Faces da Violência https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br O que está por trás dos números da segurança pública Tue, 23 Nov 2021 18:56:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Efeito Contágio: o papel da mídia na repetição de assassinatos em massa https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/14/efeito-contagio-o-papel-da-midia-na-repeticao-de-assassinatos-em-massa/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/14/efeito-contagio-o-papel-da-midia-na-repeticao-de-assassinatos-em-massa/#respond Fri, 14 May 2021 22:04:40 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/05/Back-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1772 Ampla divulgação de massacres pode contribuir para a ocorrência de casos semelhantes. Jornalistas devem evitar citar o nome dos perpetradores e não publicar suas fotos

 

Caroline Back*

Mais um caso de assassinato em massa chocou o país no dia 04/05: um rapaz de 18 anos invadiu uma creche no interior de Santa Catarina e matou a golpes de facão três crianças e duas professoras, tentando em seguida cometer suicídio. A ocorrência de mais essa tragédia evidencia uma preocupação: há algo que se possa fazer para tentar evitar casos como esses?

Nesse sentido, este artigo busca trazer reflexões acerca da cobertura midiática dessas ocorrências e a possível influência em novos casos, o chamado “efeito contágio”. Além disso, oferece orientações para direcionar a cobertura de tais eventos de forma a minimizar esse efeito.

Cobertura midiática e o efeito contágio

Há muito tempo, teóricos da psicologia e sociologia sabem que comportamentos tendem a ser imitados com base nas suas consequências e esse efeito pode ser particularmente devastador no caso de comportamentos violentos.

Exemplo disso é o chamado “efeito Werther”, termo proposto pelo sociólogo David Phillips, em 1974, para descrever a influência da divulgação de atos suicidas na ocorrência de outros casos. O fenômeno foi observado na Alemanha, no final do século XVIII, após uma onda de suicídios ter sido relacionada ao trágico desfecho do personagem Werther – da célebre obra de Johann Von Goethe, publicada em 1774.

Acredita-se que o mesmo fenômeno esteja relacionado aos casos de assassinatos em massa, o chamado “efeito contágio”, indicando que a ampla divulgação dos massacres possui o efeito de gerar outros casos semelhantes, de indivíduos que buscam imitar os ataques e receber a mesma atenção.

Esse fenômeno pode ser explicado, em parte, pela ampla publicidade que se dá a tais eventos. Por exemplo, um levantamento mostrou que os autores de sete assassinatos em massa entre 2013 e 2017 receberam aproximadamente US$ 75 milhões em menções de mídia gratuitas. Esse tipo de publicidade gratuita pode ter o mesmo efeito de publicidades pagas, aumentando o número de interessados no assunto e inspirando a prática de novos casos.

Além disso, já foi demonstrada correlação positiva entre o número de vítimas e a publicidade obtida pelo agressor. Um estudo que analisou assassinos em massa entre os anos de 1976 e 1999 descobriu que aqueles que mataram e feriram mais vítimas tinham uma probabilidade significativamente maior de aparecer no jornal The New York Times em comparação aos casos em que houve menos derramamento de sangue. Ou seja, a maior atenção recebida pode ser um incentivo a mais para o criminoso matar o maior número de vítimas possível.

Tal fato tem uma explicação psicológica: acredita-se que uma das características frequentes em assassinos em massa é a presença de um traço narcísico, que os leva a querer chamar a atenção da sociedade para seus atos “grandiosos” e até mesmo uma espécie de “competição” com outros ofensores para fazerem o maior número de vítimas.

Nesse sentido, Lankford documentou 24 exemplos de perpetradores que admitiram abertamente buscar fama e citou casos adicionais em que há fortes evidências comportamentais que indicam essa intenção. Alguns desses indivíduos estavam inclusive competindo com outros para se tornar o assassino em massa mais famoso da história.

Cobertura midiática e a influência em novos casos: dados assustadores

Para compreender melhor esse fenômeno, estudos buscaram identificar a influência da divulgação midiática na ocorrência de novos ataques. A maior parte deles foi feita com base em tiroteios em massa, que é reconhecidamente a forma mais comum desses ataques. Os dados são assustadores: um estudo realizado em 2015 estimou que cada evento possa incitar pelo menos 0,30 novos casos.

Outro propôs uma metodologia para estabelecer uma relação de causa e efeito entre os eventos. Ao analisar casos entre 2013 e 2016, nos EUA, concluiu que nada menos do que 58% de todos os tiroteios em massa podiam ser explicados pela cobertura de notícias. Os estudos ainda apontam um período de quatro dias a duas semanas em que essa influência estaria presente.

Recomendações

Assim, as principais recomendações para a cobertura desses eventos na mídia são simples e práticas, mas podem ser muito efetivas:

1. Não citar o nome do perpetrador nem sua foto;

2. Em vez disso, usar o ano, local do ataque e uma palavra como “perpetrador” ou “suspeito”;

3. Não usar nomes, fotos ou imagens de perpetradores anteriores;

4. Evitar retratar o indivíduo como “competente” no seu intuito homicida;

5. Evitar retratá-lo como “agressivo” ou “perigoso”, pois pode ser uma espécie de recompensa ou atributo a ser imitado;

6. Relatar todo o restante sobre o caso, com a quantidade de detalhes desejada.

Quando o assunto for a cobertura dos assassinatos em massa: “não os nomeie, não os mostre, mas relate todo o resto”.

 

*Psicóloga na Secretaria de Segurança Pública (GMSJP – PR); Especialização em Segurança Pública; Cursando Pós-Graduação em Neurociência Criminal e Comunicação não-verbal; Graduação em Psicologia (PUCPR); Cursando Graduação em Direito (FESPPR); Membro do Conselho Comunitário de Execuções Penais de São José dos Pinhais (CCEP-SJP).

Acompanhe as edições semanais integrais do Fonte Segura, a newsletter com dados e análises sobre segurança pública. Acesse: fontesegura.org.br

Na edição desta semana, leia também “Rio de Janeiro e o desgoverno da segurança” e “Ministério Público e o controle da atividade policial“.

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Os fuzis na favela https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/25/os-fuzis-na-favela/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/02/25/os-fuzis-na-favela/#respond Thu, 25 Feb 2021 17:49:20 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2021/02/fuzis-320x213.png https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1684 O porte disfarçado, antes limitado ao atirador esportivo, foi estendido a caçadores e colecionadores e compromete as possibilidades de rastreamento de armas

Bruno Langeani*

Na noite em que o Brasil atingiu 1.204 mortes pela Covid-19, o presidente editou quatro decretos de flexibilização de armas, publicados pouco antes de embarcar para descansar em Santa Catarina. De lá, ao ser questionado sobre como as medidas impactavam o rastreamento de munição, tergiversou: “Fala pros ‘especialistas’ rastrearem os fuzis que estão na favela”.

Bolsonaro não gosta muito de prestar contas. É frequente também que transfira responsabilidades que são suas. Sua resposta pode funcionar no Twitter, mas não resiste a um sopro.

A estrutura para rastrear fuzis que estão “na favela” é de competência federal, assim como a de investigar o tráfico internacional de armas. E, nesta área, o Brasil também vai mal, como mostra uma matemática simples.

Em dois anos, o país só conseguiu dar detalhes da apreensão de 7 mil armas, segundo relatório sobre o tema lançado em 2020 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Nos mesmos dois anos, o número de apreensões reais supera 240 mil; 233 mil armas ficaram de fora.

A ironia triste é que este dado só está disponível porque os “especialistas” da sociedade civil conseguem reunir mais informações do que o governo. Se nosso país mal consegue contar as apreensões e não sabe quais os tipos e calibres de armas apreendidas, como poderá rastreá-las?

É importante destacar que o problema não está na Polícia Federal, que tem um dos melhores expertises nesta atividade, de onde se originou a suspensão temporária de importação de armas pelo Paraguai, após provarem, com rastreamento, o tráfico para o Brasil. Sem que os estados compartilhem com a União dados das suas apreensões de maior volume e sem aumento de estrutura para o Centro de Rastreamento da PF, seguiremos mal.

Se de fato estivessem preocupados com os “fuzis na favela”, Bolsonaro e o ministro da Justiça já teriam atacado estas falhas. Ao invés disso, escolhem desmontar as possibilidades de controle. Com o pacote do carnaval, ultrapassamos 30 dispositivos sobre armas publicados nesta gestão.

É no conjunto da obra que o perigo se revela. Antes de 2019, os cidadãos tinham autorização de compra para até duas armas, apresentando justificativas em cada compra. Bolsonaro aumentou para quatro armas e agora seis.

A compra de munição por arma para civis era de 50, passou para 200. E estaria agora em 600 por ano, caso a Justiça não tivesse suspendido a medida, em um dos poucos freios até agora. No momento, há dois decretos vigentes que tratam da arma do civil, um que inclui apresentação de justificativa para compra de arma e outro que a omite, ainda que a lei assim exija. A opção fica por conta do freguês.

Para entender este emaranhado, classificado pelo Ministério Público Federal como “caos normativo”, é possível enquadrar as mudanças em três eixos. O primeiro é o de facilitação de acesso à compra de armas e ao porte. Em segundo, um aumento substancial nas armas e munições que podem ser compradas por cada categoria, aliado à ampliação em quatro vezes da potência de armas permitidas, possibilitando que civis tenham armas iguais ou mais potentes que as da própria polícia, como .40 e .45. Por último, estas medidas foram acompanhadas da perda de capacidade de fiscalização, já que foram revogadas portarias de aperfeiçoamento da marcação e rastreabilidade de armas e munições.

Dentre os pontos mais graves, o porte disfarçado, criado contra a lei em 2017 e limitado a atirador esportivo, foi estendido a caçadores e colecionadores. Este porte, que já era bastante problemático, agora não está limitado a horário, nem trajeto.

Se um atirador disser que está levando seus fuzis e outras armas de seu acervo do Paraná para o Rio de Janeiro, ainda que as circunstâncias sejam suspeitas, nada poderá ser feito pela polícia, que não tem acesso aos sistemas nem para verificar se o documento é verdadeiro, nem se as armas têm registro.

O governo abriu mão de controlar carregadores de munições e miras laser ou telescópicas. Máquinas de recarga de munição e projéteis até o calibre .50 não demandam mais registro no Exército, nem do fabricante, nem do comerciante, nem do consumidor. Se antes alguns armeiros do tráfico buscavam o CR no Exército para acessar insumos de recarga e turbinar suas atividades ilegais, agora não têm mais que se preocupar. Nas palavras do presidente, “desburocratizou”.

Mesmo contra a lei, o porte passou a se desvincular da arma e ter abrangência nacional. Antes a PF modulava a limitação territorial de acordo com a circunstância. Com isso, autoriza agora a pessoa a carregar consigo até duas armas do seu acervo simultaneamente.

No campo dos policiais, o limite de seis aumentou para oito armas, abrindo um precedente para o uso de armas pessoais em serviço. Isso dificulta ainda mais o controle do uso da força letal.

A liberação do uso de munições apreendidas não só colocará em risco os policiais, que contarão com munição de procedência duvidosa, como dificultará o esclarecimento de mortes por intervenção. Com doações, a marcação de lote exigida pelo Estatuto do Desarmamento é perdida. Com todas estas alterações, a aprovação da excludente de ilicitude passa a ser cada vez menos necessária.

Voltando aos fuzis, o mesmo relatório da UNODC destacava de forma positiva o fato de que, no Brasil, o fuzil no crime tem um valor considerado alto em comparação com outros mercados ilegais. Isso acontecia pois eram restritos a poucas unidades de forças de segurança, havendo assim, menos oportunidades de desvio no mercado doméstico.

Com a liberação para compra de até 30 unidades por atirador e fim do monopólio nacional, fuzis de várias marcas estão sendo recebidos em casa por civis. Neste novo Brasil, organizações criminosas não precisarão mais recorrer ao tráfico internacional, basta arrumar um laranja.

Com isso, o fenômeno da locação de fuzis, derivado da baixa disponibilidade, não será mais necessário. Como diz o release do governo, “desburocratizou”.

 

*Gerente do Instituto Sou da Paz, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e mestrando do Programa de Políticas Públicas da Universidade de York.

 

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Na edição desta semana, leia também “Prisão do deputado Daniel Silveira é controversa” e “O que justifica o aumento das mortes violentas sem causa definida?”.

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Por que o Brasil caiu 3 posições no Índice Global de Paz? https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/05/por-que-o-brasil-caiu-3-posicoes-no-indice-global-de-paz/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2020/08/05/por-que-o-brasil-caiu-3-posicoes-no-indice-global-de-paz/#respond Wed, 05 Aug 2020 14:31:38 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2020/08/Armas1-320x213.gif https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=1499 Dos 163 países ranqueados, o Brasil está na posição 126, tendo caído três posições em relação ao ano anterior.

Por Carolina Ricardo*

Na semana passada foi lançado no Brasil o Global Peace Index (Índice Global de Paz – IGP) de 2020, que compara 163 países em relação a nível de paz encontrado em cada um deles, elaborado pelo Institute of Economics and Peace (Instituto de Economia e Paz), com sede em Sidney, na Austrália. O IGP é uma medida interessante, sendo um indicador complexo que articula três dimensões: 1) Conflitos internos e internacionais em curso no país; 2) Segurança social e pública; e 3) Militarização. Seu objetivo é promover um entendimento mais compreensivo do nível de paz encontrado nos países, sendo um esforço para categorizar a paz para além da presença ou ausência de guerras nos países.

A primeira dimensão inclui indicadores como quantidade e duração de conflitos internos, número de pessoas mortas em conflitos externos e participação do país nesses mesmos conflitos internacionais. Já a segunda, mais ampla e mais complexa, envolve indicadores tais como números de refugiados, escala de terror político (práticas autoritárias), nível dos crimes violentos, taxa de homicídios por 100 mil habitantes, probabilidade de manifestações públicas violentas, população prisional por 100 mil habitantes e policiais por 100 mil habitantes, acesso individual a armas de fogo. E, por fim, a terceira dimensão envolve indicadores como percentual dos gastos militares em relação ao PIB, total de militares por 100 mil habitantes, volumes de armas exportadas e importadas por 100 mil habitantes. É uma metodologia complexa e que se encontra muito bem detalhada no relatório  , assim como a descrição das fontes para cada indicador que compõe o índice. De toda forma, é uma forma ousada e inovadora de avaliar a paz.

O balanço geral do IGP 2020 é de que o nível de paz global sofreu uma deterioração em relação ao ano anterior, de 0,34%. Sendo a nona queda dos últimos 12 anos. Os aspectos que contribuíram para essa deterioração em nível global foram o aumento do terror político, aumento de refugiados e da intensidade de conflito internos. Dos 163 países ranqueados, o Brasil está na posição 126, tendo caído três posições em relação ao ano anterior. Na dimensão conflitos em curso, a posição do Brasil é a mais positiva entre as três, ocupando a 88ª posição. Já na dimensão segurança, o Brasil apresenta o pior resultado, estando em 145º e na dimensão militarização, em 120º.

O que explica a queda brusca na dimensão segurança, é a piora no indicador de crimes violentos, homicídios, terrorismo político (práticas autoritárias) e acesso às armas individuais. Ainda que os homicídios tenham caído entre 2018 e 2019, nossos números absolutos desse crime ainda são inaceitáveis. Segundo o relatório sobre homicídios do UNODC publicado em 2019, o Brasil tem a segunda maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes da América do Sul, só perdendo para a Venezuela.

Em relação ao indicador acesso às armas individuais, o IGP cria um ranking que categoriza os níveis de acesso às armas de fogo. Dadas às medidas de flexibilização do acesso às armas implementadas desde janeiro de 2019 , com cerca de 10 decretos e um sem número de portarias editadas nesse sentido, que já possibilitaram a entrada de cerca de 140 mil novas armas de fogo em circulação só no primeiro semestre de 2020 e a venda de 2 mil munições por hora no mês de maio, fica claro porque esse indicador ajudar a jogar o Brasil para baixo no IGP

Para revertemos esse quadro é imperativo fortalecer a política de controle de armas de fogo, priorizar a prevenção e o esclarecimento de homicídios, enfrentar com inteligência e planejamento os outros crimes violentos e, sobretudo, enfrentar o terrorismo político, por meio da defesa incessante das práticas democráticas e de respeito ao rule of law.

*Advogada e socióloga. Diretora Executiva do Instituto Sou da Paz

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Michele dos Ramos e Felippe Angeli: ao invés de decretos, responsabilidade de governo https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/26/michele-dos-ramos-e-felippe-angeli-ao-inves-de-decretos-responsabilidade-de-governo/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/26/michele-dos-ramos-e-felippe-angeli-ao-inves-de-decretos-responsabilidade-de-governo/#respond Wed, 26 Jun 2019 14:24:34 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/Fernanda-Mena_Folhapress-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=941 Por Michele dos Ramos e Felippe Angeli*

O governo publicou nesta terça-feira (25) mais três decretos sobre posse e porte de armas e munições. Desde o início do governo há seis meses, foram seis decretos sobre o tema. Além dos decretos, o governo também apresentou um projeto de lei que confere ao Executivo a possibilidade de ampliar as categorias com acesso ao porte (atribuição do Legislativo), dentre outras medidas.

Nesse cenário, é importante discutir a responsabilidade do governo federal ao lidar com uma agenda tão importante para a segurança pública do país. Seria ótimo se pudéssemos relatar neste espaço a consulta do Executivo aos 14 governadores que se manifestaram contra o conteúdo dos primeiros decretos, reforçando o impacto negativo das mudanças na segurança pública de seus estados e no próprio trabalho de suas polícias.

Ficaríamos ainda mais contemplados se fosse possível destacar o compromisso republicano do atual governo para dar continuidade às ações de consolidação do Brasil como uma referência de regulação responsável de armas e munições para a América Latina e para o mundo, como bem reiteraram os 12 ex-ministros da Justiça e Segurança Pública que também se manifestaram contra os primeiros decretos presidenciais. Tais ações do governo federal, infelizmente, até agora não aconteceram.

Precisamos que o Executivo se engaje no aperfeiçoamento de mecanismos de controle de armas e munições para evitar que elas caiam na ilegalidade e nas mãos dos criminosos, ao invés de seguir na edição e reedição de decretos que tornam esse trabalho ainda mais difícil. Todas as pesquisas de opinião mostram que a maioria da população está longe de acreditar que mais armas nas ruas tornarão o Brasil mais seguro: de acordo com o IBOPE, 73% dos brasileiros são contrários à flexibilização do porte de armas.

Arriscamos dizer que é bem provável que a população brasileira prefira que a energia do governo dedicada aos seis decretos sobre armas e munições seja dirigida ao compromisso de campanha com a redução do desemprego no país, ou mesmo ao compromisso de governo com o enfrentamento do crime organizado.

Depois do Senado votar pela inconstitucionalidade dos decretos do governo na última semana, às vésperas da votação na Câmara (que muito provavelmente votaria da mesma maneira) e do início da votação da inconstitucionalidade dos decretos também no Supremo Tribunal Federal na manhã desta quarta-feira, o governo poderia revogar os decretos, mas jamais publicar outros três com conteúdo praticamente idêntico, caso realmente a “humildade” e o “respeito ao Parlamento” prevalecessem no Executivo federal.

O sistema democrático não é uma disputa de cabo de guerra, de uns contra os outros. O uso de artifícios legais e manobras para protelar a votação e o julgamento da inconstitucionalidade dos decretos, bem como a insistência na defesa de seu conteúdo como vontade da maioria da população, desconsiderando todos os fatos contrários a isso, estão longe de reforçar o pacto e o equilíbrio de funcionamento dos três Poderes.

Discussões centrais para a segurança pública no país não estão sendo realizadas, opiniões de gestores e profissionais da área são desconsideradas e conquistas de décadas de trabalho não saem do papel. Na democracia, não há como substituir o diálogo e a criação de consensos por uma tentativa da lei do mais forte. Se assim o for, nos enfraqueceremos todos.

A insegurança e a violência no país seguem sendo um dos maiores obstáculos para nosso desenvolvimento humano, social e econômico. Como representantes de organizações da sociedade civil e cidadãos, reforçamos as vozes para que nossos esforços e recursos sejam direcionados, de maneira mais do que responsável, à garantia do direito à vida e à segurança de todos os brasileiros e brasileiras. Sobressaltos, retrocessos, insegurança jurídica e pouca disposição ao diálogo com vozes divergentes não são bons conselheiros para políticas públicas e muito menos para a democracia.

É preciso estabelecer um limite no descaminho das propostas sobre armas e munições no país em que mais de 42 mil pessoas são mortas por armas de fogo todos os anos. O governo produziu uma média de um decreto por mês para que se vendam mais armas e para que mais pessoas possam andar armadas nas ruas. Para onde estamos indo?

***

Atualização 16:23: um sétimo decreto foi publicado na noite de 25/06 (decreto Nº 9.847). Ele revoga, dentre outros, o decreto Nº 9.844, que havia sido publicado no próprio dia 25/06 e dispunha sobre mudanças nos critérios de concessão de porte de armas de fogo. No projeto de lei apresentado pelo presidente ao Congresso, a competência sobre este ponto passaria do Legislativo para o Executivo.

 

Michele dos Ramos, Assessora Especial do Instituto Igarapé

Felippe Angeli, Gerente de Advocacy do Instituto Sou da Paz

 

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Violência no Brasil e a saudade de ‘Dick Vigarista’ e a ‘Quadrilha da Morte’ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/09/violencia-no-brasil-e-a-saudade-de-dick-vigarista-e-a-quadrilha-da-morte/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/06/09/violencia-no-brasil-e-a-saudade-de-dick-vigarista-e-a-quadrilha-da-morte/#respond Mon, 10 Jun 2019 01:34:36 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/06/Fernanda-Canofre-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=893 Na semana em que o Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicaram o Atlas da Violência 2019, com dados do sistema de saúde sobre mortes violentas, o Brasil presenciou um bom retrato do nosso tempo social. Ao invés de os dados mobilizarem autoridades e população na busca de soluções e para que o tema fosse discutido de forma séria e com base em evidências, os últimos dias foram palco de uma série de acontecimentos que confirmam como a violência está naturalizada no cotidiano do país.

Segundo o Atlas, o Brasil teve 65.602 pessoas assassinadas em 2017. E, aqui, o primeiro dado inquietante, ou seja, o número apurado pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, indica o registro de 1.707 mortes a mais que o divulgado pelo próprio fórum em seu anuário, que tem como base os dados das secretarias da Segurança. Atingimos uma taxa de 31,6 mortes violentas para cada 100 mil habitantes.

Como bem alerta o Atlas, em uma premissa de honestidade metodológica e transparência, “segurança pública e saúde contam com metodologias distintas para contabilização das mortes, pois seus sistemas de informação servem a propósitos distintos. Para o sistema de segurança pública e justiça criminal importa saber se houve ou não um crime e tipificá-lo de acordo com a categoria penal correta, ao passo que para a saúde importam as informações de cunho epidemiológico relacionadas ao perfil da vítima e em que contexto morreu”. No entanto, se os dados de ambas as fontes nunca serão iguais, eles precisam seguir uma mesma tendência para serem considerados fidedignos.

O Atlas mostra que ambas as fontes apresentam a mesma tendência e números bastante similares entre 2013 e 2017. Todavia, entre 2014 e 2016 a diferença entre os dois sistemas não ultrapassava 1,4%. Porém, em 2017 a diferença atinge 2,7%”, em um indicativo de algo ocorreu em uma das duas fontes e que exige mais estudos e avaliações. Ou seja, a queda apurada em 2018 e 2019 no índice de homicídios no Brasil todo sobe no telhado em sua intensidade. Acredito, com base em outros dados da área, que ela seja verdadeira, mas somente uma auditoria mais detida e a máxima transparência nos critérios de contabilização das polícias poderão afastar dúvidas sobre o tamanho dessa queda. É possível que ela esteja inflacionada.

Mas ao colocar a redução da violência de 2018 e 2019 em dúvidas, o Atlas mexeu com as certezas daqueles que endeusam o governo Bolsonaro e foi solenemente ignorado pelas autoridades. Reconhecer que os dados precisam ser auditados ou que é necessário aguardar mais alguns meses para que uma nova tendência seja confirmada seria o equivalente a reconhecer que a comemoração da queda foi precipitada e afoita.

E, até por isso, é mais interessante para o séquito que adora o guru de Richmond e seus comensais da morte (e não se interessa em como ele se mantem e/ou quais os vínculos com a Atlas Network e outros think tanks de ultradireita) tentar desqualificar o porta-voz, independente da seriedade técnica com que os dados são divulgados. Por essa tática, nas redes sociais, a repercussão dos dados entre aqueles que acreditam em duendes ou na terra plana mostrou-se completamente alheia ao conhecimento científico acumulado ao longo de séculos pela humanidade.

E não foram poucos os questionamentos. Levantamento no Twitter mostrou um ataque coordenado em termos e questionamentos sobre o Atlas (aliás, essa coordenação chama bastante atenção pois há quem acredite na liberdade que as redes possibilitam mas que não se atenta para o risco de manipulações e estratégias digitais de condução do debate público). Entre os principais ataques de usuários pelo Twitter, destaco cinco dele, a saber:

1)Dados da pesquisa são de 2017. Sim, são, pois o sistema de saúde trabalha com dois anos de defasagem pois depende não só do registro mas da conferência e consolidação dos microdados. É fato que os dados podem parecer antigos para quem tem que lidar no cotidiano com crime e violência, mas para o estudo epidemiológico e de formulação de políticas de segurança pública, eles são ferramentas fundamentais.

2)Negros morrem mais porque são maioria no Brasil. Sim, mas esse é outro sofisma de quem não quer reconhecer a existência de um problema racial no país, pois se mais de 70% das vítimas de homicídios enquanto a composição entre a população está na casa dos 50%, temos uma sobre-representação de negros entre as vítimas gostemos ou não. O Brasil tem uma dívida histórica com os negros.

3) O perfil de quem morre é o mesmo de quem mata (homens negros). Não há pesquisas que confirmem essa tese, por mais que, em razão de outras evidências sobre o perfil dos mortos e características do crime, ela é possivelmente verdadeira. Mas isso não anula o fato de que entre negros a violência é maior e, se todos são cidadãos, cabe ao Estado pensar em estratégias de prevenção e redução dos homicídios de qualquer modo.

4)O Atlas reflete a herança do PT. Em certa medida, sim, a edição 2019 reflete os anos do PT no Governo Federal, mas não só. Ela revela como somos lenientes e complacentes com a violência no país. A violência faz parte da nossa história e não começou em 2003. São várias as causas e razões que estão associadas e quase nenhuma foi ainda enfrentada pelo Governo Bolsonaro. O PT não foi em nada diferente na segurança do que a direita e muitos dos problemas hoje enfrentados poderiam ter sido mitigados ao longo do período em que o partido esteve no Poder.

Por fim, uma quinta crítica associa o FBSP ao bilionário George Soros e à Folha como fatores de descrédito. É até engraçado pois hoje jornalismo profissional virou sinônimo de ideologia e ser transparente com os financiamentos recebidos virou motivo de críticas. Sim, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública recebe recursos de parcerias com a Fundação Open Society criada por Soros e o faz dentro do cumprimento estrito da legislação brasileira e dos EUA, com transparência, balanços contábeis e auditorias independentes. E, para quem não sabe ou para quem gosta de fazer ilações sobre os interesses em jogo, a Open Society tem uma rigorosa política de compliance que impede, por exemplo, que ela doe mais do que 33% do orçamento anual de qualquer entidade por ela apoiada. Isso para não gerar conflitos de interesses e/ou dependência.

E isso não se aplica apenas ao Atlas. Um importante lobista das armas colocou em xeque a pesquisa do Ibope que mostra que a maioria da população é contra o porte de armas indiscriminado porque, na opinião dele, 2 mil entrevistas não seriam suficientes para retratar a opinião da população. E, em se tratando de quem é, ele com certeza tem ao menos noções rudimentares sobre estatística e probabilidade. Mas, mais do que discutir evidências, o objetivo de seu posicionamento foi o de mobilizar as suas hordas de zumbis e desacreditar quem trabalha seriamente. Conhecimento? Às favas com o conhecimento, o importante é ganhar no grito e nas estratégias digitais de manipulação da opinião pública.

E o que é dito nas redes: falar sobre homicídios da população LGBTQ+ ou da violência contra crianças? Não pode, isso é ideologia de gênero e vitimismo. Falar do crescimento dos feminicídios ? Também não pode, isso é ideológico pois a maioria das mortes é de homens. Armas de Fogo? Sacrilégio, já que todos têm o direito quase que divino da autotutela e de liberdade de escolha. Falar de prisões e drogas? Nossa, somos inconsequentes pois estaríamos defendendo bandidos, que eles morram enfileirados ou se matem, temos mais que nos vingar.

Daria para escrever centenas de páginas sobre o retorno da alquimia e do pensamento mágico como nortes das representações sociais acerca da violência e da segurança pública. Mas, para concluir, será que os mesmos que defendem a violência como política de Estado e armas como liberdade individual seriam coerentes e defenderiam o aborto ou a descriminalização da maconha? Provavelmente não, pois coerência é algo que não exatamente guia o humor da sociedade atualmente.

O Brasil ganhará muito quando conseguirmos vencer a violência desenfreada revelada pelo Atlas da Violência 2019 e também ganhará quando aprendermos a lidar melhor com os interesses e lobbies por trás da “espontaneidade” das redes sociais.

Enquanto isso, distante da realidade, o presidente Jair Bolsonaro anda de Jet Ski; patrocina a versão brasileira da corrida maluca, desenho animado que fez sucesso nas décadas de 1960 e 1970 com personagens como Dick Vigarista e a Quadrilha da Morte, ao enviar projeto que incentiva mais violência no trânsito; entre outras pirotecnias de uma narrativa que ignora fatos e realidade e abusa do pânico e do conservadorismo da população do país.

 

 

 

 

 

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Ivan Marques escreve para o Faces da Violência o artigo ‘armas e o sonho do Rambo tropical’ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/26/ivan-marques-escreve-para-o-faces-da-violencia-o-artigo-armas-e-o-sonho-do-rambo-tropical/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/26/ivan-marques-escreve-para-o-faces-da-violencia-o-artigo-armas-e-o-sonho-do-rambo-tropical/#respond Sun, 26 May 2019 12:44:47 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/Sérgio-Lima-Folhapress-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=868 Por Ivan Marques. Advogado e Diretor Executivo do Instituto Sou da Paz

Assim como em um descompromissado jogo de truco, aquele jogo de apostas em que muitas vezes vale mais a pose e o grito do que as cartas na mão, o presidente Jair Bolsonaro olhou para o Congresso Nacional, Ministério Público Federal, partidos políticos, sociedade civil organizada e para 64% da população brasileira contrária ao maior acesso a armas e pediu seis: dobrou a aposta.

Após ter feito de seu primeiro ato como presidente a assinatura do decreto que flexibilizou a legislação de controle de armas no Brasil, o chefe da nação produziu ainda mais duas normas sobre o tema em apenas cinco meses de governo. O último, foi anunciado como a correção dos excessos questionados pelo Congresso, MPF e outros atores que viram de riscos à segurança pública a inconstitucionalidades na medida.

Ainda que a obsessão de Bolsonaro em armar a população seja acolhida por diminuta parcela dos brasileiros, suas consequências gerarão efeitos sobre esta e futuras gerações. Pesquisas de rastreamento de armas e munições têm mostrado consenso sobre o efeito duradouro das armas de fogo que vão parar no crime. A título de exemplo, pesquisa do Sou da Paz em parceria com o Ministério Público de São Paulo identificou um revólver Taurus, calibre 38 – arma mais comum em circulação no Brasil -, que foi apreendido pela polícia com um assaltante de lanchonete em um bairro da zona leste de São Paulo. A arma pertencia originalmente a uma empresa de segurança privada que teve seu vigilante rendido e que acabou perdendo o revolver para os criminosos. Esta era a segunda vez que a polícia resgatava a arma das mãos de assaltantes e a devolvia à empresa de vigilância. Antes, a mesma arma havia sido perdida para o crime em outra rendição, de outro vigilante da mesma empresa, e usada posteriormente em um roubo a um posto de gasolina. Quatro roubos, dois vigilantes que perderam a arma, duas operações da Polícia Militar para retirar das ruas o mesmo revólver que teve origem legal e circulou anos e anos na mão de criminosos.

A inconsequência da medida tomada pelo Planalto se mede justamente nas vidas afetadas por milhares de novas armas de fogo que passarão a circular pelo Brasil por anos a fio. As pesquisas de rastreamento têm mostrado que revólveres e pistolas são artefatos simples e que com o mínimo de cuidado e manutenção chegam a funcionar por mais de 40 anos.

Não bastasse a facilitação destes tipos de armas, os decretos do governo abrem brecha para a comercialização de novos modelos de armamento, anteriormente só utilizados pelas Polícias ou Forças Armadas. São carabinas, rifles, escopetas, revólveres e pistolas dos mais diversos calibres que farão parte do cardápio de armas do Brasil. Sob o débil pretexto da defesa pessoal, o governo acaba de liberar, por exemplo, graças ao inciso I, do artigo 2º do decreto 9.797 uma versão do fuzil Colt AR-15 adaptada para o calibre 9mm: arma mais que desejada por todas as facções criminosas no Brasil. Ou então, caso o chamado “cidadão de bem” prefira algo menor, pode levar para casa o icônico revolver que usa a munição Magnum .44, usada por Dirty Harry nos cinemas ou para abater ursos no hemisfério norte.

Mais assustador que a farra de novos modelos e calibres a desfilar pelas ruas e casas deste Brasil, o decreto também provê quantidade inexplicável de munições disponíveis para cada arma comprada. Para cada arma adquirida, fica permitida a compra de até cinco mil munições por ano. Um aumento de cem vezes em comparação com os limites anteriores. Isso significa que o cidadão armado poderá disparar aproximadamente 13 vezes ao dia, caso tenha somente uma arma. Considerando que somente na Polícia Federal temos aproximadamente 350 mil armas registradas legalmente, chegamos ao absurdo número de um bilhão, setecentos e cinquenta milhões de munições vendidas por ano. E para que tudo isso? Soma-se ao problema do comércio civil de munições o fato deste material não ter marcação obrigatória. Dessa forma, milhares de novas munições poderão ser revendidas ou simplesmente desviadas para a mão de criminosos sem nenhuma rastreabilidade. O presidente não se deu ao trabalho de justificar tal escolha na coletiva de imprensa de 7 de maio, quando ainda anunciava que o decreto tratava fundamentalmente de atiradores esportivos, o que se mostrou falso no texto publicado dia seguinte no Diário Oficial..

Para completar o cenário da farra da bala, o decreto 9.797/2019, em seu artigo 20, parágrafo 3o,  atropela a lei e o Congresso Nacional ao estabelecer que várias categorias profissionais são consideradas “de risco” e, assim, devem ganhar o privilégio de carregar uma arma na cintura. De caminhoneiros a agentes de trânsito, de jornalistas a advogados, na cabeça do presidente todos sofrem iminente perigo e poderão, na necessidade, sacar suas armas e disparar suas cinco mil munições no meio da rua. Para ficarmos somente na categoria incluída neste último decreto, os advogados, temos mais de um milhão e duzentos mil inscritos na ordem dos Advogados do Brasil aptos a solicitar, agora, seu porte de arma.

Vale perguntar a quem serve este tipo de promoção gratuita de armas e munições para além da indústria de armas e criminosos. Será que a medida prioritária  para o Brasil em cinco meses de governo é a liberação de armas?  Esse é o principal problema do país?

Ao assinar os decretos, o presidente garantiu que não promovia ali uma medida de segurança pública. De fato, acertou o alvo. Com as alterações propostas na já combalida política nacional de controle de armas, Bolsonaro promove verdadeiro desserviço à segurança pública. Fica agora mais difícil a vida do pobre soldado policial militar que ao atender uma das milhares das ocorrências cotidianas pode deparar-se com um Rambo tropical portando orgulhoso sua AR-15 9mm ou seu potente e caro revólver Magnum .44.

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Paralisia na segurança faz governo ignorar a vida de 5 milhões de pessoas feridas com armas de fogo no país https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/18/paralisia-na-seguranca-faz-governo-ignorar-a-vida-de-5-milhoes-de-pessoas-feridas-com-armas-de-fogo-no-pais/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/18/paralisia-na-seguranca-faz-governo-ignorar-a-vida-de-5-milhoes-de-pessoas-feridas-com-armas-de-fogo-no-pais/#respond Sat, 18 May 2019 23:54:36 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/Alexandre-Teles-1-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=850 Em uma semana em que a opinião pública tenta compreender o estado de espírito e as intenções do Presidente Jair Bolsonaro, que compartilhou um texto de um servidor da CVM (Comissão de Valores Imobiliários) em tom conspiratório e que pode ser lido como um “chamado às armas”, é interessante revisitar alguns dados que têm sido produzidos nos últimos anos sobre violência armada e/ou as tendências autoritárias da sociedade brasileira e os descalabros na segurança pública.

Independentemente das intenções do Presidente e de seu déjà-vu janista, os brasileiros, entre indignados e perplexos, já vêm sendo bombardeados com notícias do perigoso curto circuíto que toma conta do mundo da realpolitik e que esvazia a política de sentido desde 2013. Porém, junto com a deterioração do quadro político, no mundo real das ruas, a população está sitiada pela violência, pela insegurança, pelo colapso fiscal do país e, agora, pelas ameaças ignóbeis de cortes e desmonte da Educação.

Enquanto isso, o Brasil sozinho continua a responder por cerca de 10% dos homicídios registrados no mundo, quando temos aproximadamente 3% da população mundial. Vivemos reféns do medo e, mesmo quando temos algo positivo acontecendo como a queda por 14 meses dos crimes violentos no país, as autoridades pouco sabem o que esta acontecendo e, mesmo assim, não ficam encabuladas e anunciam planos sem metas.

E este medo não é infundado: pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Datafolha revelou, já em 2017, que quase 50 milhões de pessoas com 16 anos ou mais tinham conhecidos que foram assassinados. Isso significa 1/3 da população adulta do país. Constatou também que cerca de 15 milhões conheciam pessoas mortas pelas forças policiais. E, considerando a atualidade do dado, vale resgatar que a pesquisa estimou que quase 5 milhões de brasileiros já foram feridos por armas de fogo.

Vejam, estimadas 5 milhões de pessoas feridas com armas de fogo são insuficientes para demover  o atual governo da péssima ideia de legislar por decretos, autorizar que as pessoas comprem 5 mil munições por ano e revogar na prática qualquer política de rastreamento e controle de armas. E, o mais grave, os demais Poderes estão cientes das ilegalidades do ato do Presidente mas estão demorando para se posicionar e conter excessos.

Não à toa, vivemos um contexto de desilusão política e de pânico moral sem precedentes. Por mais que Jair Bolsonaro emule uma espécie de catarse de tudo o que aqueles que acreditam em justiça social e cidadania tentamos evitar, o cenário não é só local. Trump, Duterte, Orban ou Erdogan são mostras de que o medo e a intolerância têm se tornado uma bem-sucedida estratégia eleitoral. Mais importa impor a ordem do que construir uma sociedade mais segura.

Tenho frisado bastante aqui no Faces da Violência que o fato é que a sociedade brasileira está flertando com o desmonte do Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição de 1988. Vivemos a era da sociedade de risco, onde tecnologia e medo conformam nossas personalidades e deixam espaço para discursos punitivistas, sexistas, racistas e xenófobos. O medo é o principal combustível da política do ódio, que em muito tomou conta da internet e das redes sociais.

Líderes extremistas como Bolsonaro ou, mesmo Witzel, (ainda mais quando escudados por trupes ideológicas) elegem os culpados (“bandidos”, migrantes, políticos tradicionais, minorias étnicas, etc.), aceitam a violência como narrativa e sugerem a volta a um passado idealizado que, obviamente, não se realizará. A atuação do Estado também afeta a sensação de segurança.

Segundo outra pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, já bastante citada aqui no Blog e que foi apresentada no Ilustríssima, para 69% dos brasileiros com 16 anos de idade ou mais, “o que este país necessita, principalmente, antes de leis ou planos políticos, é de alguns líderes valentes, incansáveis e dedicados em quem o povo possa depositar a sua fé”. E, o cenário fica ainda mais grave se somarmos aqueles que “concordam em parte” com a frase. Neste caso, teremos hegemônicos 85% da população sujeitos a influências autoritárias para os quais as leis e os projetos políticos são indiferentes.

Ao relermos esses dados, é quase impossível não os associar às estratégias de confronto e mobilização permanente de  Jair Bolsonaro. Suas ações desde que tomou posse não parecem ser desprovidas de racionalidade mas sim embebidas por um projeto autoritário de Poder que se ocupa de solapar a institucionalidade política e ser ungido pela população sem mediações ou freios.

O drama é que a onda que levou Bolsonaro à Presidência, que aceitava e achava mera retórica propagar toda uma sorte de despautérios verbais contra a agenda de direitos civis e humanos, ainda tem apoio entre policiais, que em tese seriam os guardiões da legalidade democrática, mas que, em nome da ordem social idealizada por Bolsonaro, rotula e reprime todos que discordam de “comunistas”.

Ainda segundo o artigo no Ilustríssima, também é possível compreender a onda em torno do projeto de Bolsonaro por algumas outras questões da pesquisa do FBSP: 81% da população adulta brasileira declarou que “a obediência e o respeito à autoridade são as principais virtudes que devemos ensinar as nossas crianças”.

Em outra direção, para 64% dos entrevistados “todos devemos ter fé absoluta em um poder sobrenatural, cujas decisões devemos acatar”. A dimensão religiosa ganha força e há uma aproximação com o mundo da ordem, que não é só instrumental mas orgânica, já que cria simbioses complexas entre Estado e religião. Pela pesquisa, 53% dos brasileiros adultos concordam ainda com a frase “o policial é um guerreiro de Deus para impor a ordem e proteger as pessoas de bem”.

Ou seja, Bolsonaro sabe que conquistar os policiais para o seu projeto de poder foi fundamental para ter condições de impor o seu modelo de ordem social para o restante da população. O problema é que, quando convidou Sergio Moro para Ministro da Justiça e da Segurança Pública, ele teve que rifar as demandas das Polícias Militares e hoje vive às turras com os seus próprios apoiadores.

Em suma, se no plano político, flertarmos com o autoritarismo e com a intolerância, no campo da segurança pública convivemos com a paralisia. Há propostas e promessas, mas não há ações, recursos e políticas públicas. O Governo Federal não tem responsabilidade sobre a tendência de queda da violência atual. E, até por isso, a redução dos homicídios corre infelizmente sérios riscos de, mais uma vez, ser um soluço na curva do agravamento da violência letal no Brasil nos últimos 30 anos.

***

Alguns policiais, após a publicação do texto, reclamaram comigo, com razão, que eu estava generalizando a classe e que nem todos aderiram à pauta autoritária e ideológica de Bolsonaro. Importante reconhecer que generalizações sempre provocam injustiças e, portanto, faço mea-culpa. E a faço com esperança, já que as polícias são instituições-chaves de uma democracia e é importante investirmos na valorização dos policiais brasileiros e das boas práticas de prevenção da violência e repressão qualificada do crime.

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O poder do lobby das armas por trás do Decreto de Bolsonaro https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/12/o-poder-do-lobby-das-armas-por-traz-do-decreto-de-bolsonaro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/12/o-poder-do-lobby-das-armas-por-traz-do-decreto-de-bolsonaro/#respond Sun, 12 May 2019 14:48:32 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/15575888695cd6eb8592aca_1557588869_3x2_md-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=831 Com Rafael Alcadipani. Professor Adjunto da FGV-EAESP, membro do Forúm Brasileiro de Segurança Pública e Visiting International Fellow no Crime & Security Research Institute – Cardiff University.

Segundo o dicionário Houaiss, a palavra simulacro significa imitação; falso aspecto; cópia malfeita ou grosseira; arremedo; dissimulação, fingimento ou fantasma. Um simulacro espelha-se na realidade mas a utiliza na construção de uma lógica própria e autônoma. Há um descolamento entre realidade e prática que não é necessariamente reconhecido, abrindo-se margem para inúmeros equívocos, manipulações e erros de prognóstico.

Este é o caso histórico da segurança pública, mas que, sob Bolsonaro, ganha contornos dramáticos, pois a ideologia turvou o debate e interdita a busca de soluções baseadas em experiências exitosas e em evidências. Nada se fala sobre o trabalho da SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública) e dos esforços que os Governadores, Secretários, Chefes de Polícia, Comandantes e milhares de policiais fazem todos os dias para dar conta do desafio de fazer segurança pública praticamente sem apoio ou dinheiro federal.

Na verdade, como mostrou o GPS Ideológico lançado pela Folha esta semana, o governo Bolsonaro privilegia radicais de ultradireita nas redes sociais e, com isso, parece querer impor a qualquer custo sua visão de mundo a todos os brasileiros.

Só que sua visão de mundo na área da segurança pública é eivada de erros grosseiros como declarar que ao liberar o porte de armas para vários segmentos de população por Decreto não tem nada a ver com segurança pública, mas com o direito de autotutela e autoproteção, como se essas coisas andassem separadas uma da outra. E, o mais grave, sua visão de mundo, é alienígena ao Brasil e tem no lobby e nas estratégias da Associação Nacional do Rifle (NRA, da sigla em inglês) dos EUA sua origem.

Por aqui, além do clã Bolsonaro, o maior adesista ao projeto da NRA é Benê Barbosa, presidente de uma organização pouco transparente e não auditada chamada Movimento Viva Brasil – MVB, que no GPS Ideológico aparece em posição central na bolha da extrema direita. Ao contrário das entidades da sociedade civil que ele gosta de criticar em suas redes sociais, o FBSP incluído, que divulgam balanços contábeis e auditorias independentes, o MVB é uma caixa preta que, a qualquer tentativa de saber como se financia, repele ferozmente quem faz este tipo de indagação.

E, em um indicativo de que há uma diferença entre realidade e redes sociais, uma análise pelo Google Trends demonstra que a cruzada de Benê Barbosa tem muito menos força e peso fora das redes sociais e de seus exércitos de bots e milicianos digitais. E, dada a influência que este grupo exerce no atual governo e o grau de opacidade envolvido em suas ações, seria de bom tom e republicano que o Ministério Público verificasse se não há conexão ilegal com interesses internacionais que violem a nossa Constituição e a nossa soberania. Quem não deve, não teme.

Benê Barbosa é o Olavo de Carvalho das armas, que gosta de vociferar contra e rotular muitos de inimigos, mas não tem o menor rigor científico naquilo que defende. Assim como os argumentos de Olavo, fala de temas complexos de forma simplista e simplória. Ele é uma perfeita tradução do liberal fake, que rejeita a intervenção do Estado no controle do porte de armas e é a favor da caça, mas aceita e defende a proibição estatal completa sobre drogas, por exemplo.

O fato é que o governo Bolsonaro usa a influência desse movimento e comporta-se como linha auxiliar na estratégia de poder do poderoso lobby das armas mundial e, sob o pretexto de cumprir uma promessa eleitoral, desorganiza todo o sistema de monitoramento e controle de armas do país, bem como desconsidera a própria proteção dos policiais que, majoritariamente, o apoiam.

Ao invés de investir para solucionar os gargalos do sistema, como aquele que permite que 94,9% das armas apreendidas pelas polícias estaduais fiquem sem registro no SINARM (Sistema Nacional de  Armas de Fogo), da Polícia Federal, opta por liberar geral e dificultar ainda mais o trabalho de investigação e rastreamento de crimes.

Da mesma forma, adota a tática de desqualificar o saber científico e o trabalho da mídia profissional para torná-los equivalentes às suas crenças e dogmas. Com isso, desconsidera estudos sérios e sujeitos a revisão rigorosa de pares, como a tese de doutorado do economista Daniel Cerqueira, integrante do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que mostra que 1% a mais de armas de fogo em circulação gera quase 2% a mais de assassinatos. E que esse aumento na quantidade de armas não tem efeito para dissuadir roubos e assaltos.

Desconsidera que, de acordo com pesquisa FBSP/Datafolha de 2017, 78% da população adulta do país acredita que, quanto mais armas de fogo em circulação mais mortes teremos. Engana a opinião pública sobre o resultado do Referendo de 2005, que perguntou se a população queria que a comercialização fosse proibida no Brasil. A proibição foi, de fato, rejeitada, mas o controle e o rigor não foi objeto de consulta. Tanto é que recente pesquisa Datafolha indica que 68% da população adulta é contra a posse de armas. Como diz o ditado popular, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Abrir mão de controles é não só perigoso mas é abrir mão de responsabilidades que são a razão de ser do Estado Moderno.

O Decreto do descontrole das armas é, em última instância, a capitulação do Brasil à lógica geopolítica que nos coloca em posição subalterna e servil. É uma peça juridicamente falha, politicamente equivocada e ideologicamente parcial. Ele não está preocupado com o direito individual, mas serve para reproduzir um simulacro em que o medo e a insegurança são ingredientes-chave para manter o controle na narrativa política e do Poder na mão de poucos e sabidos senhores das armas.

 

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‘Excludente de ilicitude’ como a Nêmesis dos policiais que influenciam Bolsonaro https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/05/excludente-de-ilicitude-como-a-nemesis-dos-policiais-que-influenciam-bolsonaro/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/05/05/excludente-de-ilicitude-como-a-nemesis-dos-policiais-que-influenciam-bolsonaro/#respond Sun, 05 May 2019 14:18:27 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/05/MST-320x213.jpg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=804 Do grego antigo, Nêmesis é a palavra que simboliza vingança, que sugere que o bem e o mal devem ser respondidos na mesma medida, ou seja, que aceita que aos bons sejamos bons e aos maus que sejamos maus. A questão, contudo, é que, no mundo da esfera pública dos mortais, a linha ética que divide o bem e o mal é balizada, em sociedades democráticas, pelo direito e pela lei.

São eles que irão permitir um denominador comum capaz de regrar a vida em sociedade e estabelecer parâmetros sobre o que é certo e o que errado; sobre quais condutas individuais serão legítimas e quais medidas precisam ser asseguradas para que estas possam garantidas, mesmo quando em resposta à uma injusta agressão. E, se olharmos a história da humanidade, veremos que os países que conseguiram altos patamares de desenvolvimento econômico e social têm, no monopólio da violência legítima nas mãos do Estado, sua pedra angular – para usar a referência bíblica feita esta semana pelo Chanceler Ernesto Araújo.

É a garantia do monopólio da violência nas mãos do Estado, com seus freios e contrapesos, que permitiu o florescimento de condições demográficas, socioeconômicas e culturais capazes de construir nações fortes e poderosas. Não será ampliando o conceito de “exclusão de ilicitude” (que em resumo significa que, se cometida por uma razão “justa”, não há crime em um conduta mesmo que ela seja prevista na legislação penal enquanto tal) que iremos conseguir construir um Brasil mais seguro e menos violento.

Não à toa, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a pedido do Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados que analisa os pacotes de medidas legislativas dos Ministros Alexandre de Moraes e Sergio Moro, coordenado pela Deputada Margarete Coelho, do Piauí, elaborou uma proposta de substitutivo que reconhece a possibilidade de policiais, fazendo uso devido da força, venham a matar alguém e, por esta razão, não podem ser onerados com o custeio de assistência jurídica da fase extra-judicial.

Se a possibilidade de matar faz parte da atividade policial e que, para garantir a legitimidade da ação, é necessário investigar as condições nas quais este tipo de ocorrência ocorreu, a proposta visa oferecer assistência jurídica gratuita aos policiais até o momento em que o Ministério Público e o Poder Judiciário entenderem que a ação foi legítima e/ou excessiva. Neste último caso, o policial responderá individualmente por sua ação e arcará com os custos jurídicos associados. A proposta não dá carta branca para as polícias e reforça a importância da investigação e do controle institucional. E, sobretudo, contempla uma demanda histórica dos policiais por mais segurança jurídica sobre seus atos.

Porém, em sentido contrário ao fortalecimento das instituições, o Governo Bolsonaro tem cerrado esforços na tentativa de flexibilização da legislação de controle da violência e elegeu o conceito jurídico de exclusão de ilicitude como bandeira ideológica e de mobilização política permanente. E isso não é algo fortuito ou recente. Se olharmos para quem Bolsonaro segue nas redes sociais, em especial as pessoas ligadas às agendas da segurança e ao lobby armamentista, veremos que o Presidente reproduz as bandeiras de um grupo bastante coeso ideologicamente e experiente no Twitter.

O que Bolsonaro fala não é original e ele é apenas um porta-voz de um projeto de Poder mais antigo e que é composto por vários outros atores menos visíveis politicamente mas muito ativos nas redes sociais. Os influenciadores de Bolsonaro têm em comum o fato de que o número de seus seguidores é maior que o número que eles próprios seguem (em média, são seguidos por 740 mil perfis e seguem 2 mil perfis). Os influenciadores de Bolsonaro ligados ao mundo policial são muito ativos no Twitter e são experientes na plataforma, cujos perfis foram criados há mais de 8 anos. Eles sabem como impactar e mobilizar a sociedade para os seus interesses.

Desde a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro tem insistido em receitar a violência como remédio para os dilemas da segurança pública mais liberdade para os policiais e para a população se defender. O discurso da revanche pelas próprias mãos ou pelas mãos de “heróis” tem forte apelo em uma população exausta pela ineficiência e descaso das políticas públicas. Os policiais, abandonados à própria sorte, acabam seduzidos pelas falsas promessas de valorização e moralização da sociedade.

O mais recente episódio da série é a ideia de ampliar o acesso às armas de fogo e a excludente de ilicitude penal para os ‘donos’ de terras se defenderem de invasões. Ao invés de regularização fundiária de terras devolutas e fiscalização, aos amigos do Rei, a exclusão de ilicitude e o benefício da forte emoção; aos considerados inimigos, o rigor da lei e o chumbo quente disparado pelas milícias dos senhores de engenho que tanto marcou a história do Brasil.

Sinal de que estamos idealizando um retorno ao clima medieval do cada um por si e das lealdades feudais.

Para além da guerra ideológica, o governo Bolsonaro nada fez de substantivo até aqui para melhorar as condições da segurança pública brasileira e quase todas as medidas adotadas foram ou para jogar a bola para o Congresso e/ou fruto de investimentos que já estavam sendo feitos nas gestões passadas. Bolsonaro surfa na força da ideia de segmentos polarizados de policiais da Nêmesis como solução, mas, inebriado pela sedução provocada pela estratégia de guerra permanente e sem ouvir o contraditório, pode acabar definhando politicamente como Narciso.

Segundo a mitologia grega, Narciso era um homem extremamente vaidoso e que desprezava o amor e o outro. Atendendo aos pedidos de vingança, Nêmesis, a própria, providenciou um forte calor na terra para puni-lo. Isso fez com que Narciso se debruçasse sobre uma fonte de água cristalina para se refrescar e, ao se ver no espelho d`água, apaixonou-se por sua própria imagem. Incapaz de satisfazer sua paixão, Narciso definhou até a morte.

 

 

 

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A falsa ideia de que `se o crime é uma doença, os caveiras são a cura` https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/03/16/a-falsa-ideia-de-que-se-o-crime-e-uma-doenca-os-caveiras-sao-a-cura/ https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2019/03/16/a-falsa-ideia-de-que-se-o-crime-e-uma-doenca-os-caveiras-sao-a-cura/#respond Sat, 16 Mar 2019 17:15:23 +0000 https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/files/2019/03/WhatsApp-Image-2019-03-15-at-13.57.48-320x213.jpeg https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/?p=687 A foto acima não é de um game violento e/ou do atirador da Escola Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo. Ela foi feita em setembro de 2017, no Rio de Janeiro, na Favela da Rocinha, durante umas das inúmeras operações de garantia da lei e da ordem (GLO) que as Forças Armadas foram chamadas a atuar nos últimos anos. Se uma foto vale por mil palavras, note que nela estão presentes três grandes elementos fundantes do imaginário social brasileiro contemporâneo.

O primeiro elemento é o mais escancarado, o uso de “balaclavas”, tipo de máscara utilizado por forças de segurança para esconder a identidade de seus agentes em operações táticas e especiais. O uso em si está baseado em doutrina e em estudos de defesa, que indicam que em algumas situações é necessário que o agente público individual precisa ter sua identidade preservada, evitando-se riscos de revides ou vinganças posteriores. Porém, o que se destaca na foto é uma balaclava com a imagem da caveira, que denota que o Poder Público estava ali para “curar” a comunidade do crime e que eles não temiam a morte e que ela seria enfrentada com violência.

O segundo elemento é, exatamente, o que me fez lembrar desta imagem e associá-la ao massacre em Suzano, ou seja, a convivência de crianças com tal postura de membros das Forças Armadas, que aqui não estavam sendo indivíduos mas representantes do Estado; a ideia de que a caveira protege da morte e purifica vai entrando no imaginário cultural.

Ou seja, a estética dos “caveiras” foi sendo legitimada como aquela que pode superar as adversidades e vencer a “guerra” da segurança pública estimulada por anos de ineficiência das políticas da área e por políticos oportunistas e populistas. Os caveiras, que ficaram famosos a partir do filme “Tropa de Elite”, vão se transformando em sinônimo de policial de “elite” a ser copiado e transformado em herói, independente da situação e do emprego recomendado.

Sim, forças especializadas são necessárias em algumas situações e precisam ser regradas com rigor. Não existe carta branca para polícia decidir, sem supervisão e controle, sobre a vida ou a morte em nenhum lugar do mundo democrático. A questão é que tais forças estão sendo chamadas para quase todas as crises na segurança brasileira, já que a prevenção e a investigação não são valorizadas. E, nesse processo, diante do reconhecimento social alcançado, muitos policiais adotaram, oficiosamente, o lema “se o crime é uma doença, os caveiras são a cura”.

Já o terceiro elemento é ainda mais cruel, já que, uma das crianças, veste a camisa 10 da seleção brasileira de futebol masculino, que durante muitos anos representou a identidade nacional e o sonho de sucesso, mobilidade social e pertencimento a vários jovens do país todo.

A foto, portanto, é uma síntese cruel do que estamos vivendo no Brasil Ela dá contexto a um ato de insanidade tão violenta como o que ocorreu na escola Raul Brasil e que muitos agora pensam em “culpas” individuais, que por certo existem, mas deixam em segundo plano as opções político-ideológicas que estamos fazendo para fazer frente ao medo, ao crime e à violência que nos assolam.

Não descarto a influência das redes sociais e dos games, mas chamo atenção para o fato de que, nas políticas públicas, o país está aceitando a estética da violência e da “cura” do crime a qualquer custo, mesmo que o remédio seja mais violência.

Vejam, se usarmos duas outras imagens, veremos a dificuldade do que estou falando. Nessas outras imagens, uma delas é uma foto de Bruno Kelly, da agência Reuters, durante operações na mesma Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em 2017. Nela, um integrante das FFAA não só usa a balaclava de caveira como, ainda, usa um brasão com a bandeira do Brasil e a palavra “Predador”, sugerindo que ele ali estava caçando oficialmente criminosos para serem “abatidos”.

A segunda imagem é a reprodução feita pelo próprio atirador de Suzano (não vou reproduzir seu nome e só reproduzo a foto em razão do contexto justificar, já que temos que pensar que essa visibilidade era um dos objetivos que o levaram a cometer tantos assassinatos em série).

Em ambas as fotos, a estética é parecida e demonstra prontidão e disposição para o “combate”. Em uma situação de guerra ou conflito tradicional, estes elementos podem ser discutidos como necessários à etapa de guerra psicológica e de construção doutrinária de identidades. Não me cabe discuti-los aqui no que se referem às FFAA e à Defesa Nacional, pois não estudo defesa nacional. Mas, em segurança pública, o que estamos fazendo ao banalizar tal estética? O que estamos fazendo para conquistar a juventude para um projeto civilizatório de país e evitar a construção de carreiras delinquenciais?

Por tudo isso, será mesmo que o pânico gerado pelo inominável ato do atirador em Suzano é só efeito dos “videogames violentos”, como afirmou o Vice-Presidente Hamilton Mourão?

Se ampliarmos o debate, veremos que o ato em Suzano está inserido em uma semana particularmente cruel; em um ano que parece que já dura uma década. E, como meu objetivo não é falar do episódio em si, mas contextualizá-lo à luz do que tem ocorrido no país, vale pensarmos em alguns tópicos:

1) Pesquisa feita em abril de 2017 pelo FBSP revelou que quase 50 milhões de pessoas com 16 anos ou mais tinham parentes ou conhecidos que foram assassinados. Isso significa 1/3 da população adulta do país. A pesquisa também constata que quase 5 milhões de brasileiros já foram feridas por armas de fogo e cerca de 15 milhões de adultos conheciam pessoas mortas pessoas pelas forças policiais e/ou pelas guardas municipais;

2) No Brasil, policiais morrem 3 vezes mais por suicídio e 19 mais por assassinatos do que os policiais dos EUA; e matam 7 vezes mais;

3) Em meio a este cenário de violência disseminada, pesquisas do CRISP/UFMG (Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública), mostram que, em 2004 (antes do Estatuto do Desarmamento), 7,2% dos alunos de escolas públicas e privadas de Belo Horizonte e Região Metropolitana haviam levado ou tentado levar arma de fogo para a Escola. Em 2012, este percentual foi de 2,3%;

4) Outro estudo do FBSP, de 2017, mostra que 60% da população brasileira com 16 anos de idade ou mais, concorda com a frase “a maioria de nossos problemas sociais estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais, dos marginais e dos pervertidos”. E, se os próprios agentes públicos usam balaclavas de caveira, vale lembrar de outro dado desta pesquisa, que indica que 81% desta mesma população declara que “a obediência e o respeito à autoridade são as principais virtudes que devemos ensinar as nossas crianças’

5) Os acusados pelo assassinato de Marielle Franco e Anderson Franco, ex-policiais, nutrem profundo ódio por ideias defendidas pela vereadora e, nas buscas e apreensões feitas em seus endereços, também foi constatado que eles possuíam grande arsenal de armas de fogo ilegal, que, como senhores das armas, abasteciam milícias e outras facções no Rio de Janeiro;

6) Hoje, o ódio, que não é de hoje, tomou conta da política; o ódio venceu. Cada vez mais, ideias de respeito aos direitos civis, humanos e sociais são vistas como “criminosas” ou “inimigas do povo” pelos apoiadores reais ou virtuais do presidente Jair Bolsonaro e de sua família. Clamar por direitos é visto como “defesa de bandido” ou como “prova” de se ser “comunista”, senhas para se desqualificar e justificar a eliminação moral ou física de quem discorda da “verdade”;

7)Estamos vivenciando o apogeu do pensamento conspiratório que declara guerra cultural contra inimigos ideológicos e clama, de forma chula e grosseira, para que as instituições de Estado eliminem dissensos e divergentes. E, em uma análise histórica, o amálgama entre guerra cultural, defensores de bandidos e projetos de poder político foi feito pelos lobistas e “professores” que deslocaram o debate da segurança pública para a discussão da autotutela. À semelhança do papel na Associação Nacional do Rifle, dos EUA, nossos armamentistas fizeram a ponte entre ideologia, política e religião que hoje sustenta muitos dos que estão no Poder e tentam revogar o Estatuto do Desarmamento mesmo contra todas as evidências de que, na segurança, mais armas, mais mortes.

Eu poderia trazer vários outros dados, mas, se continuarmos na toada atual talvez estejamos presenciando a aniquilação da política e o fim da nação. E, diante de tudo o que foi exposto, o que estamos ensinando às nossas crianças e jovens é o exemplo ético de Pátria a ser construída?

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Nota: depois da repercussão sobre o uso de máscaras de caveiras, o Comando Militar do Leste disse que investigaria tal conduta. Ato louvável. O drama é que o estrago simbólico já estava feito.

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