Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Homicídios no Brasil: um desastre aéreo por dia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/homicidios-no-brasil-um-desastre-aereo-por-dia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/09/01/homicidios-no-brasil-um-desastre-aereo-por-dia/#respond Tue, 01 Sep 2020 21:29:15 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/09/15786460715e183a3725591_1578646071_3x2_rt-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1516 A média diária de assassinatos no país equivale, em números, às mortes ocasionadas pela queda de um avião comercial com cerca de 160 passageiros.

Por Pablo Lira*

O Atlas da Violência, publicado na última semana, revelou que em 2018 foram registrados aproximadamente 58 mil homicídios no Brasil. A média diária de assassinatos no Brasil equivale, em números, às mortes ocasionadas pela queda de um avião comercial com cerca de 160 passageiros. São seis homicídios cometidos a cada hora. Com base nesse diagnóstico inicial, o país se destaca como a nação mais violenta do mundo.

Com uma taxa de 27,8 assassinatos por 100 mil habitantes, o Brasil também ostenta as primeiras posições no triste ranking da violência. Na comparação entre os anos de 2017 e 2018, o índice nacional reduziu em -12,0%. Todavia, a taxa brasileira evidenciou aumento de 4,0% entre 2008 e 2018. Nesse período, foram mais de 628 mil pessoas assassinadas.

Do total de homicídios computados em 2018, 91,8% das pessoas mortas eram do sexo masculino. No recorte de faixa etária, 53,3% das vítimas eram jovens com idades de 15 a 29 anos. A desigualdade racial da violência é corroborada quando se constata que 75,7% das vítimas de homicídio em 2018 eram negras. Entre 2008 e 2018 ocorreu aumento de 11,5% nos assassinatos de negros. No mesmo intervalo de tempo, houve redução -12,9% das mortes dos não negros. Para cada não negro assassinado, 2,7 pessoas negras são vítimas de homicídios. Sobre o instrumento empregado para cometer as violências, cabe ressaltar que 71,1% dos assassinatos foram praticados com armas de fogo.

Em síntese, o perfil demográfico destaca que as principais vítimas são homens jovens, negros, mortos por armas de fogo. Estudos no campo da segurança pública indicam que tais características são muito semelhantes ao perfil dos agressores. A condição de uma baixa escolaridade configura outra característica comum a esses dois grupos. No conjunto de vítimas do sexo masculino, 74,3% dos indivíduos tinham alcançado no máximo 7 anos de estudo, o que equivale no melhor dos cenários ao ensino fundamental incompleto. Na porção das vítimas do sexo feminino, esse percentual foi de 66,2%.

Em relação à violência de gênero, insta salientar que 4.519 mulheres foram assassinadas em 2018, ou seja, uma mulher é morta violentamente a cada duas horas no Brasil. Com 4,3 mortes por 100 mil mulheres, o país destaca uma das taxas mais elevadas do mundo. Sobre as violências psicológica, física, tortura e outros tipos praticados contra pessoas LGBTQI+, cabe destacar que em 2018 foram registradas 9.223 notificações no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) do Ministério da Saúde. Esse número foi 19,8% superior em comparação ao valor observado no ano anterior.

O Atlas da Violência é uma das principais ferramentas que garante amplo acesso às informações e análises sobre perspectivas da segurança pública. Ele é produzido em parceria pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Se caracteriza como uma ferramenta essencial para lançar luz sobre o quadro da violência brasileira e possibilitar, por meio dos diagnósticos estabelecidos, o desenvolvimento e aprimoramento de políticas públicas de prevenção e repressão qualificada.

 

*Doutor em Geografia, Mestre em Arquitetura e Urbanismo, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), pesquisador do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) e professor da Universidade Vila Velha (UVV)

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OAB Nacional e várias entidades lançam Mesa Nacional de Diálogo contra a Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/15/oab-nacional-e-varias-entidades-lancam-mesa-nacional-de-dialogo-contra-a-violencia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/08/15/oab-nacional-e-varias-entidades-lancam-mesa-nacional-de-dialogo-contra-a-violencia/#respond Thu, 15 Aug 2019 14:31:02 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/08/Dom-Paulo-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1030 O Conselho Federal da OAB sediou nesta quinta-feira (15) a Mesa Nacional de Diálogo Contra a Violência. O objetivo da mesa é reunir setores da sociedade civil para debater soluções para o crescimento da violência no Brasil e abrir um diálogo nacional em torno do clima de intolerância que cresce no país. Segundo dados do Atlas da Violência, publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do IPEA, o Brasil é um dos países mais violentos do mundo, com 65.602 homicídios registrados em 2017, 72,4% decorrentes de mortes por armas de fogo. Deste total, 75,5% dos mortos são negros.

Iniciativa da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos ‘Dom Paulo Evaristo Arns’ – Comissão Arns, a Mesa Nacional de Diálogo Contra a Violência reuniu representantes da OAB Nacional, da Comissão Arns, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Conselho Nacional dos Direitos Humanos, Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (Conic), Conselho Federal de Psicologia (CFP), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), Instituto Sou da Paz e Centro Nacional de Africanidades e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab). Durante o lançamento, foi lido o seguinte texto:

“O Brasil tem sofrido, com crescente horror, o recrudescimento de um dos piores traços da formação nacional: a violência incorporada ao cotidiano, especialmente das camadas de baixa renda. Segundo o Atlas da Violência, em 2017 houve uma taxa de 31,6 mortes violentas por 100 mil habitantes, a maior da história do país. Dos 65 mil assassinados, a maioria absoluta era composta de jovens e negros.

Às chacinas gratuitas, como a de Suzano (SP) no início deste ano, e aos morticínios planejados, como o de Altamira (PA) em julho passado, somam-se as balas, endereçadas e perdidas, que a cada dia ceifam o futuro e tornam infernal a vida dos indivíduos. Nada menos que 74% dos homicídios são cometidos por armas de fogo, um dos maiores indicadores do mundo. Propostas de facilitar o acesso a armas de fogo tornarão o quadro ainda mais grave. A escalada armamentista coloca em risco toda a população, e em particular a classe policial, que tem por dever estar na linha de frente dos conflitos.

Para piorar, recentemente têm proliferado os discursos de ódio, ajudando a conformar subjetividades violentas e intolerantes, e declarações públicas que legitimam a letalidade de órgãos oficiais. Ativistas e profissionais que repudiam tais pontos de vista se encontram em situação de crescente insegurança.

Está na hora de gritar basta! As entidades representativas da sociedade civil precisam mobilizar pessoas e instituições para construir uma agenda propositiva de segurança que respeite os direitos humanos e uma cultura cidadã capaz de refazer os laços de sociabilidade em dissolução.

Imbuídos de tal espírito, convidamos de maneira ampla organizações, movimentos e associações de variados credos e ideologias para sentarem-se juntos e discutir o que fazer. Se nos perguntarem agora como iremos nos organizar e como faremos para reduzir os índices que hoje assustam e envergonham a cidadania, responderemos com honestidade que não sabemos. Porém, estamos convencidos que a paz só será alcançada com o respeito aos direitos humanos e a promoção da participação democrática. Acreditamos que a mobilização desde baixo saberá inventar os caminhos necessários para chegar lá.

Por isso, lançamos hoje a iniciativa de uma Mesa Nacional de Diálogo contra a Violência. A Mesa não tem definições prévias, que serão construídas pelos que a ela aderirem. A única função das entidades que aqui convidam as demais é a de levantar as bandeiras da tolerância profunda, do respeito entranhado ao direito do outro e da busca da união na diversidade. Apostamos que em torno destes princípios poderemos contrapor ao monstro da violência a energia viva da sociedade mobilizada”.

Não podemos ficar indiferentes!

 

 

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Um arco-iris no caminho da ultradireita populista brasileira https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/23/um-arco-iris-no-caminho-da-ultradireita-populista-brasileira/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/23/um-arco-iris-no-caminho-da-ultradireita-populista-brasileira/#respond Mon, 24 Jun 2019 01:59:00 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/Rodrigo-Mitsuro-Martins-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=927 Milhões de pessoas lotaram a Avenida Paulista hoje (23) em São Paulo e ativamente apresentaram-se durante a 23a. Parada do Orgulho LGBT como peças de resistência à onda de ultradireita populista e autoritária que tomou conta do Brasil a partir da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Contra o discurso misógino, homofóbico e naturalizante de preconceitos e do ódio, milhões de pessoas deram prova de que as melhores armas são a tolerância e a promoção de uma agenda de direitos pautada no reconhecimento das múltiplas identidades e na diversidade.

Aqui no Faces da Violência já se falou bastante da pesquisa “Medo da Violência e Autoritarismo no Brasil“, realizada em 2017 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Datafolha. Segundo essa pesquisa, a população adulta com 16 anos de idade ou mais tinha uma propensão de adesão a valores autoritários de 8,1, em uma escala de 1 a 10. A eleição de Jair Bolsonaro comprovou que a pesquisa estava correta, uma vez que sua plataforma eleitoral foi baseada, na essência, na estética da violência e na defesa de um discurso de intolerância e polarização extrema. Bolsonaro não é causa mas sintoma do profundo “mal-estar civilizatório” que varre o ocidente e coloca em risco as democracias, como bem expôs Thiago Amparo nesta Folha, ontem (22), ao falar sobre a Hungria.

Aliás, ao falar sobre os riscos à democracia, os vazamentos de mensagens entre o ex-juiz Sergio Moro e os membros do Ministério Público Federal que integravam a Força Tarefa da Lava-Jato explicitaram a fragilidade do nosso estado de direito e, mais, mostraram o quão complexo é construir instituições verdadeiramente republicanas. Em nenhuma nação civilizada do mundo os fins justificam os meios e/ou  que a mídia esteja submetida à censura prévia dos donos do poder, mas, mesmo assim, é impressionante ver hordas de fanáticos defenderem sem nenhum pudor a punição da divulgação das mensagens. E não só, as redes sociais foram inundadas com pedidos de prisão e deportação do advogado e jornalista Glenn Greenwald, responsável pelo The Intercept.

Quando imaginávamos ter superado a ditadura de 1964, a campanha pela prisão e deportação de Greenwald nos faz lembrar do triste episódio da expulsão, em 1980, do padre Vito Miracapillo, que se recusou a celebrar missas em comemoração ao 7 de setembro. O padre italiano que trabalhava na cidade de Ribeirão, Diocese de Palmares, em Pernambuco, foi expulso do país a pedido do então prefeito da cidade, Salomão Correia Brasil, e do deputado estadual Severino Cavalcanti, então no PDS, que depois seria Presidente da Câmara Federal e terminaria envolvido no escândalo do mensalinho.

O episódio do vazamento das mensagens entre o ex-juiz e atual ministro da Justiça e Segurança Pública e os procuradores da Lava-Jato também escancara uma injustiça com os quase 700 mil policiais brasileiros. Isso porque as polícias são as instituições que levam quase que toda a culpa pela tragédia da violência e, paradoxalmente, são as instituições mais transparentes e controladas da área. Pouco sabemos sobre as engrenagens e atividades das demais instituições.

Eduardo Anizelli/Folhapress

As polícias têm demonstrado um censo de responsabilidade que merece destaque. E, retomando a pesquisa sobre autoritarismo, um dado que ainda foi pouco trabalhado e que talvez explique o comportamento das polícias e a força do movimento LGBTQ+ é que, simultaneamente ao brasileiro se mostrar propenso a aderir à pauta autoritária, uma outra bateria de perguntas deu pistas de como seria possível se contrapor ao discurso que ganhou força nas eleições e teima em querer ser hegemônico e impor seu modelo de ordem para a população.

Segundo a pesquisa, enquanto a adesão a valores ditos autoritários atingia 8,10 na escala, a propensão de aceitar a agenda de direitos civis, humanos e sociais prevista na nossa Constituição era de 7,83.

Tecnicamente essa segunda escala mostrou-se menos sólida e consolidada do que a primeira, mas se a olharmos atentamente veremos que, nela, a luta de quatro segmentos sociais ganharam destaque, a saber: os movimentos LGBTQ+; de mulheres, de negros e de luta contra a pobreza. O movimento LGBTQ+, mesmo com os altos índices de violência contra este segmento da população que o Atlas da Violência 2019 revelou, conseguiu mostrar que o homossexualismo não é crime ou doença.

Ou seja, o movimento LGBTQ+, entre outros, consolidou a agenda de direitos como uma narrativa forte a fazer oposição ao projeto de poder da família Bolsonaro e seu exército de seguidores. E, por esta razão, nada mais natural, politicamente falando, do que ver a Parada do Orgulho LGBT como uma prova de força e resistência.

Entretanto, para avançar, a pesquisa revelou que a defesa de direitos e da cidadania não pode ficar circunscrita à luta de um segmento, por mais justo e legítimo que este seja. Precisamos oferecer uma renovada narrativa sobre a incorporação de todos enquanto sujeitos de direitos; uma narrativa que reconheça e respeite as diferenças mas que não deixe o discurso da nação apenas para os órfãos da ditadura.

O problema é que teremos que lidar com o discurso autoritário, que tem usado o necessário combate à corrupção como cortina para empreender enormes esforços de conquista da hegemonia e tem flertado com medidas que soam (e são) como contrassenso (retirada de radares nas rodovias, proibição de multas para quem anda com crianças sem cadeirinhas de proteção, volta do passaporte com o brasão da República, ampliação do porte de arma, estudo para diminuição dos impostos dos cigarros, ampliação da excludente de ilicitude, cortes de orçamento na educação, fim da tomada de três pinos, entre outros “shows de bobagens” reconhecidos até pelo General Santos Cruz) porém mobilizam e batem fundo nas representações sociais e nos valores da população, reforçando-os.

Há muito o que ser feito e é positivo ver o movimento LGBTQ+ assumindo seu protagonismo nesta batalha civilizatória.

 

 

 

 

 

 

 

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Violência no Brasil e a saudade de ‘Dick Vigarista’ e a ‘Quadrilha da Morte’ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/09/violencia-no-brasil-e-a-saudade-de-dick-vigarista-e-a-quadrilha-da-morte/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/09/violencia-no-brasil-e-a-saudade-de-dick-vigarista-e-a-quadrilha-da-morte/#respond Mon, 10 Jun 2019 01:34:36 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/Fernanda-Canofre-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=893 Na semana em que o Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicaram o Atlas da Violência 2019, com dados do sistema de saúde sobre mortes violentas, o Brasil presenciou um bom retrato do nosso tempo social. Ao invés de os dados mobilizarem autoridades e população na busca de soluções e para que o tema fosse discutido de forma séria e com base em evidências, os últimos dias foram palco de uma série de acontecimentos que confirmam como a violência está naturalizada no cotidiano do país.

Segundo o Atlas, o Brasil teve 65.602 pessoas assassinadas em 2017. E, aqui, o primeiro dado inquietante, ou seja, o número apurado pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, indica o registro de 1.707 mortes a mais que o divulgado pelo próprio fórum em seu anuário, que tem como base os dados das secretarias da Segurança. Atingimos uma taxa de 31,6 mortes violentas para cada 100 mil habitantes.

Como bem alerta o Atlas, em uma premissa de honestidade metodológica e transparência, “segurança pública e saúde contam com metodologias distintas para contabilização das mortes, pois seus sistemas de informação servem a propósitos distintos. Para o sistema de segurança pública e justiça criminal importa saber se houve ou não um crime e tipificá-lo de acordo com a categoria penal correta, ao passo que para a saúde importam as informações de cunho epidemiológico relacionadas ao perfil da vítima e em que contexto morreu”. No entanto, se os dados de ambas as fontes nunca serão iguais, eles precisam seguir uma mesma tendência para serem considerados fidedignos.

O Atlas mostra que ambas as fontes apresentam a mesma tendência e números bastante similares entre 2013 e 2017. Todavia, entre 2014 e 2016 a diferença entre os dois sistemas não ultrapassava 1,4%. Porém, em 2017 a diferença atinge 2,7%”, em um indicativo de algo ocorreu em uma das duas fontes e que exige mais estudos e avaliações. Ou seja, a queda apurada em 2018 e 2019 no índice de homicídios no Brasil todo sobe no telhado em sua intensidade. Acredito, com base em outros dados da área, que ela seja verdadeira, mas somente uma auditoria mais detida e a máxima transparência nos critérios de contabilização das polícias poderão afastar dúvidas sobre o tamanho dessa queda. É possível que ela esteja inflacionada.

Mas ao colocar a redução da violência de 2018 e 2019 em dúvidas, o Atlas mexeu com as certezas daqueles que endeusam o governo Bolsonaro e foi solenemente ignorado pelas autoridades. Reconhecer que os dados precisam ser auditados ou que é necessário aguardar mais alguns meses para que uma nova tendência seja confirmada seria o equivalente a reconhecer que a comemoração da queda foi precipitada e afoita.

E, até por isso, é mais interessante para o séquito que adora o guru de Richmond e seus comensais da morte (e não se interessa em como ele se mantem e/ou quais os vínculos com a Atlas Network e outros think tanks de ultradireita) tentar desqualificar o porta-voz, independente da seriedade técnica com que os dados são divulgados. Por essa tática, nas redes sociais, a repercussão dos dados entre aqueles que acreditam em duendes ou na terra plana mostrou-se completamente alheia ao conhecimento científico acumulado ao longo de séculos pela humanidade.

E não foram poucos os questionamentos. Levantamento no Twitter mostrou um ataque coordenado em termos e questionamentos sobre o Atlas (aliás, essa coordenação chama bastante atenção pois há quem acredite na liberdade que as redes possibilitam mas que não se atenta para o risco de manipulações e estratégias digitais de condução do debate público). Entre os principais ataques de usuários pelo Twitter, destaco cinco dele, a saber:

1)Dados da pesquisa são de 2017. Sim, são, pois o sistema de saúde trabalha com dois anos de defasagem pois depende não só do registro mas da conferência e consolidação dos microdados. É fato que os dados podem parecer antigos para quem tem que lidar no cotidiano com crime e violência, mas para o estudo epidemiológico e de formulação de políticas de segurança pública, eles são ferramentas fundamentais.

2)Negros morrem mais porque são maioria no Brasil. Sim, mas esse é outro sofisma de quem não quer reconhecer a existência de um problema racial no país, pois se mais de 70% das vítimas de homicídios enquanto a composição entre a população está na casa dos 50%, temos uma sobre-representação de negros entre as vítimas gostemos ou não. O Brasil tem uma dívida histórica com os negros.

3) O perfil de quem morre é o mesmo de quem mata (homens negros). Não há pesquisas que confirmem essa tese, por mais que, em razão de outras evidências sobre o perfil dos mortos e características do crime, ela é possivelmente verdadeira. Mas isso não anula o fato de que entre negros a violência é maior e, se todos são cidadãos, cabe ao Estado pensar em estratégias de prevenção e redução dos homicídios de qualquer modo.

4)O Atlas reflete a herança do PT. Em certa medida, sim, a edição 2019 reflete os anos do PT no Governo Federal, mas não só. Ela revela como somos lenientes e complacentes com a violência no país. A violência faz parte da nossa história e não começou em 2003. São várias as causas e razões que estão associadas e quase nenhuma foi ainda enfrentada pelo Governo Bolsonaro. O PT não foi em nada diferente na segurança do que a direita e muitos dos problemas hoje enfrentados poderiam ter sido mitigados ao longo do período em que o partido esteve no Poder.

Por fim, uma quinta crítica associa o FBSP ao bilionário George Soros e à Folha como fatores de descrédito. É até engraçado pois hoje jornalismo profissional virou sinônimo de ideologia e ser transparente com os financiamentos recebidos virou motivo de críticas. Sim, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública recebe recursos de parcerias com a Fundação Open Society criada por Soros e o faz dentro do cumprimento estrito da legislação brasileira e dos EUA, com transparência, balanços contábeis e auditorias independentes. E, para quem não sabe ou para quem gosta de fazer ilações sobre os interesses em jogo, a Open Society tem uma rigorosa política de compliance que impede, por exemplo, que ela doe mais do que 33% do orçamento anual de qualquer entidade por ela apoiada. Isso para não gerar conflitos de interesses e/ou dependência.

E isso não se aplica apenas ao Atlas. Um importante lobista das armas colocou em xeque a pesquisa do Ibope que mostra que a maioria da população é contra o porte de armas indiscriminado porque, na opinião dele, 2 mil entrevistas não seriam suficientes para retratar a opinião da população. E, em se tratando de quem é, ele com certeza tem ao menos noções rudimentares sobre estatística e probabilidade. Mas, mais do que discutir evidências, o objetivo de seu posicionamento foi o de mobilizar as suas hordas de zumbis e desacreditar quem trabalha seriamente. Conhecimento? Às favas com o conhecimento, o importante é ganhar no grito e nas estratégias digitais de manipulação da opinião pública.

E o que é dito nas redes: falar sobre homicídios da população LGBTQ+ ou da violência contra crianças? Não pode, isso é ideologia de gênero e vitimismo. Falar do crescimento dos feminicídios ? Também não pode, isso é ideológico pois a maioria das mortes é de homens. Armas de Fogo? Sacrilégio, já que todos têm o direito quase que divino da autotutela e de liberdade de escolha. Falar de prisões e drogas? Nossa, somos inconsequentes pois estaríamos defendendo bandidos, que eles morram enfileirados ou se matem, temos mais que nos vingar.

Daria para escrever centenas de páginas sobre o retorno da alquimia e do pensamento mágico como nortes das representações sociais acerca da violência e da segurança pública. Mas, para concluir, será que os mesmos que defendem a violência como política de Estado e armas como liberdade individual seriam coerentes e defenderiam o aborto ou a descriminalização da maconha? Provavelmente não, pois coerência é algo que não exatamente guia o humor da sociedade atualmente.

O Brasil ganhará muito quando conseguirmos vencer a violência desenfreada revelada pelo Atlas da Violência 2019 e também ganhará quando aprendermos a lidar melhor com os interesses e lobbies por trás da “espontaneidade” das redes sociais.

Enquanto isso, distante da realidade, o presidente Jair Bolsonaro anda de Jet Ski; patrocina a versão brasileira da corrida maluca, desenho animado que fez sucesso nas décadas de 1960 e 1970 com personagens como Dick Vigarista e a Quadrilha da Morte, ao enviar projeto que incentiva mais violência no trânsito; entre outras pirotecnias de uma narrativa que ignora fatos e realidade e abusa do pânico e do conservadorismo da população do país.

 

 

 

 

 

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No Brasil, mata-se muito e agora há quem queira matar o mensageiro. https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/17/no-brasil-mata-se-muito-e-agora-ha-quem-queira-matar-o-mensageiro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/17/no-brasil-mata-se-muito-e-agora-ha-quem-queira-matar-o-mensageiro/#respond Sun, 17 Jun 2018 22:12:34 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/15312184-150x150.jpeg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=60 Na última sexta feira, dia 15, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Ipea divulgaram o volume final do Atlas da Violência – 2018, com dados para todos os municípios do país com mais de 100 mil habitantes. Os números desagregados deram ainda mais dramaticidade àquele divulgado na semana anterior, que dava conta de explicitar o tamanho da tragédia das 62.517 mortes violentas intencionais registradas em 2016 no país.

Já faz muito tempo que temos reiterado que somos uma sociedade cruel e violenta e nos acostumamos com cenas de barbárie e com políticas públicas ineficientes. A violência faz parte do cotidiano brasileiro. Ela nos anestesia. E quando, em um retrocesso típico de pensamentos arcaicos sobre transparência e responsabilidades públicas, a sociedade civil e órgãos de pesquisa trazem o problema para debate, são atacados na tática de se evitar discutir o que se está por trás dos números.

Aliás, sobre este fato, é sempre importante dizer que o Brasil passa a vergonha de não dispor, na segurança pública, de um sistema nacional oficial de estatísticas policiais. E não é por falta de dinheiro ou condições tecnológicas. É por falta de coordenação federativa e pela omissão de gestores públicos estaduais e federais.

É mais fácil tentar matar o mensageiro, como na Idade Média (O FBSP, por exemplo, tem enfrentado fortes resistências para produzir e publicar dados). Por sinal, se fôssemos um país civilizado na segurança pública, já teríamos feito uma ampla e transparente auditoria nos dados sobre registros policiais no país e não teríamos que, em plena segunda década do Século 21, discutir uma agenda do final do 19, começo do 20, nos EUA e na Europa.

Não passaríamos a vergonha de os nossos gestores confundirem os sistemas de dados da saúde e o da segurança e acharem que um dia, em um futuro distante, teremos apenas uma informação (isso não existe em nenhum lugar do mundo, pois cada sistema é feito para um propósito).

Se os secretários de segurança pública contratassem uma auditoria independente dos seus dados, talvez assim poderíamos abrir a caixa preta dos dados da Bahia e de São Paulo, que são as Unidades da Federação que apresentam as maiores taxas de subnotificações de registros da saúde e que, na segurança pública, alegam ter metodologias diferentes para criticarem comparações.

Nesta briga sobre como classificar e o que contar como violência, a sociedade é a maior vítima. Se um homicídio ou latrocínio; ou se legítima defesa ou não, corpos estão estirados no chão e o Estado precisa oferecer um mínimo de dignidade para que sejam enterrados (lembremos que até o corpo de Osama Bin Laden teve, por parte dos EUA, o tratamento que os muçulmanos dedicam aos seus mortos). Sem dados não há planejamento e sem planejamento há grande chance de carência ou de desperdício de recursos.

O grau de civilidade de um país e da estatura moral de sua sociedade pode ser medido pela forma e pelo destino que são dados aos corpos de seus mortos, independentes de quem eles sejam. Ao negarmos transparência e ficarmos no debate ideológico sobre as estatísticas de mortes violentas intencionais (por sinal nada mais ideológico do que acusar a estatística que contraria sua visão de mundo de ideológica), estamos dando provas de que vivemos a degradação moral e política em sua intensidade máxima.

E, sempre é bom lembrar, isso não é exclusividade da direita, do centro e/ou da esquerda. É a vida como ela é. Ou melhor, é a morte como covardia e como omissão. Mas tragicamente criticar os dados é sinônimo de não reconhecer a completa falência das políticas de prevenção e enfrentamento ao crime e à violência.

Se evidências bastassem, o Atlas da Violência 2018 reforçou que a violência letal é endêmica no país e, ao estar associada com cidades com maior número de jovens que não estudam e não trabalham, explicitou que a prisão é a praticamente a única política pública reservada aos nossos jovens pobres e negros e que algo precisa ser feito urgente.

Não há quase ações de prevenção secundária (com grupos vulneráveis) ou de prevenção terciária (com egressos dos sistemas socioeducativo ou prisional) e nada oferecemos como oportunidade de vida para milhões de jovens.

E, ao fazermos isso, estamos fornecendo mão de obra às organizações criminosas tanto ao prender muito em função de uma política de drogas estúpida, quanto pelo fato de que, ao não termos políticas de prevenção, a vida no crime torna-se o caminho natural pelos abandonados pelo Estado e pela sociedade.

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Violência: o atestado de óbito da Democracia https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/05/violencia-o-atestado-de-obito-da-democracia/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/06/05/violencia-o-atestado-de-obito-da-democracia/#respond Tue, 05 Jun 2018 14:14:37 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2018/06/1712367-150x150.jpeg http://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=37 O Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgaram hoje a edição de 2018 do Atlas da Violência, publicação que sistematiza e analisa dados fornecidos pelo sistema de saúde do país. Os números, mais uma vez, são de uma tragédia mais do que anunciada. Em 2016, 62.517 pessoas foram assassinadas no Brasil, em um aumento de 5,8% em relação ao ano anterior.

E as más notícias não param neste total. Os 62.517 homicídios representam uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, maior patamar da história desde que os dados do sistema de saúde são contabilizados. E, se focarmos apenas nos jovens entre 15 e 29 anos de idade, a taxa salta para 65,5 mortes para cada 100 mil jovens. Trata-se de uma taxa mais do que o dobro maior do que a média nacional e que revela que estamos boicotando o nosso futuro.

Estudos do economista Daniel Cerqueira, do Ipea, estimam que o Brasil perde 1,5% de seu PIB todos os anos (Produto Interno bruto) ao aceitar que os assassinatos de jovens se mantenham nestes patamares obscenos. E, em 6 estados brasileiros, as taxas de mortes de jovens superam as inacreditáveis 100 mortes por 100 mil, com destaque para Bahia (114,3) e Pernambuco (105,4), dois grandes estados do Nordeste.

Além disso, os dados demonstram que entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1% e está em 40,2 mortes para cada 100 mil habitantes, a taxa de não negros teve redução de 6,8%e está em 16 mortes para cada 100 mil habitantes.
Temos que ter a dignidade de abrirmos um debate transparente sobre o significado destes dados e sobre as razões da questão racial ser tão predominante na explicação da violência.

No entanto, ao invés de enfrentarmos o problema, o discurso bélico de autoridades é o atalho mais curto para o fracasso do Estado de Direito no Brasil. Nada se fala em prevenção, repressão qualificada e aperfeiçoamento das instituições; nada se fala de quão obtusa é a cruzada de “guerra às drogas” vivida por nós e de como o mata-mata que vige nas periferias das grandes cidades é a face mais perversa de opções político-institucionais sobre como lidar com os nossos conflitos sociais mais candentes. Somos uma sociedade atemorizada e autoritária, onde as promessas que valorizam a violência como resposta são uma poderosa arma eleitoral.

Basta vermos que no dia em que o Atlas da Violência vai mostrar um recorde histórico de assassinatos, a pesquisa do site jornalístico Poder360 mostra o defensor de mais violência como solução para os problemas da segurança pública, Jair Bolsonaro, como líder das pesquisas. Chega a ser imoral a aceitação que a violência tem no Brasil.

Imoral e completamente desprovida de racionalidade, já que a violência é parte da história do país e não é fruto exclusiva de “perigosos criminosos de fuzis”. Por certo a nova dinâmica do crime organizado exige respostas mais eficientes do que as o Estado brasileiro tem dado por meio da ação de suas esferas e poderes.

Porém, se olharmos para o indecente dado que mostra que 50,9% das vítimas de estupros no país é composta por crianças com até 13 anos de idade e, ainda mais angustiante, que 30% dos casos de estupro contra crianças são perpetrados por familiares próximos, veremos que a violência atinge a todos nós e que a melhor saída para o país seria uma grande coalização política para bani-la do nosso cotidiano.

Sim, a solução passa pela construção de um projeto político que seja capaz de modernizar a segurança pública brasileira e pacificar a sociedade. Mas sem ideias toscas e salvacionistas, mas com trabalho, evidências e esforços articulados e coordenados. Um projeto que valorize o profissional da área e, ao mesmo tempo, esteja motivado pelo cumprimento da lei, que tem nas cláusulas pétreas da Constituição Federal a sua maior guia.
Enquanto olharmos a segurança pública sob o prisma do terror que toma conta do brasileiro, soluções efetivas dificilmente terão êxito.

Estamos correndo um enorme risco civilizatório e é importante que saibamos explicita-los para não haver margem de dúvidas: ou o Brasil interdita politicamente a violência ou estaremos preenchendo o atestado de óbito da democracia no país.

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