militar no Ceará, dificultando as negociações do governo estadual com os policiais amotinados. A transferência de lideranças de facções de base prisional para presídios federais foi estimulada mas, sozinha, ela não resolveu a estrutural crise carcerária, com superlotação e domínio das prisões por parte do crime organizado.

O governo Bolsonaro igualmente não apresentou nenhuma política de enfrentamento para a violência contra a mulher, que agora mostra sua face durante a pandemia de Covid-19, quando crescem os feminicídios ao mesmo tempo em que os serviços de acolhimento às mulheres vítimas de violência estão sucateados. Os Ministérios da Justiça e da Saúde não dialogaram entre si e não tiveram a capacidade de planejamento e aquisição em tempo hábil de EPI para as polícias diante da pandemia.

Nesse processo, jabutis começaram a brotar em árvores, como a proposta do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) apresentada ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP para, diante da pandemia de Covid-19,  acomodar presos em contêineres, relembrando as “prisões de lata” dos anos 2000 e, ainda, o alojamento incendiado das categorias de base do Flamengo, no “ninho do Urubu”.

Sergio Moro não obteve êxito em fazer avançar suas principais vitrines, o Pacote “Anticrime” e o programa “Em Frente Brasil”. O primeiro foi alterado no Congresso com apoio tácito do Palácio do Planalto e, o segundo, ficou na esfera da boa intenção, sem ganhar escala e efetividade. Ainda é importante destacar que o ex-ministro sempre manteve rota de conflitos com parcela do STF e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), tensionando as relações entre os poderes e diminuindo o espaço para ações coordenadas.

Os recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública foram bloqueados por Paulo Guedes e o STF precisou determinar a liberação do dinheiro para que ele pudessem ser repassado aos estados. A Polícia Federal, por uma questão de restrição orçamentária, diminuiu o número de operações especiais. O Fundo Nacional Anti-drogas recebeu mais recursos a partir da facilitação da venda de bens apreendidos, mas eles não foram executados ou foram convertidos em medidas concretas de prevenção.

E, por fim, o Governo Bolsonaro, alegando que uma consultoria da CGU teria encontrado problemas de desenho institucional da Política Nacional de Segurança Pública aprovada no final de 2018 paralisou a implementação do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), que tentava, exatamente, criar um novo ambiente federativo de cooperação e aperfeiçoamento da área. Com a desculpa de que a legislação era falha, o que não é fato, medidas que estavam sendo conduzidas na direção da coordenação federativa foram abandonadas.

Em suma, construir uma política de segurança eficiente leva anos e é obrigatoriamente uma construção coletiva. Porém, destruí-la é sempre muito rápido e quase sempre decorrente da irresponsabilidade política ou institucional de quem prefere surfar na onda da sua fugaz popularidade e/ou de quem fica cego por concepções ideológicas toscas e não mede as consequências de seus atos na vida real da população.

Várias hipóteses podem ser mobilizadas para compreendermos essa reversão de tendência, mas, em uma síntese política, a aliança entre Jair Bolsonaro e Sergio Moro teve, na prática, resultados pífios para a segurança pública. Ao contrário do que disse o ex-ministro Sergio Moro no início de janeiro deste ano, na segurança não existe Mago Merlin ou feitiços prestidigitadores mas evidências e trabalho árduo.

 

*Diretora Executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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A política está entrando nos quartéis https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/22/a-politica-esta-entrando-nos-quarteis/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/22/a-politica-esta-entrando-nos-quarteis/#respond Wed, 22 Apr 2020 21:31:26 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/15665864475d60364fdecb4_1566586447_3x2_rt.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1391 Texto de autoria de Arthur Trindade Maranhão Costa*

Desde 1985, na Nova República, a política esteve afastada dos quartéis. No entanto, este cenário tem mudado radicalmente e são cada vez mais frequentes manifestações políticas dentro das unidades militares. As vivandeiras estão de volta.

 

Certa vez o Marechal Humberto Castelo Branco disse que “vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar”. Castelo Branco se referia aos frequentes movimentos políticos que tentavam cooptar os militares e instrumentalizar o Exército. Como disse o antigo chefe militar, isso não era novidade, acontecia desde 1930. O fato é que as vivandeiras estão de volta, e elas não se resumem ao presidente Jair Bolsonaro, cuja coluna de Élio Gaspari de hoje (22) já analisou.

Se é verdade que o apoio de Bolsonaro aos manifestantes que foram às ruas neste domingo (19) pedir intervenções no Supremo Tribunal Federal e no Congresso Nacional não é por meio de discursos abertos e que, posteriormente, ele tenha declarado para os jornais que é favorável a democracia e respeita as instituições, a simples presença do presidente àquela manifestação tem significados muito mais profundos.

O simbolismo militar nos protestos é evidente. Muitos manifestantes usavam boinas e brevês das tropas Paraquedistas, além de insígnias e lemas militares. Para os familiarizados com o mundo da caserna, a conexão simbólica que Bolsonaro busca é nítida. Vale que lembrar que o ex-capitão se apropriou de um dos lemas da Brigada Paraquedista na sua campanha eleitoral: Brasil Acima de Tudo.

Protestar contra medidas adotas pelos governantes é um dos direitos políticos fundamentais numa democracia. Mesmo que estes protestos sejam contra as vacinas. Nesse caso, só podemos lamentar e nos perguntar como chegamos a este nível de negação da ciência.

Entretanto, a exemplo das semanas anteriores, os protestos de domingo têm um aspecto diferenciador. Além de pedirem o fechamento do Congresso e do STF, os protestos têm contado com o apoio do Presidente da República. Obviamente isto é perigoso. Presidentes não podem atentar contra às instituições fundamentais da democracia, mesmo que só em gestos e não diretamente em palavras.

O último presidente que subiu num palanque para apoiar manifestações políticas foi João Goulart. No dia 13 de março de 1964, Jango participou de um comício na Central do Brasil para pressionar o Congresso a aprovar as reformas de base. O comício não era contra as instituições. Naquele tempo, as vivandeiras estavam alvoraçadas.

Havia grupos de direita e de esquerda que pretendiam cooptar os militares e levar a política para dentro dos quartéis. Alguns buscavam uma cooptação por cima, tentando se aproximar dos comandantes militares. Outros tentavam cooptar por baixo, doutrinando as praças dentro dos quartéis. A ideia era dar uma formação política aos sargentos. A história nos mostrou que isso não acabou bem.

Além da participação do presidente, as manifestações de domingo tiveram outro componente explosivo: elas ocorram nas portas dos quartéis. Nada é mais simbólico do que Bolsonaro ter participado de um protesto no Setor Militar Urbano. Bolsonaro, literalmente, foi participar de uma manifestação na porta do Quartel General do Exército.

Desde 1985, na Nova República, a política esteve afastada dos quartéis. A vivandeiras embora existissem, não estavam alvoroçadas. No entanto, este cenário tem mudado radicalmente. Nos últimos anos, a política entrou nos quartéis. Hoje são cada vez mais frequentes manifestações políticas dentro das unidades militares.

O Exército parece que estar assistindo hoje o que as Polícias Militares têm vivenciado nas últimas décadas. As tentativas de instrumentalização política das polícias não são novidade. Lideranças políticas têm buscado promover greves e protestos de policiais militares para desestabilizar os governadores. O irônico é que ao invés de desmilitarizar as Polícias, como muitos insistem, podemos estar assistindo um processo inverso: a politização do Exército como já ocorre nas polícias militares.

Por certo, isto ainda está longe de ocorrer. Menos por vontade de Bolsonaro e seus aliados e mais pelos esforços dos comandantes militares. O que se assiste hoje é uma grande confusão entre os militares e o governo. Há os militares enquanto instituição. São os militares da ativa que buscam seguir com cumprimento das missões. Há também os militares enquanto governo: além dos generais que fazem parte do ministério, existem centenas de oficiais ocupando cargos na alta burocracia de Brasília. E há o presidente e as vivandeiras alvoroçadas.

O resultado das interações entre esses três grupos irá impactar diretamente o cenário político nacional. Bolsonaro vem tentando levar a política para dentro dos quartéis, numa espécie de cooptação por baixo. Por ora, este movimento não tem recebido apoio dos militares enquanto governo. Embora tenham sido convidados para participar das manifestações de domingo, os Generais Fernando Azevedo e Luiz Eduardo Ramos decidiram não comparecer. Mas vale lembrar, que em outra ocasião, o General Augusto Heleno subiu no carro de som e discursou para os manifestantes na Esplanada dos Ministérios em Brasília e já atacou diretamente o Congresso em evento público com outros ministros e o presidente.

Torço para que os comandantes militares consigam conter as tentativas de instrumentalização do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Não seria nada bom para as Forças Armadas, que levaram mais de 20 anos para reconquistar a confiança da população, e seria o caos para o país se isso acontecesse. O exemplo mais recente de cooptação politica dos militares é o regime bolivariano implantado pelo Tenente Coronel Hugo Chaves e atualmente liderado por Nicolas Maduro.

Professor da UNB e integrante do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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Bolsonaro e o risco de um golpe policial https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-e-o-risco-de-um-golpe-policial/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/20/bolsonaro-e-o-risco-de-um-golpe-policial/#respond Mon, 20 Apr 2020 20:54:44 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/Bolsonaro-e-o-apoio-policial.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1386 Texto de autoria de Rafael Alcadipani*

Todas as vezes em que emerge um arroubo golpista de Jair Bolsonaro, há questionamentos se as Forças Armadas brasileiras bancariam uma aventura autoritária do Presidente. Porém, pouco se tem falado das polícias que, na prática, possuem um efetivo na ativa bem maior do que as próprias Forças Armadas e que, em larga medida, votaram e apoiaram com entusiasmo Bolsonaro nas últimas eleições. O que, em outras palavras, coloca-nos a questão se, a depender das condições políticas, os policiais se rebelariam contra a democracia e ajudariam o presidente a fechar o Congresso e o STF?

Vale relembrar que Bolsonaro utilizou quartéis da PM, unidades da Polícia Civil e da Polícia Federal como verdadeiros palanques. Inúmeros policiais utilizaram e utilizam as redes sociais para defender Bolsonaro e suas ideias. Diante de todo este explícito apoio, com a conivência dos comandos das polícias, a pergunta faz todo sentido. Porém, é preciso perguntar por que policiais apoiam em peso Bolsonaro. Tal apoio se deve a dois fatores principais. Primeiro, policiais se sentem incompreendidos e desconsiderados pela imprensa e pela sociedade em geral. Isso se alia a condições de trabalho extremamente desafiadoras e questões ligadas a baixa remuneração. Segundo, Bolsonaro tem um claro discurso de “bandido bom é bandido morto” algo que é implícita e explicitamente aceito por parte da sociedade brasileira e por policiais. Diante disso, será que este apoio se reverteria em uma sublevação policial pró golpe Bolsonarista?

Para responder a estas perguntas precisamos lembrar que temos várias polícias no Brasil com características próprias e especificidades tanto institucionais-operacionais quanto regionais. Da ditadura para os dias de hoje, todas as forças policiais se profissionalizaram e ficaram mais técnicas. Mas, a Polícia Federal é a polícia mais estruturada, organizada e técnica do país e o seu profissionalismo extremo tende a deixá-la mais longe de aventuras. Porém, o número de policiais federais é muito menor do que de policiais civis e de PMs e teria, sozinha, dificuldades para impedir um movimento golpista das demais instituições policiais.

Nos Estados, temos as Polícias Civis e Militares. As Polícias Civis possuem características culturais muito diferente das PMs. Além disso, elas foram sucateadas ao longo dos anos e hoje estão debilitadas tanto em termos de efetivo quanto de materiais. As Polícias Civis são comandadas por bacharéis em direito, o que lhes gera uma tendência de apoio a institucionalidade jurídica. Além disso, policiais civis tendem a ter uma mentalidade mais flexível e realizaram uma transição mais forte da ditadura para a democracia em suas práticas cotidianas. Na realidade, isso significa que tais instituições estariam menos propensas a seguir uma radicalização política na prática. Porém, o efetivo da Polícia Civil é quase 1/3 do efetivo das PMs.

O grande fiel da balança para um golpe pró-Bolsonaro está nas PMs, pois são as maiores forças policiais do país. Policiais em geral e as PMs em particular tendem a serem vistos de forma única pelas pessoas. A noção de PMs como pessoas pouco estudadas não se sustenta na realidade. Em muitos Estados do Brasil, PMs exigem um diploma universitário para o ingresso na carreira. Há inúmeros PMs graduados em direito, tanto nas praças quanto entre os oficiais. Há uma longa formação nas academias e a progressão na carreira depende de cursos. Os oficiais, em especial, tendem a ser muito bem preparados e capacitados.

Embora Bolsonaro personifique todos os estereótipos que os militares buscam evitar, a defesa do militarismo por Bolsonaro é muito bem-visto dentro das PMs. Mas, seus arroubos cada vez mais frequentes têm reduzido sua aceitação. A despeito dos inúmeros casos de abusos de PMs que surgem na mídia, as instituições possuem em seu curriculum disciplinas de Direitos Humanos. Além disso, a maioria dos milhões de atendimentos das PMs no Brasil não geram não conformidades. As PMs enfrentam um problema importante: a imagem dos PMs políticos eleitos que tendem a ser explícita ou implicitamente pró-Bolsonaro e contra os governadores estaduais colou nas instituições.

Além disso, a boa maioria dos parlamentares das PMs que são eleitos possuem um discurso em prol da violência e dos abusos policiais. Além disso, muitos PMs da reserva radicalizaram o discurso pró-Bolsonaro. A voz dos PMs radicais ecoa muito mais do que a voz dos moderados, principalmente nas mídias sociais. Os comandos das polícias são extremamente lenientes com as postagens radicais de seus policiais e isso afeta a imagem da instituição. Tudo isso gera a sensação de que as PMs fariam qualquer coisa para defender o “mito”. Mas, será?

Muitos oficiais da PM dizem que a “hierarquia e a disciplina são nossa maior virtude e nosso maior defeito”. Diante disso, PMs estariam dispostos a romper a hierarquia e a disciplina, pilares centrais da instituição, para uma aventura Bolsonarista? O rompimento da hierarquia e disciplina pode esfacelar uma organização militar e teria um efeito direto nos comandantes. Além disso, uma tentativa de golpe frustrado teria efeitos devastadores na reputação institucional das PMs e há poucas coisas que um PM respeita mais do que a própria instituição.

Outro ponto a se destacar é que PMs se percebem como pessoas que seguem as leis à risca e respeitam as instituições. Diante disso, é muito pouco provável que instituições policiais brasileiras apoiem uma aventura bolsonarista. A atual geração que comanda as polícias brasileiras ainda sofreu o rechaço social pela atuação de suas instituições na ditadura militar brasileira e sabem que o golpismo gera uma dívida histórica muito difícil de pagar.

Entretanto, nas polícias de nosso país há uma prevalência de questões psicológicas e psiquiátricas que muitas vezes são ignoradas ou negligenciadas. Por isso, há a possibilidade real de que “lobos solitários” extremamente radicalizados atuem em defesa de Bolsonaro de duas formas.

A primeira caso Bolsonaro proponha um golpe, estes elementos radicalizados podem tentar sublevar unidades policiais específicas a favor do Presidente. Muito possivelmente as próprias polícias resolveriam o problema. Mas, haveria uma grande repercussão. A segunda forma seria que algum indivíduo radicalizado e totalmente desequilibrado atentasse contra a vida de um governador, por exemplo. O próprio atentado contra Bolsonaro mostra o risco de um lobo solitário.

Anos de questões salariais e de negligência dos governos estaduais para com as polícias tem gerado tensões entre policiais e governantes. Bolsonaro explora isso muito bem. No atual momento, estas tensões podem aflorar e gerar repercussões desastrosas pela ação de um indivíduo. Se por um lado as nossas polícias tendem a ser garantidores de nossa democracia, por outro a facilidade com que as ideologias autoritárias navegam nestas instituições precisa ser combatida. Afinal, não é nada normal cogitar que polícias possam apoiar um Presidente golpista.

*Professor da FGV-EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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666 anos que separam a Peste e a pandemia de Covid-19 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/12/666-anos-que-separam-a-peste-e-a-pandemia-de-covid-19/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/04/12/666-anos-que-separam-a-peste-e-a-pandemia-de-covid-19/#respond Sun, 12 Apr 2020 15:45:42 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/04/policial-militar-ajusta-mascara-no-rosto-contra-coronavirus-1586361583219_v2_450x600.jpg true https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1367 O mundo assiste atônito a erosão de antigas certezas e ao alvorecer de novos padrões sociais, não necessariamente disruptivos, porém capazes de provocar inquietudes e nos fazer refletir sobre nossas crenças e a nossa vida cotidiana.

No plano simbólico, o primeiro caso conhecido do novo coronavírus foi reconhecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como tendo ocorrido em dezembro de 2019, na China. E, para aqueles que gostam de coincidências históricas, em 2019 completaram-se 666 anos do ano final do auge da Peste Negra, em 1353, que matou milhões de pessoas no planeta.

E, na tradição Judaico-Cristão, ‘666’ é o número da Besta, referência mais famosa do Apocalipse, e é citado no livro das revelações, de João, escrito no Século I. O trecho que o cita diz: “Quem tiver discernimento, calcule o número da besta, pois é número de homem, e seu número é 666”.

Ao fazer tal descrição, contudo, João estaria se valendo da antiga tradição de ocultar nomes de pessoas por intermédio de números para simbolizar não apenas a profecia do final dos tempos, mas também ao Imperador Nero, odiado pela perseguição dos primeiros cristãos. De acordo com reportagem da BBC, para alguns pesquisadores, se você escrever o nome de Nero no alfabeto hebraico, a equação somaria, exatamente, 666.

Nero foi criado em um ambiente de intrigas e ameaças e assumiu como imperador de Roma em outubro de 54, governando até sua morte, no ano de 68. Ele foi considerado insano e atroz, sem limites para sua vontade de poder e disposição para, se necessário, defender o uso da violência e do medo. Diante da pandemia do Covid-19 e da insólita abordagem que tem tido no Brasil, a revista The Economist não teve dúvidas e comparou o presidente Jair Bolsonaro ao imperador Nero.

No plano da vida cotidiana, o simbolismo ao qual a The Economist faz referência não se dá apenas pelo negacionismo científico do presidente brasileiro. Ao construir narrativas alternativas, o Brasil insiste no apagamento da história e esquece que, quando falamos sobre segurança pública, entre outros temas, o país não está ‘deitado em berço esplêndido’, mas em um leito de silêncio, sangue e violência.

E aqui que temos que ter cautela ao analisar os números oficiais sobre crime e violência produzidos durante a pandemia. Ao mesmo tempo eles não podem ser desconsiderados e são indicativos da capacidade do Poder Público em dar respostas político-institucionais diante da crise.

Pelas informações disponíveis, há um cenário nacional e subnacional que está se configurando e que nos mostra acentuada redução de furtos e roubos comuns diante da redução da circulação de pessoas; aumento dos homicídios; fortalecimento de conflitos entre facções; e reaparecimento de roubos a carro-forte (talvez motivados pela redução da oferta e da demanda por drogas provocada pelo isolamento social e pelo fechamento das fronteiras).

Entretanto, é na forma como o sistema de segurança pública lida com a violência contra a mulher; com os riscos de contaminação nos presídios; e com a proteção dos policiais frente na linha de frente da interação com a população que vemos que, passada a fase aguda da pandemia, a tendência é que o jogo de soma zero jogado faz décadas na área seja retomado, sem grandes expectativas de mudanças ou inovações.

Isso porque, na dificuldade adicional imposta pelo isolamento social de captar informações fidedignas sobre violência contra a mulher, muitas instituições se isentam de responsabilidades e/ou adotam, quando muito, procedimentos cosméticos que não atingem o cerne do problema. Por certo há boa vontade de alguns gestores e autoridades, mas falta capacidade de implementação de políticas públicas.

Da mesma forma, pressupostos ideológicos se sobrepõem ao planejamento racional e nota-se a repetição da aliança político-ideológica entre Sergio Moro e Luiz Fux, construída quando da aprovação pelo Congresso da figura do “juiz de garantias”, contra a recomendação do CNJ para que o Poder Judiciário analise cada caso e, quando possível, libere presos não violentos como estratégia de mitigação de riscos de contaminação por Covid-19 e de prevenção de convulsão no sistema prisional.

E, por fim, a dificuldade de coordenação e de logística para o provimento de equipamentos de proteção individual para os policiais e o fato de que, quando disponíveis, há policiais que resistem a utilizá-los em abordagens e/ou atendimentos feito à população revelam o quão complexo é engajar as polícias em torno de temas da prevenção e que não sejam aqueles associados ao combate do crime organizado. A morte de policiais pelo contágio de coronavírus não é mais um risco; é realidade.

No limite, a segurança pública brasileira flerta com falsos profetas e parece eternamente imersa no Purgatório, de Dante Alighieri, quando ele afirma, no canto XXVIII, que “Già m’avean transportato i lenti passi dentro alla selva antica tanto, ch’io non poteva rivedere ond’io mi ‘ntrassi;…“[Com demorado andar eu tanto caminhara na selva antiga, que não via mais o lugar por onde penetrara].

Mas nunca é demais reiterar que, acima de tudo e todos, a vida prevalecerá. Os homens e mulheres de boa vontade vencerão as bestas do Apocalipse. Boa Páscoa!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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